por André Felipe de Medeiros

Fomentação à leitura, incentivo à produção cultural e sustentabilidade – não é sempre que um único projeto consegue reunir tantas ideias, demandas e ambições de uma só vez, e ainda mais com sucesso. Gilda Cartonera é um exemplo do que pode ser feito com e para uma comunidade ao investir em diversas frentes ao mesmo tempo.

Na paradisíaca Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, o programa foi viabilizado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 para que fosse montada e equipada uma editora cartonera – ou seja, que se aproveita de papelão e material coletado para a produção de seus livros, escritos pelos membros da comunidade. Paralelamente, o projeto promove também oficinas de pintura para as capas e de encadernação. Ele foi batizado em homenagem a Gilda Godoy, criadora e gestora da cooperativa de reciclagem Coco e Cia., que realiza o trabalho de coleta, separação e destinação correta das toneladas de material reciclado que são descartadas pelos moradores e turistas da cidade, atuando também como “fornecedora” para a editora.

Gilda Cartonera busca desmistificar que arte, cultura e educação são para poucos”, conta João Ribeiro, idealizador da proposta, “e mostra que o livro pode ser algo acessível, que o autor pode ser um semelhante ou você próprio. Além disso, uma editora cartonera tira o leitor de sua condição solitária e o conduz ao universo coletivo, se traduz e se transforma em um movimento literário, social e estético. Esse projeto nos mostra o poder transformador dos livros e seu potencial enorme de propagação. A intenção é que as histórias e poesias continuem se espalhando, se eternizando. Que, no lugar de espalhar lixo pela nossa bela cidade, nós possamos reciclar esse material e espalhar arte, poesia, literatura, esperança e liberdade por todos os cantos de Ubatuba.”

Morador da cidade há sete anos, João explica que ela é “conhecida pela beleza de suas praias, cachoeiras e Mata Atlântica, porém é visível a falta de investimentos em áreas além do turismo. Saneamento, preservação ambiental, inclusão social e cultura são segmentos muitas vezes ignorados pelo poder público”. Ele conta que unir consciência ambiental, inclusão social e cultura está na essência de Gilda Cartonera.

Imagem colorida de um trabalho artístico do projeto Gilda Cartonera, o qual aproveita papelão e material coletado para a produção de livros. Na foto é mostrado um livro confeccionado com este material e uma pintura na capa.
(imagem: divulgação/Gilda Cartonera)

Livros já realizados

Gilda Cartonera pretende focar em temas sensíveis às comunidades tradicionais de Ubatuba, como quilombolas, indígenas e caiçaras, de forma que os livros, tanto como objetos materiais quanto como poesia e informação, estejam próximos daquela população.

Conforme o texto do projeto explica, “as páginas são costuradas e as capas de papelão são pintadas uma a uma, à mão. São mãos que coletam e reciclam, mãos de diversas cores. Mãos que aplaudem a arte, a vida e a força da transformação; mãos que varrem o preconceito e tiram a venda dos olhos de pessoas que não enxergam o problema ambiental. Mãos que escrevem uma nova história para Ubatuba”.

Três obras já foram concluídas. Conheça agora um pouco de cada uma delas, nas palavras do idealizador João Ribeiro.

O caminho do lixo: “Livro escrito por Gilda Godoy, que alerta sobre a importância do trabalho das catadoras em Ubatuba e conta um pouco da história da cooperativa de reciclagem Coco e Cia. O livro foi encadernado, teve a capa pintada pelos próprios trabalhadores da cooperativa e foi distribuído em escolas municipais da cidade”.

Pra todo povo, pra toda gente: “Uma antologia de poesias faladas do coletivo Slam Independente, de Ubatuba, que recita poesias e faz batalhas de rimas em espaços públicos da cidade. Muitas poesias da coletânea têm algum tipo de crítica social, denunciando o racismo, a misoginia, a desigualdade social e a gentrificação de Ubatuba, entre outros temas”.

Úrsula: “De Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira, que, por ser mulher negra, havia sofrido um ‘apagamento histórico’, sendo redescoberta apenas recentemente. Para este livro, foi feita uma roda de leitura na biblioteca municipal, na qual cada participante encadernou e pintou a capa de seu livro e pôde debater a obra, que denuncia a escravidão e o patriarcado. Também foram destacadas a importância da autora e a contextualização histórica da obra”.