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Sob o brilho de um cometa: homenagem aos 80 anos de Marília Pêra
publicado em:
22/01/2023 - 10:00
22/01/2023 - 10:00
por Icaro dos Santos Mello
Marília Pêra (1943-2015) é parte do panteão de artistas cuja história de vida se mescla com a própria história da arte brasileira. Com uma versatilidade e vitalidade incomparáveis, a atriz – que faleceu em 2015 – viveu o teatro desde os 4 anos de idade (embora sua primeira “entrada em um palco” tenha sido com menos de 1 mês de vida, numa cena de um espetáculo que precisava de um bebê, nos braços de uma atriz amiga de sua mãe). Bailarina, cantora, atriz, diretora, coreógrafa e produtora, Marília completaria 80 anos em 2023 e foi dona de uma carreira de mais de 60 anos, tendo atuado em meia centena de espetáculos, além de dezenas de filmes e novelas, e como cantora lançou cinco álbuns.
Foi agraciada com mais de 40 premiações, entre elas três prêmios Moliére de Teatro, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos Teatrais, pela primeira vez em 1972 e mais seis vezes depois de ser renomeado Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prêmio Shell de Teatro e o Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, além de prêmios no Festival de cinema de Gramado, no Festival internacional de cinema de Cartagena, no Festival internacional de cinema de Havana e nas premiações estadunidenses New York Film Critics Circle Awards, National Society of Film Critics Awards e Boston Society of Film Critics Awards.
“Eu costumo dizer muitas vezes que a minha mãe foi um cometa, desde o começo até o fim, de conquistas e intensidade, de arranques. Muita garra, muita coragem e muita gana de fazer, de fazer o nome dela, de fazer o talento dela caber, de explorar todas as camadas”: assim define a atriz Nina Morena – filha de Marília Pêra – o impacto da mãe na história da arte e do país.
Filha e neta de artistas da cena, Marília atuou profissionalmente como bailarina dos 14 aos 21 anos. A artista protagonizou momentos marcantes do teatro brasileiro: em 1968, em plena ditadura militar, atuou em Roda viva, espetáculo musical que marca a estreia de Chico Buarque como dramaturgo e que teve direção de Zé Celso. Foi em uma apresentação desse espetáculo, em São Paulo, que o Teatro Ruth Escobar foi invadido pelo Comando de Caça aos Comunistas (organização paramilitar de extrema direita, composta de estudantes, policiais e intelectuais favoráveis à ditadura militar brasileira), que depredaram o espaço e agrediram os artistas.
Mas a versatilidade de Marília transcende a interpretação, tendo ela produzido, dirigido e coreografado diversos espetáculos. Em 1986, Marília desempenhou essas três funções no espetáculo satírico O mistério de Irma Vap, de Charles Ludlam. Estrelada por Marco Nanini e Ney Latorraca, a peça ficou em cartaz por incríveis 11 anos.
Nina nos conta das influências de sua mãe em sua própria carreira, desde sua infância: “Eu gostava de ver minha mãe em cena, eu desenhava toda a peça. Minha mãe guardou esses desenhos até o fim. Eu começo e termino muito como a minha mãe, ela é parte integral das minhas referências, da minha criação, essa coisa da versatilidade, que ela tinha, que eu levo para minha vida de atriz. Há atores que vão desenvolvendo um ‘personagem’, um estilo, e vão se aperfeiçoando. E há atores mais versáteis, que uma hora estão fazendo isso, outra hora estão fazendo uma coisa completamente diferente. E essa versatilidade eu vejo muito na minha mãe, e ela sempre também me estimulou a fazer balé, aprender línguas, tocar piano, a fazer muitas coisas, porque, quanto mais coisas você fazia, melhor atriz você poderia vir a ser, e também uma pessoa melhor, claro”.
No cinema, Marília estrelou em O homem que comprou o mundo, em 1978, e atuou em obras emblemáticas, como Tieta do agreste (1996), Central do Brasil (1998), Vestido de noiva (2005) e Pixote, a lei do mais fraco (1980). Sobre esse último, Nina ressalta: “Há o processo do Pixote, que foi o primeiro trabalho da Fátima Toledo. Ela fez esse laboratório com os meninos. Minha mãe ficou lá na rua junto com eles. É um filme superforte. E há essa cena clássica em que o menino está mamando no peito dela, mas ele já é um menino grande, deve ter uns 12 anos já, e ele é um menino de rua e ela é uma prostituta. A cena é uma Pietá”.
Mesmo com o sucesso no teatro e no cinema, foi na televisão que Marília Pêra se tornou conhecida em todos os cantos do Brasil. Estreou como bailarina na TV Tupi e, em 1965, com o lançamento da TV Globo, foi convidada para integrar o elenco da emissora. No ano de estreia, protagonizou as novelas Rosinha do Sobrado, Padre Tião e A moreninha. Durante as décadas de carreira na televisão, atuou em grandes sucessos, como as minisséries O primo Basílio (1988) e Os Maias (2001), e as novelas O cafona (1971), Supermanoela (1974), Rainha da Sucata (1990) e Cobras & lagartos (2006). Nina percebeu a dimensão desse sucesso da mãe desde muito cedo. “Desde a escola. Como ela também fazia novela, e a novela é um veículo que está na casa das pessoas, as crianças sempre me perguntavam se eu era filha da Marília Pêra, se eu era filha daquela mulher da televisão. E, conforme você vai crescendo – eu sempre quis ser atriz –, vai entendendo os estágios: a mulher da televisão, a Marília Pêra, a diva”, diz.
Nina teve a oportunidade de atuar com a mãe em 2002, na peça A filha da..., dirigida por Elias Andreato. Marília e Nina interpretaram mãe e filha no espetáculo. “Foi difícil e foi incrível. Foi difícil como acho que é difícil trabalhar com qualquer monstro, fico um pouco intimidada. É outro nível”, conta Nina. “E foi incrível porque eu aprendi muito. Eu tinha 23 anos. Mas me desconcentrei muito também vendo ela trabalhando, porque ela era muito engraçada. Ela fazia minha mãe, mas era uma mãe completamente diferente, completamente louca. E eu tinha ataques de riso. Ela ficava brava comigo: ‘Não pode rir, Nina. Não pode rir’.”
Nina também nos conta das influências que a mãe tem em sua carreira atualmente. “Minha mãe falava para sempre observar, estar sempre observando pessoas, observando o ambiente, para absorver personagens, absorver um andar, uma voz, uma situação. Vou fazendo como se fosse um banco de dados na mente e, depois, recorro àquelas coisas”, diz. “Ela também sempre falava que o personagem vem muito através do corpo. E acho que isso eu herdei dela. De entender, que, se eu fosse fazer você... Qual é o seu corpo? Como é que ele anda? Como é que ele fala? Como é que ele mexe? Qual é o tempo? Como respira? A boca, que, quando mexe o braço, a boca faz não sei o quê. Sabe, pequenas coisas que você vai conectando. Para mim faz sentido esse processo, através do entendimento de como as coisas se organizam nesse corpo, a cabeça vem também, o pensamento.”
Nestes sete anos sem Marília Pêra, seu brilho permanece, como a memória de um astro que por gerações permanece adornando nosso céu. Seguimos com a memória de uma atriz que se entregou à arte, e ao ofício de artista, com toda a fibra de sua existência. Sua intensidade, criatividade e liberdade para experimentar estão gravadas na história da arte brasileira e na memória de todos que pudemos ser tocados por seu trabalho. “Ser criativa, poder se jogar na vida e tentar novos mundos, isso também era minha mãe. Essas são as coisas que eu levo”, conclui Nina.
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