por William Nunes de Santana

 

A lista de obras dos dramaturgos Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianinha, ganhou recentemente mais um título, até então inédito: A pipa de Diógenes. A peça foi lançada em livro – resultado de uma pesquisa do projeto Rumos Itaú Cultural 2019-2020 –, organizado pelas pesquisadoras Lígia Balista e Juliana Caldas e distribuído pela editora Jabuticaba.

Segundo Lígia, a obra nos apresenta dois jovens dramaturgos em início de carreira: “É basicamente entender um pouquinho mais desse momento de formação deles”, ela conta. Sem uma data exata de quando a peça foi escrita, as pesquisas indicam que seja entre 1955 e 1957, quando ambos fundaram o Teatro Paulista do Estudante (TPE) – com Vera Gertel – e anos antes de Guarnieri estrear com Eles não usam black-tie (1958), já com o Teatro de Arena.

“Eu estudava teatro brasileiro havia alguns anos e em 2019 me aproximei do acervo do Guarnieri”, diz a pesquisadora. “Quando a gente estuda teatro brasileiro, não dá para deixar de pesquisá-los.” Entre tantos tipos de material encontrado, o trabalho acabou se direcionando para a peça A pipa de Diógenes, que aborda o movimento estudantil na década de 1950 por meio de uma greve.

Nesta entrevista, Lígia fala da pesquisa no acervo de Guarnieri, da trama da peça e de como ela se insere no que já conhecemos dos dois dramaturgos.

Capa do livro A pipa de Diógenes que traz a peça inédita escrita por Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho.
Capa do livro A pipa de Diógenes que traz a peça inédita escrita por Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho (imagem: divulgação)

O que você encontrou no acervo de Guarnieri? Existem outros materiais inéditos além da peça A pipa de Diógenes?

Sim, são basicamente dois grupos de material que a família doou: um acervo que se chama Gianfrancesco Guarnieri e outro que se chama Cecília Thompson, doado pela primeira esposa dele. Nos dois há vários tipos de material, coisas mais pessoais – como fotos da família, dos pais de Guarnieri, da infância dele – e muitas cartas, programas de teatro, bilhetinhos, que a gente tem até dificuldade de classificar.

Há textos dramatúrgicos, mas não só, alguns em parceria e vários incompletos. Há material com o [músico] Edu Lobo, do show musical Assim como o pão de cada dia, e com a [dramaturga] Consuelo de Castro, A saga, incompleto. A pipa de Diógenes era um dos textos que estavam completos e com mais de uma versão. Fui centrando-o como objeto de estudo para ser a publicação do livro também um pouco por isso.

Qual é a trama da peça?

Uma greve de estudantes universitários que acontece por causa de conflitos sobre a contratação de um professor na Faculdade de Filosofia de São Paulo. São estudantes que dividem uma moradia e que participam do grêmio da faculdade, alguns mais engajados e outros menos. A peça acontece toda na casa, na república estudantil. Não vemos cenas da greve, cenas dessas multidões ou espaços mais coletivos, mas, sim, aquela coletividade privada na casa.

A trama da peça se dá em torno do anúncio da greve e do fortalecimento de uma luta em relação à direção da faculdade e à contratação do professor – uma polêmica sobre o jeito como o concurso é feito, deixaram de lado uma candidatura de profissionais progressistas.

Sabemos que pouco tempo depois vem a ditadura militar, instaurada em 1964. Como essa trama está inserida no contexto social da época – a gente está falando de 1950 ou meados da década de 1950, é isso?

Tudo indica que sim, apesar de a gente não achar uma datação tão precisa ainda, talvez 1955, 1956, 1957. Outros membros do Teatro Paulista do Estudantes não conheciam o texto, apesar de haver, numa das versões, nomes dos personagens ligados a atores.

Nesse sentido, acho que a peça tem vários elementos no texto – e nas pesquisas que fui fazendo em torno dessa produção – que se ligam bastante ao contexto de 1950. Claro que há discussões sobre o que é democracia, como fazer uma luta política, a perseguição aos comunistas etc., mas acho mais importante a gente datar mesmo e contextualizá-la – a relação com o pós-guerra, o governo de Getúlio Vargas dos anos 1950 – do que necessariamente [relacioná-las] aos significados que esses temas ganham pós-1964.

Há o teatro engajado e politicamente de esquerda, mas eu tomaria o cuidado de não dizer que ela é inteiramente uma peça que bate de frente com o que acontece depois.

Guarnieri é muito conhecido por esse teatro político e de resistência e por tudo que o Teatro de Arena se tornaria depois. Naquele momento, meados da década de 1950, ele ainda estava no começo da carreira. O que você consegue perceber de ideias e ideais dele, nesse desenvolvimento como dramaturgo?

Eles são muito jovens ainda; ele e o Vianinha estão ali nos 18, 20 anos, mas já tinham um percurso tanto de luta política – estudantes organizados e do Partido Comunista – quanto de experiências de escrita também.

Sua peça tida como a primeira é Eles não usam black-tie, escrita nessa época também, mas encenada em 1958, um supersucesso, virou marco. Ele tinha, no entanto, escrito uma peça quando estava na escola, com cerca de 14 anos, intitulada Sombras do passado. A pipa de Diógenes compõe um pouco dessas experiências anteriores.

Há experimentações de como criar personagens, como construir diálogos. O que acho muito forte nessa peça são os personagens que propõem esse embate entre posição individual e posição coletiva. A peça traz, nesse sentido, um pouco dessa experimentação. Podemos também considerá-la uma produção coletiva a muitas mãos.

O que se vê de diferente nas versões encontradas de A pipa de Diógenes? Ou nas anotações dos autores?

Para definir o texto para a produção do livro, estudamos bastante essas versões. São basicamente três documentos diferentes.

O primeiro é todo escrito à mão e vem assinado pelo Guarnieri, pelo Vianinha e pelo Pedro Paulo Uzeda. O documento, em que há caligrafias diferentes, várias cores de canetas, é mais longo porque é escrito à mão. Ainda há os estudantes na casa, então a peça se manteve no grosso dela, mas há alterações importantes na construção de personagens – havia mais personagens também –, diálogos e o jeito como ela começa.

O Guarnieri menciona o Pedro Paulo Uzeda em uma entrevista, na década de 1980, quando se refere à peça como juvenil. Usa uns adjetivos desprezando a peça deles. O Pedro Paulo Uzeda não seguiu a carreira no teatro, seu nome já não aparece na segunda versão.

A segunda versão da peça é assinada pelo Guarnieri e pelo Oduvaldo Vianna Filho e já está datilografada. Nela há alteração de estrutura no começo, por exemplo, e há ainda muita anotação à mão, troca de pequenas coisas nas falas, troca na ordem de uma fala, de algum vocabulário e de cenas e, às vezes, correções. Eles anotavam: “correção do primeiro ato”, “correção do segundo ato”, por exemplo.

A terceira versão foi digitada pela filha do Guarnieri, a Mariana Guarnieri, quando o pai ainda era vivo – o Vianinha faleceu muito cedo [em 1974]. Ela digitou algumas peças em razão de o material estar se deteriorando.

Ela se baseou na segunda versão, que é o texto mais acabado, mas há alguns espaços quando não é possível entender a caligrafia. Usamos muito essa versão dela para estabelecer o texto final, mas voltando para as duas anteriores. Alterávamos conforme íamos estudando o material e houve trechos que realmente ficaram do jeito como ela digitou, que era o que fazia mais sentido.

Manuscrito da primeira versão da peça A pipa de Diógenes, de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho.
Manuscrito da primeira versão da peça A pipa de Diógenes (imagem: Acervo Gianfrancesco Guarnieri/Centro de Documentação Teatral da Universidade de São Paulo)

Olhando para o livro pronto e com todos esses estudos sobre a obra, como você acha que a peça se insere nesse conjunto de obras de Guarnieri e Vianinha?  O que ela acrescenta ao que já conhecemos dos autores?

É basicamente entender um pouquinho mais desse momento de formação deles. Nós nos mantemos ainda na questão da grafia posterior que estudos críticos apontam de relevância, que de fato começa já no fim da década de 1950 e início de 1960. De toda forma, a peça traz esse gostinho de experimentos.

E, nesse sentido, eles estão se colocando como dramaturgos. Os dois eram atores do Teatro Paulista de Estudantes e discutiam a organização política e suas esferas, mas ali estavam experimentando escrever – sobre um assunto político que lhes interessava, um pouco sobre grupos similares, atividades. Acho que nesse sentido é uma experimentação de criar uma dramaturgia brasileira. Há um pouco desse gostinho de ser um dramaturgo, de começar a escrever sobre o Brasil e assuntos de organização política.

Lançamento

A pipa de Diógenes já está disponível no site da editora Jabuticaba – acesse neste link – e, no dia 15 de outubro, às 16 horas, ocorre o lançamento presencial na Livraria da Tarde, na Rua Cônego Eugênio Leite, 956, em Pinheiros, São Paulo.

Veja também o debate que contou com a presença das organizadoras do livro e com os professores Elizabeth Azevedo e Rodrigo A. do Nascimento.

Veja também
Um jovem Lima Duarte aparece em cena do espetáculo O Tartufo, em 1964. Ele está olhando para frente, com uma expressão feliz, e com os braços abertos. Atrás dele é possível ver uma mulher.

Lima Conta Arena

A história de Lima Duarte pelo teatro passa, principalmente, pelo Arena, grupo no qual ele ficou por 10 anos