por Wagner Montenegro

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Demorei 30 anos para entender que vivo num corpo negro. Não que eu não soubesse que a minha pele é mais escura que a da minha mãe, pessoa que sempre foi a minha referência do que é mundo. Eu sabia que a pele dela era branca e que a minha não. Mas achava que, nos lugares onde estivesse, sempre existiria alguém mais negro do que eu. Alguém para quem eu pudesse apontar e dizer: “Ele é negro, eu não!”. Era a minha tentativa de escapar das estruturas do racismo. Mas eu não escapava, e nem sempre encontrava alguém para apontar. Eu era apontado.

Segui a vida na ilusão de encontrar um reflexo branco no espelho. E só fui me compreender negro na medida em que percebi que eu era tudo aquilo que é ruim, mau, bruto e primitivo. Meu corpo era condenado. Não adiantava lutar contra a minha própria imagem: todas as pessoas pretas carregam consigo as marcas da tragédia colonial. Assim nasceu o filme Sethico, alegoria inspirada em Seth, o deus do caos do Antigo Egito que, todas as noites, luta contra a serpente Apophis, que ameaça engolir o mundo.

A luta de Seth para que o mundo não seja devorado pelo caos me inspira a criar estratégias de sobrevivência num mundo que deixa negros e negras para morrer. A sequência de autorretratos que inaugura o filme é uma tentativa de me compreender como um corpo negro num mundo branco.

Essa existência conflituosa causou alterações bioquímicas no meu corpo que me incluíram no terrível quadro da saúde mental da população preta brasileira: jovens negros têm risco 45% maior de desenvolver depressão e cometer suicídio, dizem os dados da pesquisa “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros”, realizada pelo Ministério da Saúde e pela Universidade de Brasília em 2018.[1]

Não morremos apenas de bala, de fome, de pobreza. Vivemos num mundo que nos dinamita por dentro. O mesmo mundo em que 72% das pessoas que morreram de covid-19 eram pretas e pardas.[2] Esses números eram exibidos todos os dias nos boletins oficiais da pandemia divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco na época da criação de Sethico, em fevereiro de 2021.

A videoarte promove um passeio pela cidade do Recife, marcada pela desigualdade racial desde o século XVI. As fotos e os desenhos são representações do caos colonial que, desde a travessia nos navios negreiros, deixa negros e negras mareados. É por viver nessa sensação que buscamos formas para sobreviver à feiura do mundo. As obras apresentadas também fazem parte do catálogo Sethico, criado para documentar a pesquisa que culminou no filme. Acesse o catálogo aqui e o trailer do filme aqui.

Sobre o filme

Dirigido e protagonizado por Wagner Montenegro, Sethico nasce a partir de reflexões do ator sobre si mesmo e sobre estar no mundo como um corpo negro. A pesquisa que deu origem à produção, realizada ao lado de Andréa Veruska, uma das fundadoras do Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido (Nexto), foi orientada pela cineasta Danielle Valentim. O filme ganhou menção honrosa no Atlanta black pride film festival (2021) e foi exibido em eventos como o 14º encontro de cinema negro Zózimo Bulbul – Brasil, África, Caribe e outras diásporas (2021), o VII dobra – festival internacional de cinema experimental, o Venice architecture film festival (2021), o Noble international film festival and awards (2021), o 5th international folklore film festival (2022), o 2º festival internacional de ecoperformance (2022) e o Palco virtual, do Itaú Cultural (2022).

 

Como citar 

MONTENEGRO, Wagner. Sethico: um corpo negro num mundo branco. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. Doi:https://www.doi.org/10.53343/100521.33-13 

 

Wagner Montenegro é ator, palhaço, realizador audiovisual e cientista social. Desenvolve pesquisas e experimentações com o Teatro do Oprimido há 18 anos. É palhaço da Doutores da Alegria no Recife desde 2018. Cofundou o Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido (Nexto), por meio do qual desenvolveu, em parceria com Andréa Veruska, as produções A coleira (2015), Mulheres que carregam homens (2018), Perseguida (2019) e Ferida (2020), entre outros experimentos audiovisuais. Assinou a direção de Laço branco (2016), Letal (2020), Sethico (2021) e Linhas cruzadas (2021).


[1] Ver: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suicidio_adolescentes_negros_2012_2016.pdf. Acesso em: 2 ago. 2022.

[2] Dados do boletim epidemiológico nº 350 divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco em 15 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.dropbox.com/s/rq3cbacd5zwcfnb/Boletim%20Covid-19%20-%20Secretaria%20de%20Sa%C3%BAde%20de%20Pernambuco%20-%2015.02.pdf?dl=0. Acesso em: 2 ago. 2022.

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