por Maria Fernanda Vomero
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A ficção futurista do século passado trouxe a provocativa ideia de um porvir em que a tecnologia poderia se tornar um dos grandes algozes do humano. Androides, replicantes, robôs, máquinas dotadas de inteligência artificial e outros aparatos supercomputadorizados e cibernéticos, todos estariam a postos para desafiar a sobrevivência (ou a hegemonia?) da humanidade, com algumas exceções: aliados e aliadas que heroicamente se sacrificariam pela espécie humana. Na “longínqua” década de 1980, porém, alguns anos depois da estreia do hoje cult Blade runner (1982), filme do britânico Ridley Scott, a filósofa da ciência e ativista feminista estadunidense Donna Haraway publicava Manifesto ciborgue (1985), já defendendo o hibridismo de orgânico e inorgânico, corpo e máquina, natural e artificial, natureza e cultura, vivo e não vivo. Haraway teorizava sobre a superação dessas dicotomias originárias e universalizantes, sugerindo as noções de construção e de ambiguidade. A figura do ciborgue seria, então, disparadora dessa postura de estranhamento.
Quanta coisa mudou, avançou e se aperfeiçoou em quase 40 anos ─ a própria filósofa, por exemplo, agora investiga fabulações sobre o Chthuluceno, a era geopoética caracterizada por redes e interações tentaculares ininterruptas entre seres e entes diversos, numa experiência contínua de devir-com. Já há algum tempo temos discutido a impactante influência dos algoritmos em nosso imaginário, em nossa percepção de mundo e mesmo nas paixões políticas. Os aparatos tecnológicos vêm se tornando extensões da experiência cotidiana (ou até do próprio corpo); basta atentarmos à relação estabelecida com os celulares ─ Homo curvatus como mutação possível? E, depois de mais de dois anos de crise sanitária, de uma longa vivência de confinamento e isolamento social, transitando entre telas e plataformas digitais, usando máscaras faciais e lidando com sequelas de inúmeras ordens (físicas, psicológicas), constatamos quão frágeis e híbridos somos; máquinas menos biônicas do que gostaríamos.
Por isso, hoje e agora, no Brasil do século XXI, colocar em cena ─ em jogo, em tensão ─ essa experiência ambígua e frágil de ser corpo e virtualidade, indagando nosso lugar no mundo e no palco ético-político da existência, é uma proposta assertiva e acertada de Traved, palestra-performance concebida e interpretada pela multiartista e docente transdisciplinar Dodi Leal, com direção de Robson Catalunha. O próprio formato híbrido da obra conjuga reflexão e experiência, ficção e documento, matéria e desmaterialização. Trata-se de uma vivência convivial multi/transdimensional: estamos juntes ─ Dodi e nós, espectadoras e espectadores ─ ora fisicamente, ora virtualmente.
A palestra-performance reúne, no palco, presenças humanas e outras-que-humanas: uma escada metálica, uma bicicleta, a luz, cadeiras, headsets de realidade virtual 3D etc. Dodi parte do acidente que sofreu em 2015, quando andava de bicicleta e quebrou o cotovelo, para refletir sobre processos de transição e transformação. Não só ganhou uma placa de titânio e vários parafusos no cotovelo direito, como confirmou sua traição de gênero e acolheu essa “força estranha” (na letra de Caetano Veloso) que transmuta corpos em luz. Ressignificou a bicicleta, ressignificou a própria vulnerabilidade ─ fez dela resistência, agência, canto, encanto e teoria. A correia travada da bicicleta que a fez cair também a fez levantar travesti.
Travessia tecno-orgânica
Depois que Dodi, no alto da escada, encara os riscos de seu corpo-carne (ainda lidando de forma cautelosa com a bicicleta largada no chão), embarcamos todes em outra dimensão com os óculos de realidade virtual. E é nesse momento que nós, espectadoras e espectadores, nos damos conta de nossa porção ciborgue: “perdemos” corpo para expandir consciência e perspectiva. Não há fronteiras espaciais nem temporais; fluímos com tecno-organicidade ─ afinal, traved é travessia, atravessar, como diz Dodi em cena. A reflexão teórica acompanha um passeio no parque num dia de sol e drinks, ou um dueto entre mãe e filha no quintal de casa. O tempo é espiralar. O espaço é expansão. (Ora, que Ocidente é esse que separou pensamento e prática, signo e carne?) A dramaturgia se baseia no artigo Biotecnologias da cena: generética do corpoluz e filosofia estética das encruzitravas (2021), escrito pela artista.
Veja também:
>> Um papo com Dodi Leal sobre transgeneridade, corpo, tecnologia e arte
Por fim, voltamos à materialidade; à concretude das coisas; à radiografia do cotovelo, ossos e titânio; ao corpo-carne; e à bicicleta. Nesse momento, acontece uma cena das mais bonitas: Dodi reencontra a bicicleta. Ambas se reconhecem, tateiam-se. E, na dança que se estabelece entre as duas, desta vez é Dodi quem convida a bicicleta ao risco, à vivência da fragilidade, à travessia. Voa, bici, voa!
Vale ressaltar a precisão não só da direção, mas também do roteiro de vídeo de Robson Catalunha, que vem pesquisando os desdobramentos da relação entre artes cênicas e realidade virtual ─ sua performance O híbrido em formato digital 360º é um exemplo. Destaque também para o desenho de luz, criação conjunta entre a iluminadora Lua Melo Franco, Dodi e Catalunha. Em Traved, a luz se revela presença, reflexão e dispositivo. A captação do vídeo é de André Stefano, com edição de Rodrigo Rímoli.
Eu já havia assistido a uma versão de Traved em novembro de 2021, durante sua curta temporada no Centro Cultural da Diversidade, em São Paulo. É interessante notar que o trabalho permanece em constante lapidação, buscando diálogo com o público (ao final da sessão, a equipe sempre convida a uma conversa). O hibridismo de carne e metal, humano e máquina, tem aparecido em outras obras recentes, a exemplo do filme Titane (2021), de Julia Ducournau, ganhador da Palma de Ouro em Cannes. Contudo, Traved vai além: ao usar a realidade virtual e a luz como dimensões de convívio, faz do hibridismo não só um tema, mas também ─ e sobretudo ─ uma experiência. Atualiza os “espect-atores” e as “espect-atrizes” de Augusto Boal transformando-os em espectadores ciborgues. O espetáculo redimensiona, assim, os interstícios entre criadores e criaturas da cena, sem travas. Afinal, permitir que o público se faça realmente presente no palco, na cena, na arena política, é uma contribuição importante na desafiadora travessia da sociedade brasileira de hoje.
Maria Fernanda Vomero é jornalista, performer e doutoranda em pedagogia do teatro pela Universidade de São Paulo (USP), com investigação sobre artes cênicas, processos artísticos e experiência política na América Latina. No mestrado, debruçou-se sobre as experiências teatrais realizadas na Palestina. Atua como provocadora cênica em diversos coletivos de São Paulo desde 2014. Foi curadora das ações pedagógicas da Mostra internacional de teatro de São Paulo (MITsp) entre 2015 e 2020. Escreveu o livro A Digna 10 anos (2022), sobre a trajetória do coletivo teatral paulistano A Digna.