por Duanne Ribeiro

Em Redes que a Razão Desconhece: Laboratórios, Bibliotecas, Coleções, o sociólogo e filósofo da ciência Bruno Latour define os processos de criação do conhecimento como o estabelecimento de relações entre níveis distintos do uso da informação, isto é, entre coleta, organização, processamento, visualização, aplicação. O jogo dessas instâncias dá a conhecer o mundo, o que Latour exemplifica com uma mulher que passeia pela França:

"Essa moça aponta com o dedo o nome da rua, e põe em correspondência, com um rápido movimento de cabeça, o nome que se encontra em sua planta de Paris e nas placas de rua. As duas inscrições – a primeira no mapa, a segunda na placa – serão ambas signos? Certamente, mas numa relação que nos afasta da intertextualidade. Essas duas espécies de signos, mapas e placas, alinhados uns aos outros e mantidos ambos por grandes instituições [...], nos permitem passar do mapa ao território, negociando com cautela a enorme mudança de nível que separa um pedaço de papel, que dominamos pelo olhar, de um lugar onde moramos e que nos cerca por todos os lados. Naturalmente, a série não pára aí. A posição da placa depende de um regulamento do ministro do interior; a marcação das ruas se baseia, por sua vez, através de outra mudança de nível, nos marcos geodésicos que se encontravam cravados nas calçadas, ou recém-pintados. Podemos enfim passar para o solo argiloso? Ainda não, pois os triângulos da rede nacional nos afastam logo do lugar balizado para nos alinhar em outras balizas a vários quilômetros de distância, ou em satélites a vários milhares de quilômetros de distância, geridos por outras instituições. As inscrições não remetem ao vazio a outros signos, uma vez que, a cada mudança de nível, elas se carregam de matéria e servem de validação uma à outra. E, no entanto, não se pode percorrer sua cadeia sem encontrar, atrás da matéria anterior, outras marcas, outras instituições que já "prepararam o terreno", a fim de que sua leitura se torne compatível, apesar da mudança de nível, com o mapa que eu seguro na mão. Se desejamos entender como chegamos, às vezes, a dizer a verdade, devemos substituir a antiga distinção entre a linguagem e o mundo por essa mistura de instituições, formas, matérias e inscrições."

Esse trecho adquire outro gosto quando lembramos que o que temos sempre às mãos, hoje, não são mapas impressos, mas celulares. O dedo na tela e, com um toque ou um gesto de arrastar, mobilizamos bases de dados variadas: não só a localização de pontos distantes, mas também o cálculo do tempo de um a outro, para vários modais e considerando as intensidades de tráfego para cada horário. Podemos ainda descobrir em que posição está o ônibus que esperamos ou recorrer a algum serviço particular de transporte.

Smartphones e computadores informam a nossa vivência do espaço urbano – indicando lugares a visitar, eventos a comparecer, regiões e rotas a evitar. Para dizer a verdade da cidade – digamos, parafraseando Latour –, devemos entender que ela é produto de uma mistura de instituições, formas, matérias e inscrições, e que na atualidade tudo isso se concentra e se potencializa por meio das tecnologias da informação. Em novembro, esse foi o tema do ciclo de debates Brechas Urbanas, realizado pelo Itaú Cultural.

Identidade e solidariedade

“Espaços carregados de informação”, na fala do artista visual e curador Lucas Bambozzi; “o mundo hiperconectado da internet está descendo para o ambiente urbano”, no dizer do cientista político Sergio Amadeu – ambos os convidados da mesa partiram do cenário que vínhamos esboçando e extraíram dele suas consequências sociais e políticas. O núcleo da questão parece ser: temos de deixar de ser arrastados pelo ritmo das inovações e de seguir as injunções que elas trazem; temos de saber o que queremos com elas.

Voltemos à citação de Latour. Nela e no restante do artigo se demonstra como um mapa e uma placa não são simples inscrições no espaço; pelo contrário, são a face patente de pesquisas de campo, construções de linguagem e atuações de poderes. Essa rede, capaz de nos colocar em uma posição de domínio, é obscurecida, latente. A mesma complexidade se dá quanto aos gadgets que preenchem nosso tempo. No Brechas, Amadeu insistiu no que está em jogo nesses bastidores dos espetáculos tecnológicos.

O pesquisador questionou, por exemplo, quais são os valores que presidem a programação desses aparelhos e aplicativos. Os desenvolvedores, disse ele, “pensam nos direitos das pessoas que vão usar os seus programas”? Isto é, têm em mente a proteção da presença digital dos usuários, a transparência sobre como seus dados são usados, a capacitação para que possam controlar esse uso? “Esses dados são a nossa identidade”, ele reforçou, “temos de protegê-la.” Que os direitos humanos estejam implicados nessas estruturas, Amadeu propôs, que haja algo como um human rights by design nos dispositivos.

Nas cidades, o mesmo problema se coloca, como apontou o cientista político: "Cada vez mais tomamos menos decisões sobre o espaço urbano, decisões que estão sendo feitas por algoritmos". Nesse sentido, a problemática do monitoramento, por via do governo ou de empresas, é fundamental. Nossa circulação na urbe, registrada pelo GPS, nossos check-ins, aliados aos likes e aos corações distribuídos nas redes, servem para produzir políticas públicas e ações de publicidade. Muito há para disputar nesse campo.

A “internet das coisas” está condenada a ser, como expressa Amadeu, uma “internet de censores”? Quais limites devemos impor ao monitoramento governamental? Quais são os valores a dirigir a aplicação das tecnologias da informação à cidade – nas palavras do professor, temos de tender mais à cidade inteligente ou à cidade solidária?

Cinco questões sobre cidade e informação

Bambozzi dispôs esse cenário em um apanhado histórico rápido: antes, as interfaces dos sistemas operacionais se inspiravam em elementos culturais mais comuns (recorriam e recorrem a pastas, lixeiras, janelas, ampulhetas) a fim de se tornar amigáveis. Agora, “o ciberespaço determina o espaço físico”. O exemplo que o artista utiliza para ilustrar essa situação é claríssimo: não avaliamos os lugares a que vamos de acordo com o sinal disponível de internet? Precisamos estar conectados o tempo todo...

Os trabalhos citados por Bambozzi no programa problematizam esse mundo dos fluxos de dados que se incorporam ao cotidiano. Duas obras visibilizaram os sinais de internet sem fio que enxameiam a urbe: Immaterials – Light Painting WiFi, do estúdio norueguês de design Voy; e Panoramic WiFi Camera, do artista húngaro Adam Somlai-Fischer. Já a alemã Christina Kubitsch, nas Electrical Walks, faz audíveis os campos eletromagnéticos. Também comentado no debate, para quem quiser investigar esse território invisível, há o app The Architecture of Radio, disponível para iOS e Android.

O dado crucial parece ser que não há fora disso tudo (de fato, poderíamos nos lembrar, ainda mais uma vez, do trecho de Latour e reconhecer como a informação, antes mesmo de qualquer computador, já dava o tom da vivência do espaço). É esse o contexto sob o qual temos de viver – e, é o que vínhamos discutindo, decidir como viver. Assim, parece útil concluir com as questões que Bambozzi apresentou ao público do Brechas. São cinco e sumarizam tudo o que falamos, além de nos lançar adiante:

- Que implicações os sinais invisíveis do espaço informacional vêm tendo ou podem vir a ter na trama da cidade? Como isso vai se dar?

- Que tipo de problema passamos a ter quando os problemas induzidos pela tecnologia (estruturantes das smart cities) se somam aos problemas já existentes?

- Que novas consequências teremos de enfrentar devido ao aumento de fluxos de sinais em nosso corpo e em nossa vida (além da constatação sobre a ação direta no corpo produzida por indutores de campos eletromagnéticos)?

- Como produzir conhecimento crítico, consciência e fatores de transformação efetiva, reocupar o espaço informacional sem ceder às ingenuidades de sua negação (o esvaziamento, o desligar-se)?

- Como conjugar as políticas nefastas do populismo global com aspectos da política e ideologias associadas aos devices tecnológicos presentes em nosso dia a dia?

Quem quiser responder ou elaborar ideias sobre essas perguntas pode mandar os seus pensamentos pelo e-mail, e podemos discutir as contribuições nas próximas colunas.

 

Duanne Ribeiro é analista de comunicação do Itaú Cultural. Compõe a curadoria do ciclo de debates Brechas Urbanas.

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