por Milena Buarque Lopes Bandeira

 

Quase saindo de cena e caindo do palco, próximo aos extintores de incêndio ou ao lado da saída de emergência ficam as intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras), profissionais responsáveis por traduzir peças teatrais para o público surdo. Ainda que tenha sido reconhecida em 2002 como meio legal de comunicação e expressão no Brasil, pela Lei no 10.436, a presença da Libras em espetáculos ainda encontra barreiras no meio teatral. Uma das razões para isso é a figura do intérprete, que precisa estar no palco para que possa se dirigir ao público.

“Hoje ficamos na cena, mas sempre os produtores e os diretores querem nos colocar cada vez mais no cantinho do palco. Brincamos que ficamos sempre perto dos extintores ou da saída de emergência. A nossa primeira preocupação quando vamos fazer uma visita técnica em um lugar em que nunca interpretamos é saber onde nós iremos ficar”, conta a arquiteta de acessibilidade Carolina Fomin, autora de uma pesquisa sobre o posicionamento do intérprete – questão que, segundo ela, ainda gera incômodos.

A compreensão de que o intérprete faz uma intermediação para o público surdo – e não substitui a cena – é recente para alguns grupos. Na visão da contadora de histórias Thalita Passos, instrutora de Libras, é comum que artistas considerem a pessoa surda como público do profissional que faz a tradução do português. “Nós estamos lá para passar a informação do que está acontecendo em cena. Hoje vemos que as pessoas estão começando a entender que a inclusão dos surdos não é só na escola, pois a pessoa não vive só da educação formal, ela também se forma em outros espaços, inclusive na arte”, afirma a intérprete. Criadora do Mãos de Fadas, grupo de narração visual bilíngue que se propõe a contar histórias em Libras e traduzi-las para o português, Thalita trabalha com a adaptação de narrativas infantis e literárias.

A necessidade de um ponto de luz direcionado ao intérprete já levou a pedagoga Erika Mota a trabalhar no mezanino do teatro, em uma clara tentativa de apagamento do profissional. “Há alguns anos tive um impasse grande com uma diretora. Como o espetáculo era todo na penumbra, ela não queria intérprete. A luz sobre o intérprete iluminaria o palco e atrapalharia a cena. Uma luz bem colocada, porém, não interfere, ela não vaza para o palco”, explica. Segundo Erika, além do mezanino, foi cogitada a possibilidade de uma gravação prévia para ser apresentada em telão, com o objetivo de evitar a presença do intérprete.

O Itaú Cultural conversou com as três instrutoras para entender dilemas, desafios e o momento atual dessa profissão nas artes cênicas.


Formação

CAROLINA FOMIN Muitas vezes percebemos que há pessoas que exercem a profissão sem estar profissionalizadas, sem estar com todas as competências bem trabalhadas para fazer a interpretação da língua de sinais. Isso, de certa forma, desvaloriza a profissão. Um sujeito surdo, para quem elas estão interpretando, é prejudicado e essas pessoas são responsáveis por aquilo que estão apresentando. Por exemplo, eu sou falante do inglês, mas não sou intérprete de cabine português/inglês, pois precisaria passar por outros cursos e desenvolver outras competências. É preciso se profissionalizar para se tornar um profissional da educação, da pedagogia.

THALITA PASSOS Como a língua de sinais não é uma língua de prestígio, é de uma minoria que foi silenciada por muitos anos, a profissão ficou banalizada. Os surdos se posicionam em relação a isso, mas muitas vezes têm de se contentar por haver ao menos um intérprete. A escola é o primeiro espaço social que recebe o sujeito, por isso a formação dos intérpretes ainda é voltada para a área educacional. A sociedade agora está se abrindo um pouco mais para a acessibilidade nas artes para as pessoas surdas. Os artistas estão ainda entendendo o que nós fazemos. Tanto que muitas vezes acham que iremos tirar o brilho do espetáculo.

ERIKA MOTA Nos anos de 2013 e 2014, em que o intérprete de Libras não era comum, ouviam-se pessoas dizendo que nós atrapalhávamos, tirávamos a atenção. Daqui a algum tempo isso vai ser tão comum que nem vão reparar no intérprete. Nas salas de aula de faculdades, por exemplo, já é habitual a presença de intérpretes, as pessoas já se acostumaram.


Apagamento

CAROLINA No teatro, existe ainda uma tentativa de apagamento do intérprete. Certa vez, em um espetáculo, todos os atores em cena usavam branco. Falei para a diretora que havia visto o vídeo e que poderia usar branco também. Ela disse que eu fazia parte da equipe técnica e que deveria, como o contrarregra, sumir da cena; quanto mais apagada, melhor. Fiquei em choque, pois estávamos tentando interagir, uma vez que não tem como nos apagar. Além da luz sobre nós, há o movimento do corpo o tempo inteiro.

THALITA As companhias de teatro devem entender que não é uma questão de ego do intérprete quando ele pede texto ou vídeo para estudar ou ver o tipo de roupa que deve usar. Estamos lá por causa de determinado público. É importante o artista entender que o público surdo não é o público do intérprete. Ele veio para ver a peça de teatro, não para ver o intérprete. Este é apenas a intermediação: está lá para passar a informação do que está acontecendo na cena. Hoje vemos que as pessoas estão começando a entender que a inclusão dos surdos não é só na escola, pois a pessoa não vive só da educação formal, ela também se forma em outros espaços, inclusive na arte.

CAROLINA Houve um caso em que queriam me fotografar somente para provar que havia uma intérprete. Eu deveria sair de cena logo depois. Nessas situações é que devemos, como profissionais da área, bater o pé. Ou eu faço o espetáculo inteiro ou não faço. Tenho percebido que nos espetáculos infantis os produtores têm mais facilidade de aceitar um intérprete em cena do que em espetáculos adultos.


Acesso

CAROLINA O público surdo não tem a liberdade de escolher o dia em que quer ir ver o espetáculo. Ele acaba não tendo a oportunidade como todo mundo de ir quando quiser ao teatro, um lugar onde a língua de sinais foi por muitos anos silenciada. Agora é que os surdos estão tendo acesso a isso, de poder ver e ainda poder participar, sentir-se realmente como público. Por muito tempo os surdos não puderam ter acesso a esse encantamento.

THALITA Hoje os surdos estão entendendo como funciona o teatro, peças que têm intérpretes de Libras e as que não têm. Por exemplo, no Itaú Cultural, qualquer dia em que eles vierem há um intérprete. Certa vez, na peça Gota d’Água Preta, um surdo negro veio nos ver e ficou impactado como qualquer outra pessoa negra da plateia. Ele comentou depois que “as intérpretes falaram até os palavrões”. Ele ficou sabendo que no teatro se fala palavrão. Meu papel não é omitir, mas passar essa informação e dizer o que aconteceu.

ERIKA Há alguns anos tive um impasse grande com uma diretora. Como o espetáculo era todo na penumbra, ela não queria intérprete. A luz sobre o intérprete iluminaria o palco e atrapalharia a cena. Uma luz bem colocada, porém, não interfere, ela não vaza para o palco. A diretora pediu que tirasse o intérprete da frente do palco e o colocasse no mezanino. Outra opção dada foi colocar os intérpretes em outra sala, gravar as interpretações e passá-las em um telão na hora da apresentação. Colocaram o intérprete no mezanino e, mesmo assim, a questão não foi resolvida. Muitas vezes o intérprete fica do lado do extintor de incêndio, quase caindo do palco.

Imagine você assistir a um filme com a legenda em outra tela. Para nós ouvintes, o conteúdo está associado à imagem. Por que para o surdo tem de estar dissociado? Ainda estamos falando de exclusão.


Preparação

CAROLINA Nós trabalhamos com cláusula de confidencialidade. Por questões éticas, não podemos divulgar o texto do espetáculo, ele serve apenas para nosso estudo. O ideal seria termos acesso ao grupo de teatro com antecedência, acesso ao material – texto e vídeo – e tempo de ensaio com o grupo. O texto escrito não dimensiona o ritmo da fala. Uma vez peguei um texto muito pesado, mas os atores o interpretaram em tom de comédia, tornando-se, assim, outra narrativa. Muitas vezes eu fui surpreendida por um texto que, em cena, era absolutamente outra coisa.

Dificilmente fazemos um espetáculo sozinhas também. Na interpretação, ficamos de costas para a cena e, para evitar que espiemos o que está acontecendo, quem está na minha equipe pode me dar dicas do que está ocorrendo visualmente na cena. As expressões e as gestualidades que incorporamos na interpretação fazem toda a diferença. A segunda intérprete não está relaxando enquanto estamos no palco.

ERIKA Acredito que, obtendo o material antes, aprimoramos o trabalho à medida que possamos recuar quando necessário. Quando há uma gestualidade de um ator, por exemplo, dificilmente eu faço o mesmo gesto, porque, se eu sei que aquilo vai acontecer, eu indico, uma vez que ele já está atuando. Como premissa do meu trabalho, tenho de receber o material com antecedência. Pode ser texto, vídeo, pois não dá para fazer um espetáculo em que ficamos de costas sem ter referência do que está acontecendo.


Não veio nenhum surdo?”

CAROLINA Muitos nos contratam e depois nos cobram sobre a presença ou não de surdos no espetáculo, como se fosse obrigação o comparecimento de surdos só porque pagaram para ter um intérprete da língua de sinais. Daí voltamos à questão da formação de público, da prática assistencialista de achar que o surdo precisa que eu vá à casa dele para trazê-lo até o teatro. Porque esses não eram espaços que seriam deles por direito e que no pensamento comum eles poderiam acessar.

THALITA A formação de público não acontece de uma hora para a outra, leva um tempo de consolidação. O surdo precisa ter todas as opções de estilo de espetáculos para que possa escolher a que mais lhe agrada.

ERIKA Se você sabe que existe esse público, e está escrito que a peça é para absolutamente todos os públicos, é necessário entender quem é esse todo. Isso tem muito a ver com a disponibilidade. Às vezes querem manter “a estética” do espetáculo. Então é melhor assumir que o espetáculo não é para todo mundo do que ouvir – como eu já ouvi de uma diretora – que era melhor os surdos não estarem lá. “Já se tem o intérprete, mas querem luz também? Precisa se contentar com o que tem.” Foi o que uma diretora me falou. Parece que temos obrigação de levar o público surdo. Uma caravana. Se você contrata um intérprete de inglês, não precisa trazer norte-americanos para o evento.


Desafios

THALITA Como estamos muito expostos, temos de saber trabalhar uma energia. Se no espetáculo é falado algo que tem a ver com sexo, por exemplo, é o nosso corpo que está exposto. Todo mundo olha para nós, porque querem saber como em Libras aquilo é dito. Para mim, ainda é uma das maiores dificuldades: cenas de sexo e violência.

ERIKA Eu estou muito acostumada aos improvisos, por causa dos slams que traduzo. A exposição é um desafio, por exemplo, quando um espetáculo começa na escuridão total, há uma voz em off e a plateia só vê a minha imagem. O espetáculo já começou comigo. Ele foi pensado e preparado para ter a imagem depois. Cem por cento da plateia olha para mim, porque eu sou o que está no palco. Isso me deixa nervosa.

CAROLINA Como tudo passa pelo nosso corpo, acabamos acumulando aqueles papéis todos e tendo de saber sair deles. O meu maior desafio é que, dependendo do espetáculo, quando ele acaba, eu ainda fico mexida por muito tempo. O intérprete não é neutro, é um ser humano que chega aqui carregado com seus problemas. Tenho de fazer a mãe que está brava e a filha que está arrependida. Ser o homem e ser a mulher. Tenho de fazer todos os personagens em um só corpo e naquele mesmo momento. A nossa extrema exposição é algo que realmente deve ser trabalhado na profissão.

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