por André Felipe de Medeiros

Onírica é um não jogo” – é assim que o artista, engenheiro de software e pesquisador em artes visuais Carlos Praude explica sua obra, que, com a utilização da linguagem dos games, permite que o público interaja com um ambiente virtual compatível com diversas plataformas, como computadores e celulares. Diferentemente dos objetivos tão bem definidos dos jogos, entretanto, todo o cenário e suas possibilidades estão ali a favor da poesia.

>> Acompanhe o lançamento de Onírica, em 11 de maio, às 14h30, pelo Google Meet. Mais informações abaixo. Faça o download de Onírica para interagir com a obra.

Quem está acostumado com o mundo do videogame encontrará grande familiaridade com a obra, da movimentação pelas teclas W, A, S e D à perspectiva em primeira pessoa, mas as comparações param por aí. “Não há tempo para terminar um percurso, você não tem que matar ninguém nem coletar objetos”, explica o artista de Brasília. “Você tem que simplesmente se deslocar pelo espaço e apreciar as imagens e sonoridades que são apresentadas” – ou seja, é uma experiência que se baseia não nas regras do jogo, mas na própria interatividade e fruição do indivíduo.

“A ideia de Onírica surgiu de um sonho”, relembra ele. “Eu estava em um lugar muito alto e via um cristal rosa que flutuava no espaço. Ele submergia nas profundezas de uma água e depois subia. De certa forma, eu tinha certa interatividade com aquele objeto.” Ao acordar, Carlos fez desenhos e anotações que foram resgatados em sua memória cerca de um ano depois, em uma viagem à Chapada Diamantina, onde, como ele conta, “resolvi escrever Onírica, um projeto que tivesse a ver com esse repertório de imagens dali, que levam ao pensamento de um filósofo francês, Gaston Bachelard”. O projeto acabou sendo contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020.

“As imagens oníricas, na abordagem desse filósofo, estão associadas muitas vezes a um elemento da matéria – fogo, água, terra ou ar –, o que ele chama de imaginação material”, explica. “Quando nós sonhamos que estamos voando, por exemplo, temos uma representação da ascensão. Os mergulhos nas profundezas são aqueles sonhos bem íntimos, que levam para as questões do nosso interior. [Bachelard propõe] que geralmente sonhamos com uma ou duas matérias. Não existe uma dispersão no nosso inconsciente, uma poluição de imagens ou uma poluição sonora.”

Na tradução da inspiração no autor para o formato da obra, foi adicionado um “quinto elemento”, proveniente da cosmologia hindu: Akasha, o princípio original de todas as coisas e para o qual elas se destinam. Ao explorar o pequeno universo construído na obra, o espectador escala rochedos, mergulha nas águas e observa o fogo dentro desse conceito, que encapsula todos os elementos em paralelo com a arte computacional que construiu e permite o acesso do indivíduo, ou actante, a Onírica.

Carlos conta que a orientação para o processo criativo se baseou também na Teoria Ator-Rede (TAR), uma pesquisa que vem das ciências sociais e que já havia inspirado o artista em trabalhos passados, assim como em suas teses acadêmicas. “Existe um conceito na TAR chamado de inscrições”, explica ele. “É tudo que regula qualquer associação entre os actantes – o contrato entre duas pessoas ou empresas ou uma certidão de casamento, por exemplo. No caso de Onírica, a inscrição-chave era a poesia.”

Há referência direta à poética do escritor Manoel de Barros. Suas palavras definem o repertório dos elementos materiais que constituem a obra – versos como “Silêncio das pedras / Não tem altura o silêncio das pedras” e “Fui criado no mato e aprendi a gostar das / coisinhas no chão” ajudam a definir os elementos que constituem a paisagem a ser explorada. Para Carlos, a obra de Barros é interessante “porque ele traz a poesia para um campo minimalista, como se você estivesse olhando para a água, mas ali estivesse buscando seu eu profundo, ou as ‘coisinhas’ que tem pelo chão, e como aquele chão é do tamanho do universo”.

A obra, pensada inicialmente como uma instalação interativa em um espaço expositivo, leva para as telas as vivências de Carlos com a realidade virtual. Ele relembra uma situação com o Grupo Teatro do Instante, também de Brasília, quando distribuiu alguns óculos VR a membros da plateia. “Achei fantástica essa experiência de como a arte computacional tem um potencial de afeto, sobretudo em relação à percepção”, explica o artista. “Ela é muito subjetiva, cada pessoa percebe de uma forma diferente. Houve pessoas que ficaram surpresas com as reações motoras. As pessoas sabiam que a água caindo nos olhos não era real, era uma imagem, mas elas não conseguiam controlar a reação de piscar os olhos. Houve casos de pessoas que precisaram tirar os óculos porque [o conteúdo] as afetou profundamente e elas choraram.”

Carlos comenta ter achado interessante os tipos de resposta que obteve durante o desenvolvimento de Onírica, vindos de pessoas que tiveram acesso à obra durante essa etapa: “Muitas vezes, queriam que eu incluísse alguma funcionalidade [nos comandos das interações], mas estaria caindo em uma linguagem comum de videogame, e o objetivo não é esse. Quero usar a poesia para trazer um pouco da irrealidade e tirar a gente do eixo comum. Acho que a arte tem uma função muito importante, que é tirar o ser do chão e colocá-lo em outro espaço, às vezes até com um pouco de desconforto para afetar a pessoa”.

“Nós vivemos em uma sociedade muito acelerada, é tudo muito corrido. Há a importância de desacelerar para prolongar o dia, o entardecer. Onírica procura puxar a pessoa para a calma, para o espaço contemplativo” – ou, como ele brinca: “Respira, você não tem que matar ninguém, só respira”.

Lançamento

O lançamento da plataforma acontece no dia 11 de maio, às 14h30, com participação de convidados que trabalharam no projeto. O evento acontece on-line, através da plataforma Google Meet – não é necessária inscrição prévia para participar do encontro.

Durante o evento, Carlos apresentará o processo criativo e os principais conceitos aplicados no projeto de pesquisa. Rita de Almeida Castro irá falar sobre a potência da arte e da tecnologia nas artes performativas e Suzete Venturelli sobre arte computacional.

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