por Mayra Fonseca

 

Há 25 anos, 330 policiais participaram de uma ação para conter uma rebelião no pavilhão número 9 do então maior e superlotado presídio da América Latina, o Carandiru: eram mais de 7 mil homens encarcerados em um espaço com capacidade para 3.250 pessoas. Dias após o encontro Brechas Urbanas com o tema A Violência e o Sujeito sem Direito à Cidade, iniciamos outubro de 2017 lembrando o massacre do Carandiru e tentando lidar com dois outros números tão impactantes quanto contraditórios: 111 mortos e ninguém punido após tantos anos de julgamento.

Série Vulgo, da artista mineira Rosângela Rennó, 1998. Imagens extraídas de negativos do acervo do Carandiru | divulgação/site da artista

Foi também no início da década de 1990 que a cidade de São Paulo conseguiu um feito único no mundo: a redução no número de homicídios, que então era crescente, com até cem chacinas por ano. Nesse período, Bruno Paes Manso, doutor e pós-doutorando no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), já realizava pesquisas com os chamados matadores, ou seja, as pessoas por trás do ciclo de mortes por vingança entre grupos rivais nas periferias da capital paulista. A motivação do seu trabalho, pesquisar os homicídios e investigar maneiras de zelar pelo direito à vida, é também a intenção do recém-lançado projeto Monitor da Violência, que mapeia as causas de mortes em todo o país.

“Em 1992 foi o massacre do Carandiru e em 1993 surgiu o PCC [Primeiro Comando da Capital]. Os homicídios diminuíram e o sistema penitenciário se transformou: eram 30 mil presos, hoje são 220 mil. Nesse processo de aprisionamento massivo, foi construído um mundo atrás das grades: incluindo familiares, são cerca de 1 milhão de pessoas nesse universo. Se essa população fosse uma cidade, seria a segunda maior do estado de São Paulo.”

Bruno Paes Manso, doutor e pós-doutorando no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo

Série Inserção e Violência, do mineiro Rodrigo Albert | divulgação

O que significa segregar populações tão grandes dentro do território específico que é o cárcere? E quem são as pessoas aprisionadas?

A antropóloga Mariana Varela atua com o encarceramento feminino no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e explica que o sistema de justiça trabalha muito com a noção de indivíduo, quando, na verdade, o que se pode observar é que as penitenciárias estão ocupadas por uma parcela específica da população: são pessoas majoritariamente negras e pobres.

“No fundo, o que vivemos é a criminalização da pobreza e da raça.”

Mariana Varela, antropóloga no Instituto Terra, Trabalho e Cidadania

Antes de entrar para a categoria ideológica de criminosos, sua vida, na maioria das vezes, era marcada pela escassez: de moradia, de saúde, de educação, de acesso a bens, de afeto, de liberdade de trânsito. No caso das mulheres, Mariana ressalta, muitas sofriam violência doméstica antes da prisão e cerca de 60% foram condenadas pelo tráfico de drogas: uma tipologia que inúmeras vezes pune o dependente (usuário ou empregado) do negócio como se este fosse o empreendedor traficante.

Fotografia de Leo Drumond presente no livro Mães do Cárcere, com textos de Natália Martino

Encarceradas, habitam um espaço de extrema violação e violência, onde são despidas dos seus direitos como cidadãs e ficam ainda mais presas a um ciclo de privação, solidão e impossibilidade de reinserção digna na vida social. Por que a sociedade não tem acesso ao que acontece dentro dos presídios? A quem interessa que essa realidade não seja conhecida? As perguntas de Mariana são um convite à reflexão crítica.

“Quando nós falamos sobre violência na cidade e sobre o encarceramento, estamos falando também sobre o outro, sobre o outro que é vulnerável, que não é escutado.”

Túlio Augusto Custódio, sociólogo, curador de conhecimento na Inesplorato e mediador do encontro Brechas Urbanas de setembro

gente viva

Fotografia de Leo Drumond presente no livro Mães do Cárcere, com textos de Natália Martino

São gestantes e lactantes. Mulheres singulares e complexas contam sua história de vida e seu momento de maternidade. Fotografias e palavras escritas, uma impressão em papel. Folheio o livro e sou tocada pelas "mães do cárcere".

“Era muito humilhante, fila de cadeia é triste demais. E lá a revista era pesada. Tira a roupa, abre as pernas, faz força, abaixa, levanta. Muito humilhante. Mas eu ia toda semana. Tinha pena dele. Depois de um ano, comecei a fazer visitas íntimas.

Foi lá que engravidei. Mas só fui descobrir quando eu fui presa.

Eu chegando em casa do trabalho e o policial me esperando.

O juiz considerou que eu era cúmplice do Magno no tráfico.”

Fernanda, de 25 anos, em Mães do Cárcere, livro de Leo Drumond e Natália Martino

Leo Drumond e Natália Martino fazem parte do Projeto Voz, um conjunto de iniciativas de comunicação ligadas ao sistema carcerário, com o objetivo de fazer ecoar a vida daqueles que estão isolados em muros penitenciários.

Ao longo de um ano, os autores mineiros adentraram o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade em Vespasiano, cidade próxima a Belo Horizonte, para ouvir, registrar e compartilhar a narrativa das mulheres gestantes presas em Minas Gerais: o local recebe todas as grávidas do sistema carcerário do estado até que as crianças cheguem à idade de 1 ano. Após isso, os filhos são afastados das mães, que são transferidas para unidades-padrão.

Como toda a comunicação de encarcerados é censurada – eles não têm acesso a meios de comunicação eletrônicos ou digitais e sua correspondência é violada –, o papel ainda é o suporte ideal para a contação de suas histórias: revistas e livros precisam circular também no ambiente onde vivem seus protagonistas.

Fotografia de Leo Drumond presente no livro Mães do Cárcere, com textos de Natália Martino

Registro cotidiano, documento histórico, troca artística, ponte entre muros: brechas. Todas as linguagens que podem aproximar cidades que não se conhecem... e esboçar sobrevivências e convivências. O trabalho de Leo e Natália parece um ensaio para uma nova tessitura de encontros: uma costura para lembrar a urgência de cuidarmos da vida, ouvindo – desencouraçados – sua fragilidade e sua potência para além dos dados. 

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