Giradança apresenta espetáculo e livro-dança que exaltam as “automitologias femininas”
03/01/2023 - 10:00
por Cristiane Batista
Criada em 2005 em Natal (RN), a companhia Giradança nasceu com o propósito de pesquisar linguagens na dança contemporânea com foco na diversidade de corpos e suas singularidades. Em Zona dissoluta, projeto apoiado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, o grupo se aprofunda nesse tema. Composto do espetáculo de dança Graça, a economia da encarnação e do e-book Caderno do artista, registro escrito e visual do processo de criação da peça coreográfica, Zona dissoluta traz três bailarinas nordestinas e periféricas, com e sem deficiência física e visual, bailando suas “automitologias”.
Maturada desde 2018, a pesquisa busca estratégias coreográficas elaboradas de maneira a fazer com que as pessoas não olhem para a deficiência como primeiro plano e passem a olhar para a ação, o gesto e a coreografia: “Gosto de pensar que é uma tecnologia, um modo de pensar que coloca o corpo como obra de arte contemporânea. O movimento é o destaque”, conta o diretor artístico da companhia, Alexandre Américo.
Baseado no pensamento do escritor e curador André Lepecki, que atua em estudos da performance, coreografia e dramaturgia, Américo trata da ideia de dissolução, uma noção de corpo como zona subjetiva que reúne outros corpos que formam um conjunto. O espetáculo de 60 minutos foi criado em parceria com a coreógrafa paranaense Elisabete Finger e as bailarinas Ana Vieira, Jânia Santos e Joselma Soares. A peça propõe gestar, por meio de uma relação erótica entre as três bailarinas e suas materialidades – como líquidos e pelos –, o que chamam de automitologia feminina.
“Elas são as Graças, as ninfas aqui representadas por diversas vezes na história da arte, fabuladas aqui e também profanadas a partir das histórias pessoais dessas mulheres, que reinventam as representações mitológicas de quem somos no mundo. Buscamos na dança um sentimento de dissolução entre elas e o ambiente”, diz Américo.
O cenário é formado por piso e fundo brancos. As três mulheres têm seus corpos pintados de vermelho e lilás, vestem apenas um short e trazem nas mãos bolas metálicas. Nos olhares, ora delicadeza, ora força e muita sedução. Nos pés, passos percussivos dão o tom e rompem o silêncio. Nas bocas, primeiros sussurros, depois o romper em uníssono da frase: “O poder da mulher é voar e sangrar!”, seguida pelo som de um gozo libertador.
“Fazemos e desfazemos aqui nossos próprios arquétipos de beleza, poder, fertilidade, êxtase, amor e guerra, num fluxo circular infinito. Nas nossas automitologias, todos os corpos são fêmeas: são permeáveis, circulares, eróticos. Corpos-matéria que se deixam dissolver uns nos outros, nas coisas, no mundo. E, dissolvendo a si mesmos, dissolvem fronteiras, posições, papéis, valores. Graça é uma oferta, uma dádiva, uma benção que vem de nós para nós mesmas. É a graça de se reescrever, de se reencarnar neste mundo. É um estado – de graça – e um regime que rege uma dança”, define a coreógrafa Elisabete Finger.
Caderno do artista
Para registrar o processo de desenvolvimento de Graça, a economia da encarnação e “também suas dobras”, como frisa, o diretor Alexandre Américo criou o que chama de Caderno do artista. “Fui escrevendo desde 2018, tomando nota do que estava sendo feito e dito, as atuações das bailarinas, o meu testemunho, colagens da Elisabete Finger, desenhos, rabiscos, farejando tudo o que seria legal de expor. Com a colaboração do artista performático e designer Vinicius Dantas, transformamos todo esse material em um e-book, que traz os conceitos da coreografia, suas curvas e espirais. A abertura do trabalho é da pesquisadora de dança Helena Katz, que fez um texto muito legal sobre a ideia de diferença”, conta.
Caderno do artista está disponível gratuitamente em giradanca.art e alexandreamerico.com.