“Plasma”: acessórios de moda feitos para a distopia
18/10/2022 - 14:34
por André Felipe de Medeiros
Distopia é o conceito utilizado na arte e na filosofia para descrever uma realidade devastada por consequências políticas, tecnológicas ou ambientais – para resumir, é o oposto de uma utopia. A ideia de um futuro no qual o planeta ruma a essas condições é de grande inspiração para artistas ao redor do mundo nas mais diversas áreas, da literatura à ilustração, principalmente quando a realidade vivida em determinada época aponta para essa possibilidade, ou mesmo inevitabilidade.
Vêm daí a inspiração e todo o processo criativo que direcionaram o projeto Plasma, que se materializa na forma de uma marca de moda que produz acessórios como se atuasse em um contexto distópico muito específico. O pano de fundo é o Protocolo de Montreal, assinado em 1987 para diminuir as emissões de clorofluorcarbonetos (CFCs) que causariam um novo buraco na camada de ozônio sobre a região ártica, de acordo com cientistas na época, no ano de 2020. Na realidade imaginada pelo projeto, esse protocolo não teria sido assinado, e as pessoas nesta década em voga precisariam se adaptar às consequências – no caso, uma perigosa incidência de raios ultravioleta (UV) em seu dia a dia. Paralelamente, Plasma conversa com questões ambientais pelas quais passamos hoje em dia, quando a moda é uma das indústrias mais poluentes, seja pelo lixo gerado no descarte, seja, até mesmo, pelo uso e manutenção dos recursos hídricos.
O conceito é a crítica
Quem vê os dois produtos disponíveis inicialmente pelo projeto – um chapéu de modelo bucket e uma bolsa – não imagina quanta pesquisa está envolvida na concepção de ambos, para muito além do seu visual. E isso começa pela escolha de materiais, tendo sido feitos, respectivamente, em biotecido de kombucha e crochê com fios de jeans reciclados, que indicam práticas sustentáveis não só em uma distopia, mas também no estado ambiental em que vivemos hoje.
“A proposta da Plasma é ser uma marca de regeneração”, explica a diretora criativa Iane Cabral. “É uma crítica a esta moda predatória e extrativista, mas também é uma crítica ao que estamos fazendo agora. A gente usa a moda e o design, a gente se apropria dessas linguagens para experienciar o que seria esse futuro e trazê-lo ao presente. É pensar na moda com tecnologias vestíveis e de biofabricação, e é desenvolver e cultivar biomateriais. Nesta primeira coleção, lidamos com a questão da água, com produtos que utilizam menos recursos para ser feitos, e com o lixo, porque essa roupa foi pensada tanto em material reciclado quanto em substâncias [orgânicas] que você poderia ‘jogar pela janela’ sem ter culpa.”
Iane, que é também idealizadora do Setor W (laboratório experimental de pesquisa em tecnologias vestíveis), foi nomeada pela Regenerative Futures, pela Gucci Equilibrium e pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das jovens que estão construindo futuros regenerativos. Ela conta que a primeira ideia para a marca era bastante diferente do que podemos ver hoje, sendo pensada mais como uma coleção de camisetas que seguiam os mesmos ideais. Após muita pesquisa e prototipagem – fase do projeto contemplada pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 –, ficou decidido focar os esforços nos acessórios.
“A ideia inicial era que as pessoas vivenciassem essas novas tecnologias”, comenta Iane. “Então, se a gente pudesse desenvolvê-las e criá-las, já seria um bom desafio e um bom começo. Pensando em 2020, se não tivesse existido o Protocolo de Montreal, como as pessoas se vestiriam nesse momento?”, continua a artista. “Como seria uma marca nesse cenário?”
Estética e design
Ecobags são populares já há algum tempo e não devem sair de moda tão cedo. São bolsas que substituem o uso de sacolas plásticas, que, em sua descartabilidade, poderiam gerar mais lixo. A desenvolvida pela Plasma está ligada ao conceito da marca primeiramente por isso. Há também a questão já mencionada da escolha dos materiais – fios de jeans reciclados – e, principalmente, a presença de um sensor ultravioleta que percebe se a incidência solar é “ok, tensa ou ruim” e notifica o usuário através de sons. Seria um acessório útil a qualquer habitante da realidade distópica imaginada para o 2020 com um buraco na camada de ozônio sobre o Ártico.
Já o chamado biobucket é feito com kombucha, um material criado a partir de bactérias e escolhido para a peça por uma série de suas propriedades, como a tensão do tecido, e suas características contra o fogo e contra os raios UV. “É um material vivo, então é um design cultivado”, explica Iane. “Eu começo a estética pensando em algo sobre o qual não tenho tanto controle e também na questão do tempo. São materiais que, ao longo do processo, podem se transformar muito. É algo de que o criador não tem muito controle, mas a gente vai se adequando.”
A artista continua: “Queremos passar também que a tecnologia nem sempre é do futuro, ela pode ser ancestral e biológica. A gente está muito acostumada a essa coisa dura de pensar que tecnologia é só computador, é só eletrônica, então propomos uma tecnologia milenar chinesa, a kombucha. É uma tecnologia que estava há muito tempo ali usada na alimentação, mas que vem hoje para a moda”.
A estética proposta pela Plasma nas duas peças de sua primeira coleção foi construída com base na ideia de coexistência com esse material vivo. A artista conta que grande parte das ideias foi desenvolvida com pesquisa, mas muito veio também do design ficcional: “Você cria essas teorias. Vem muito da imaginação. Muito da moda vem do mood board, de seguir determinadas inspirações. Acho que a moda que a Plasma quer seguir e ditar também neste novo momento é quebrar essas técnicas. Como lidar com uma coisa que mostra outras estéticas que vão muito de encontro com o que você conseguiria programar com um computador?”.
Marca fora do consumo da moda
Para todos os efeitos, Plasma atende a todos os requisitos para ser uma marca de moda como qualquer outra: há uma loja on-line, um canal de comunicação aberto com o público (o Instagram) e um fashion film que exibe a coleção. Em todos os outros aspectos, entretanto, somos lembrados que estamos diante de um projeto de design ligado à arte, e não de uma empresa em busca de seu market share.
“O produto é a marca, mas a ideia inicial é a provocação, é a conscientização”, conta Iane. “O processo realmente importa. Todo artista fala isso, mas neste momento realmente é [verdade], porque é uma loja-laboratório, que foi criada para virar uma marca, e uma marca que produz o seu próprio material.” As escolhas feitas para o desenvolvimento da marca não são economicamente viáveis por não visarem ao lucro nem mesmo à contenção de despesas. “Por isso foi interessante ter um edital junto com o projeto”, explica ela. “Se fosse algo relacionado ao mercado, a gente teria fracassado.”
Iane explica, ainda, que a conscientização do público é um dos pilares do projeto: “A ideia da marca é que as pessoas possam vivenciar essas tecnologias, mas a gente sabe também que há um embate, porque há crise financeira, e os preços das peças, ainda que justos, são altos. Então, eu acho que a Plasma também tem esse papel de desconstruir esse consumo, essa visão de mercado, porque é uma marca que você encomenda [a peça] para ser feita, não tem estoque. E não é só porque é uma marca pequena, não temos necessidade de ter o produto se você não comprou por eles. Isso é dar o valor real para o material e para o tempo em que ele é feito”.
Há muitos desafios na produção do biotecido, mesmo com um laboratório parceiro, e os sensores UV para a ecobag precisam ser importados – dois fatores que impossibilitariam a produção das peças em larga escala. Como não há loja física, existe a intenção de os produtos serem levados a espaços como museus e galerias, para o público ter a chance de conhecê-los de perto. O mesmo deve acontecer com a próxima coleção da Plasma. “Ela questiona a cultura dos cristais”, revela a artista. “Poucas pessoas sabem, mas os cristais têm um percurso muito complicado em relação à escravidão e à exploração de mão de obra.” No caso da futura coleção, os cristais serão cultivados dentro de brincos, feitos com material reciclado de lixo eletrônico, como telefones celulares antigos, e técnicas atuais, como a impressão 3D.
“Hoje, a gente vê uma meta alcançada com esses produtos realizados, mesmo que totalmente diferentes do que a gente tinha imaginado no início, que seria uma coleção de camisetas”, conta Iane, que, diante do estado pandêmico iniciado em 2020 e com tantas ameaças ao meio ambiente, brinca: “O agora já é mais distópico do que tudo”.