Tereza Maciel

A foto mostra as duas pernas de uma mulher, abaixo do joelho. Uma perna está dobrada, posicionada atrás da outra. Ela está com meias alaranjadas curtas. O fundo da imagem é degradê, misturando laranja, rosa, amarelo.
(imagem: Tereza Maciel)

eu tinha a vista pro mar. da janela da sala contemplava a cadência das águas, quanto mais distante mais calmas, as ondas quebravam em câmera lenta. o elevador chegou. café esfriou. maya dormia no sofá. as ondas viravam espumas ali na minha frente. ondas cor-de-rosa, laranja, verde, dependia da hora que eu olhasse.

era bonito ver dali as ondas ganhando volume, texturas, mudando de cor. me sentia completamente feliz.

um dia ultrapassei o limite da janela e coloquei os pés naquela areia. senti a brisa fria das seis da manhã, meu corpo tremia, tinha uns raios de sol despontando no horizonte, eu vi. eu vi as ondas furta-cor tocando os meus pés, elas brilhavam muito e eram como dançar flutuando no ar.

as ondas iam e vinham deixando as pontas dos dedos coloridas, era mágico sentir aquilo. me sentia dentro de um sonho.

e quanto mais eu sentia mais eu tava. e fiquei dentro do sonho. acordei e era sonho. dormi dentro do sonho e ainda era sonho.

Márcio Vasconcelos

Retrato de uma mulher idosa, vestida de branco e com lenço na cabeça, além de colar no pescoço. A senhora está segurando uma vela e um santo.
(imagem: Márcio Vasconcelos)

Tambor de promessa

– Vozinha, aonde a senhora vai assim, toda arrumada, cheirando a talco e seiva de alfazema?

– Vou lá no Centro Histórico, meu filho.

– Fazer o que, vó?

– Hoje é dia de São Benedito, meu filho! Padroeiro do tambor de crioula e meu santo protetor. Desde o dia que tu nasceste, eu me agarrei com esse santo e só largo ele no meu último dia desta vida. Quando tua mãe estava buchuda de ti, no dia do teu parto tu estavas atravessado e não ias nascer de jeito nenhum. Tivemos que chamar a parteira Judite para ajudar. Meu Deus, foi um desassossego! Corri para o meu quartinho, abri o oratório, peguei São Benedito, comecei a rezar pedindo que tu nascesses logo, gordinho e sadio. Tua mãe gemia de dor e eu conversava baixinho com o meu santo preto. Lá para as tantas da noite, depois de tanto sufoco, ouvi teu choro. Ah! Que alívio! Era o fim do sofrimento. Judite disse que o cordão estava enrolado no teu pescoço e foi difícil de tirar.

– E aí, vó, parou de rezar?

– Sim, parei, mas beijava o santo e chorava ao mesmo tempo de alegria e emoção. Nesse dia fiz uma promessa para agradecer pela tua vida. A partir daquela data eu teria que dançar tambor para São Benedito todo ano no dia dele. Foi esse santo que te trouxe ao mundo assim, bonito e saudável. Sou devota dele e tenho uma verdadeira paixão!

– Poxa, vozinha, então corre que já estou ouvindo o pipocar dos foguetes, o tambor já deve tá aquecendo na fogueira. Toma cuidado na volta, não vem muito tarde.

– Fica tranquilo, meu filho. Lá pela madrugada eu chego.

– São Benedito te proteja, vozinha!

– Amém!

*

Tambor de crioula é uma dança de origem africana, praticada por descendentes de africanos escravizados no Maranhão, em louvor a São Benedito, um dos santos mais populares entre os negros. É uma dança alegre, marcada por muito movimento dos brincantes e muita descontração.

O Dia de São Benedito é comemorado anualmente em 5 de outubro no Brasil. A data é celebrada por toda a comunidade católica como uma homenagem e devoção ao santo considerado o padroeiro dos afrodescendentes, dos cozinheiros e das donas de casa. O tambor de crioula é muito usado para pagamento de promessa pelos devotos de São Benedito.

 

Em Inventário, dois fotógrafos recebem, todo mês, uma palavra diferente e são convidados a transformá-la em imagem e texto.

Veja também
Fotografia colorida de um homem negro agachado com as duas mãos no chão. Ele veste roupa branca e tênis preto. Está com uma corrente com uma cruz no pescoço. Ele é careca e tem barba por fazer. Ele olha sério para baixo. Há duas mãos segurando ele, passando por baixo das axilas e apoiadas em seus ombros. Uma está pintada de amarelo e a outra de verde, com unhas vermelhas compridas e afiadas. A parede do fundo é branca com um detalhe em vermelho.

Inventário: Vazio

Os fotógrafos Camila Svenson e Lucas Cordeiro retratam o “vazio” neste mês
Fotografia colorida de espaço aberto com pedras e árvores. O chão é de terra seca. Há cruzes, uma placa em homenagem a Lampião e seus companheiros e velas acesas espalhadas pelo espaço.A imagem é pouco saturada.

Inventário: Fim

Neste mês, os fotógrafos Tereza Maciel e Márcio Vasconcelos transformam o “fim” em imagem e texto