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por Daniel Galera
Em Ways of being [Maneiras de ser], um livro ainda inédito no Brasil, o artista plástico e jornalista inglês James Bridle argumenta que o desenvolvimento da inteligência artificial (IA) – essa que está nos carros autônomos, nos assistentes virtuais, na administração de grandes corporações e, é claro, nos videogames – se baseia numa noção limitada e equivocada do que é, na verdade, a inteligência. O conceito hegemônico de inteligência é, por um lado, demasiado antropocêntrico – centrado na percepção e na experiência dos seres humanos apenas – e, por outro, focado demais na obtenção de resultados quantitativos que favoreçam somente a competição e a eficiência capitalista.
Bridle se esforça para demonstrar que não existe somente uma inteligência, e sim muitas: cada ser vivo possui a sua própria, baseada em sua maneira de ser, nas características de seu corpo e nas suas possibilidades de ação no mundo. Para ele, as plantas, que se comunicam no subsolo através de uma rede de raízes e fungos e são capazes de ouvir sons e alertar umas às outras da presença de insetos predadores, são sem dúvida inteligentes. A inteligência é um fenômeno sempre ecológico, não localizado no ser inteligente isolado, mas, sim, nas suas relações com os outros seres e seu ambiente como um todo. Entender isso nos ajudaria inclusive a criar, com nossa tecnologia computacional, inteligências artificiais mais ricas e variadas, capazes de participar da construção de mundos melhores e de conviver conosco em pé de igualdade, numa comunidade de inteligências diferentes entre si, mas abertas umas às outras.
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Ao mesmo tempo que leio (e traduzo) o livro, encontrei em um game essa mesma reflexão sobre como diferentes inteligências podem colaborar em mútuo benefício. O jogo se chama In other waters, um título independente lançado em 2020 para PCs e Switch, de autoria de Gareth Damian Martin, desenvolvedor e crítico de games e também, como James Bridle, artista plástico. Nele, assumimos o controle de uma inteligência artificial encarregada de ajudar a xenobióloga (uma bióloga especializada em estudar criaturas alienígenas) Ellery Vas a navegar pelo leito oceânico do planeta Gliese 667Cc. Ellery precisa catalogar novas espécies para a sua empregadora Balkan, uma empresa especializada em colonizar e explorar biomas de outros planetas após a destruição do ecossistema terrestre. Além disso, ela quer descobrir o mistério por trás do chamado de socorro enviado por uma colega desaparecida.
Há, portanto, um mistério a ser elucidado e uma história sendo contada. A principal atividade envolvida no jogo, no entanto, é a de exploração lenta e meticulosa desse ecossistema marítimo alienígena. E o que difere In other waters de praticamente qualquer outro jogo que você vai encontrar por aí é a interface por meio da qual essa exploração pode ser realizada. No papel da inteligência artificial que está auxiliando Ellery, temos à disposição na tela somente um mapa estilizado e minimalista, equipado com radar e alguns comandos. Enquanto a cientista conversa conosco apontando a direção que gostaria de tomar e descrevendo o fundo do mar e suas criaturas, executamos ações como coletar amostras de seres vivos, acionar a propulsão do traje de mergulho para que Ellery se desloque até certo local, reabastecer estoques de oxigênio e energia, escanear o ambiente et cetera.
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A primeira, e mais explícita, consequência dessa escolha de design é que todos os cenários, criaturas, personagens e elementos narrativos precisam ser imaginados pelo jogador a partir dos sinais no mapa e das descrições sucintas, porém precisas e instigantes, que a cientista fornece a todo momento para a IA. In other waters é, nesse sentido, quase como um “text adventure”, ou aventura textual: jogos em que tudo se dá por escrito e nos quais, como nos RPGs de mesa, a construção de mundo conta em grande medida com a imaginação do jogador. Não que a interface seja simplista ou neutra: pelo contrário, a estética minimalista é muito bonita, com tons de verde-água, amarelo e vermelho que, por meio de alternâncias e transições, comunicam atmosferas relevantes ao que acontece. E a operação dos botões e comandos é complexa e atraente, cheia de sons e animações agradáveis, que ajudam a nos manter engajados em procedimentos que podem, sim, se tornar um tanto repetitivos à medida que as horas passam.
A segunda consequência das escolhas de design de In other waters é menos evidente, mas vai se infiltrando aos poucos na experiência do jogador e poderá ou não, dependendo de cada pessoa, se tornar assunto de reflexão. Você, o jogador da vida real, está operando uma inteligência artificial projetada para ser como tantas outras IAs do nosso mundo real: uma ferramenta eficiente nas poucas coisas que faz, uma ajudante de seres humanos altamente especializada em certas tarefas. Por outro lado, a cientista Ellery Vas, a protagonista humana do jogo, está confinada a um traje tecnológico que depende da sua supervisão para funcionar; além disso, diferentemente de você, no mundo real (fora do jogo) ela é puro código, uma personagem previamente escrita que responde aos inputs de um software interativo. O jogo nos convida a pensar sobre as limitações de cada uma dessas duas inteligências no contexto em que se encontram e sugere que algo maior, mais rico e cheio de potenciais pode surgir da colaboração delas. O jogo me força a intervir na história somente através dessa perspectiva minimalista e limitada da IA, mas me fornece, através de textos descritivos e sutis estímulos visuais e sonoros, subsídios para que eu imagine, em grande riqueza de detalhes, um mundo alienígena habitado por uma miríade de seres vivos. Não faz sentido pensar qual dessas duas inteligências está sujeita à outra, qual é superior ou inferior. Elas só fazem sentido juntas.
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Por essas características, In other waters me parece uma elaboração bem pensada das mesmas ideias presentes no livro de Bridle, só que na linguagem procedimental dos videogames. O jogo nos faz atuar dentro de uma colaboração entre inteligências orgânicas e tecnológicas [simuladas, mas também reais, se colocarmos na equação o self orgânico do jogador humano e o self (?) digital do código do jogo]. A linguagem escrita descreve o ambiente e os seres, os comandos repetitivos produzem resultados, e o que vai emergindo é um mundo todo, uma ecologia.
Contribuem para esse resultado, é importante ressaltar, a profundidade científica e a riqueza de detalhes a respeito das criaturas marítimas e das paisagens naturais do planeta. Cada espécie descrita parece possível e ao mesmo tempo surpreendente. Elas possuem cascos translúcidos, pólipos, pedúnculos; entram em simbiose umas com as outras, cultivam bactérias, são presas e predadoras num ecossistema que soa incrivelmente verossímil (o jogo não tem tradução para o português; é bom estar com o inglês em dia e, quem sabe, ter um dicionário à mão para os termos científicos). Lá pelas tantas, a interface se expande para dar acesso a um arquivo de taxonomia em que todas as criaturas coletadas são classificadas; preenchendo suas lacunas a partir dos dados coletados nas explorações, vamos tendo acesso a esboços das criaturas feitos pela cientista. Para quem se interessa por biologia e tem um mínimo de conhecimento e vocabulário, In other waters oferece o prazer adicional de apresentar um universo biológico tão fictício quando palpável.
In other waters, como tantos jogos, é acima de tudo um passatempo, um percurso metódico por certas tarefas e objetivos. Mas, também como em tantos outros jogos, o que aflora do convívio continuado com seus procedimentos e estéticas é uma sensação de estar habitando uma ideia, participando ativamente da construção de uma mensagem. E a mensagem aqui, de profundo caráter ecológico, parece ser a de que precisamos das outras inteligências – inclusive as artificiais – como aliadas na busca por sentido, e por transformações benéficas, em mundos que são compartilhados. Toda inteligência é limitada. Porém, a partir de uma interação interessada, paciente e atenta, inteligências unem forças para descortinar o fascínio do mundo, seja ele o nosso ou o dos outros; um fascínio que pode, ele sim, parecer infinito.