por André Bernardo
Acostumado a interpretar tipos cômicos no teatro e na TV, Luis Miranda levou um susto ao receber o convite do diretor Luiz Antônio Pilar para dar vida a Lima Barreto (1881-1922) no cinema. “Entrei em pânico”, brinca. Baseado na peça homônima de Luís Alberto de Abreu, Lima Barreto, ao terceiro dia se passa no Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro. Inaugurado em 1852, é a primeira instituição psiquiátrica do Brasil. O escritor esteve internado lá em 1914, por 56 dias, e entre 1919 e 1920, por 38 dias. O roteiro, escrito a quatro mãos por Abreu e Pilar, narra três dias de sua última internação. Como o prédio histórico do antigo hospício abriga hoje o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Praia Vermelha, as cenas de manicômio foram rodadas no Instituto Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro. “Visitar o universo da loucura é sempre desafiador e deixa sequelas emocionais”, afirma Miranda. “Filmamos numa ala desativada, mas os pacientes estavam por toda a parte. A realidade deles é muito dolorosa”.
Lima Barreto, prossegue o ator, morreu jovem, aos 41 anos, “vítima da ignorância, do preconceito e do descaso da sociedade da época”. Não se casou, nem teve filhos. No longa-metragem, dois atores se alternam no papel: Luis Miranda e Sidney Santiago Kuanza. Enquanto o primeiro interpreta o autor na fase adulta, o segundo dá vida à versão jovem. Durante uma alucinação, o escritor chega a interagir com um de seus personagens mais ilustres: o patriótico Policarpo Quaresma (Orã Figueiredo). Tão patriótico que, entre outras sandices, pleiteava transformar o tupi-guarani na língua oficial do Brasil.
“Já tinha lido Policarpo Quaresma, mas sabia pouco sobre Lima Barreto. É uma tristeza ver autores tão importantes esquecidos por parte da nossa sociedade”, lamenta Miranda. “Era um crítico feroz do racismo. Um revolucionário. Um gênio”, define.
Triste fim de Policarpo Quaresma (1916) já foi traduzido para vários idiomas, do espanhol ao polonês, e adaptado para o cinema, por Paulo Thiago (1945-2021); o teatro, por Antunes Filho (1929-2019), e até os quadrinhos, pela dupla Luiz Antônio Aguiar e César Lobo. Antes de ser lançado em livro, foi publicado como folhetim no Jornal do Comércio, em 1911. Quando finalmente chegou às livrarias, cinco anos depois, Lima estava endividado até o pescoço por causa dos empréstimos que contraiu para custear a obra. “Um de seus diferenciais é sua origem social. Não fazia parte da elite econômica. Sua vida também foi marcada pela loucura”, analisa Isabel Travancas, doutora em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e organizadora do livro Novas seletas: Lima Barreto (2004). “Se indignava com as injustiças. Suas obras são, de certa maneira, marginais. Não foram bem recebidas. Eram densas, valorizavam a linguagem coloquial e tinham uma ‘sincera aspereza’. Um dos precursores do modernismo brasileiro, rompeu com os padrões literários da época. De certa forma, por ser contemporâneo de Machado de Assis (1839-1908), acabou ofuscado”.
Policarpo Quaresma foi um dos quatro romances adaptados por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn para a TV Globo, em 1993. Os outros foram Clara dos Anjos (1948), Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). Os autores pinçaram também personagens dos contos Nova Califórnia (1910) e O homem que sabia javanês (1911). Surgiu, assim, a novela Fera ferida. A trama tinha, inclusive, um personagem chamado Afonso Henriques de Lima Barreto (Otávio Augusto). Uma foto do escritor, com direito a faixa presidencial, decorava a parede do gabinete do prefeito de Tubiacanga, Demóstenes (José Wilker). Lima Barreto ganhou, entre outras homenagens, o samba-enredo Lima Barreto, mulato, pobre, mas livre, da Unidos da Tijuca, e duas biografias: A vida de Lima Barreto (1952), de Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), e Lima Barreto — Triste visionário (2017), de Lilia M. Schwarcz. Mas, nem sempre foi assim. Houve um tempo em que seus livros eram ignorados pela imprensa carioca. Foi o caso de Isaías Caminha. “A única crítica que me aborrece é o silêncio”, desabafou o autor.
Por três vezes, tentou ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Não conseguiu. A primeira tentativa ocorreu em 21 de agosto de 1917. Para disputar a vaga do advogado Sousa Bandeira (1865-1917), escreveu uma carta ao jurista Rui Barbosa (1849-1923). O presidente da ABL desconsiderou sua inscrição. A segunda se deu em 24 de fevereiro de 1919. Dessa vez, entrou na disputa pela cadeira 20, que pertencia ao jornalista Emílio de Meneses (1866-1918). Mas, no dia da eleição, recebeu um único voto: do jornalista João Ribeiro (1860-1934). Quem levou a melhor foi Humberto de Campos (1864-1934). Indignado, publicou a crônica Uma fatia acadêmica na revista A.B.C. Nela, criticava a instituição e seu fundador, Machado de Assis. “Escreveu que os imortais não passavam de um bando de acomodados. Mesmo assim, não desistia”, afirma a historiadora Lilia M. Schwarcz.
Em 1º de julho de 1921, tentou mais uma vez. A cadeira em disputa era a do escritor João do Rio (1881-1921). Dois meses depois, porém, retirou a candidatura, alegando “motivos inteiramente particulares e íntimos”. “Talvez soubesse que jamais seria eleito”, arrisca Schwarcz. No mesmo ano, inscreveu Gonzaga de Sá no prêmio da ABL. O ganhador foi Pequena história da literatura brasileira (1919), do poeta Ronald de Carvalho (1893-1935). Lima Barreto teve que se contentar com uma menção honrosa.
“É triste não ser branco”
Neto de escravos, Lima Barreto viveu pouco. Mas produziu muito: 17 livros, a maioria deles póstumos. Um de seus primeiros textos publicados foi o soneto “Assim...” no jornal O suburbano, do dia 1º de novembro de 1900. Tinha 19 anos. Escreveu crônicas para jornais, como Correio da Manhã, Gazeta da Tarde e A Noite, e revistas, como Fon-Fon, Careta e A.B.C. E sob os mais variados pseudônimos, como Alfa Z, Momento de Inércia e Diabo Coxo.
Em 1907, Lima Barreto chegou a ter sua própria publicação, Floreal. A revista, de crítica literária, teve vida curta — apenas quatro edições —, mas chamou a atenção do escritor José Veríssimo (1857-1916). Antes de enveredar pelo jornalismo, cogitou ser engenheiro civil. Chegou a ingressar na Escola Politécnica, no Largo de São Francisco, em abril de 1897. Mas, não foi muito longe. Logo no primeiro ano, foi reprovado em todas as disciplinas. A única que salvou foi Física. No terceiro ano, desistiu do curso.
O “pai” de Policarpo Quaresma, Isaías Caminha e Clara dos Anjos, entre outros “filhos” da literatura brasileira, nasceu no dia 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro. O pai, João Henriques de Lima Barreto, era tipógrafo e a mãe, Amália Augusta Pereira de Carvalho, professora. A primeira residência do casal foi na rua Ipiranga, 18, em Laranjeiras. Logo, Amália abriu uma escola primária para meninas, o Colégio Santa Rosa, na própria casa. O casal teve cinco filhos: Nicomedes, que morreu oito dias depois de nascer, Afonso Henriques, Evangelina, Carlindo e Eliézer. Vítima de tuberculose, a matriarca morreu no dia 23 de dezembro de 1887. João Henriques, então, se mudou com os filhos para a rua do Riachuelo, no Centro. Perto dali, na rua do Resende, Lima Barreto cursou o primário. Teve aula com a professora Teresa Pimentel do Amaral, que despertou nele a paixão pela leitura. Mais do que isso: lhe deu de presente um exemplar de As grandes invenções antigas e modernas nas ciências, indústria e arte. O livro do cientista francês Louis Figuier (1819-1894) acabou sendo o primeiro de um acervo particular, apelidado de Limana, que chegou a ter 707 volumes.
No ano da Abolição da Escravatura, João Henriques arranjou emprego como escriturário das Colônias de Alienados. Por essa razão, levou a família para morar em um sítio na Ponta do Galeão, na Ilha do Governador, hoje uma instalação da Aeronáutica. Para sustentar os filhos, acumulou três empregos. Num deles, foi acusado de desfalque. Não deu outra. Em agosto de 1902, sofreu um esgotamento nervoso que os médicos chamaram de “neurastenia”. A família, então, se mudou para a Vinte e Quatro de Maio, 123, no Engenho Novo. Na condição de primogênito, Lima Barreto se viu obrigado a assumir o sustento da casa.
“Como alguém com sua história pôde deixar um legado deste porte? Eu respondo: a dor e o sofrimento o fortaleceram. O que o difere de outros mestres foi sua coragem de dizer o que pensava e registrar o que lhe afligia. Teve a ousadia de transpor para a ficção os dramas da sociedade”, explica Zélia Nolasco, doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e autora do livro Lima Barreto: Imagem e Linguagem (2005). “Sua vida e sua obra dialogam bastante, tanto na questão do preconceito racial quanto em relação à passagem pelo hospício. E, apesar de muitos taxarem sua literatura como militante, Lima fez dela sua arma de combate.”.
Em 1900, Lima Barreto deu início a um hábito que o acompanhou por toda a vida: o de escrever diários. Neles, relatou infortúnios familiares (“Perdi a esperança de curar meu pai! Coitado, não lhe afrouxa a mania que, cada vez mais, é uma só: vai ser preso, a polícia vai matá-lo, se ele sair à rua, trucidam-no…”, em 14 de janeiro de 1905), episódios de racismo (“Fui à bordo ver a esquadra partir. Multidão. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite. Mas, a mim, pediram. Aborreci-me. É triste não ser branco”, em 24 de janeiro de 1908) e até pensamentos suicidas (“Hoje, quando essa triste vontade me vem, já não é o sentimento da minha inteligência que me impede de consumar o ato: é a covardia... Só o álcool me dá prazer e me tenta. Oh, meu Deus! Onde irei parar?”, em 16 de julho de 1908). Em 1903, registrou, muito provavelmente, sua primeira experiência com o álcool. “Não beber em excesso coisa alguma”, advertiu para si mesmo. Essas e outras anotações foram reunidas em Diário íntimo (1953).
“O que dizer da loucura?”
Decidido a largar o curso de Engenharia, Lima Barreto tentou uma vaga de amanuense — funcionário público — na Secretaria de Guerra. Em oito dias, fez onze exames: de caligrafia a direito, de português a aritmética, de francês a redação. Foi aprovado em segundo lugar, com média de 6,35 — apenas dois décimos atrás do primeiro colocado. Em 27 de outubro de 1903, assumiu o cargo de terceiro oficial. Trabalhava das dez da manhã às três da tarde e ganhava 200 mil réis. Alugou uma casa em Todos os Santos, Zona Norte do Rio. Por causa da condição de seu pai, os vizinhos passaram a chamar o número 76 da rua Boa Vista de “casa do louco”.
“Muitas pessoas que encontravam Lima Barreto pelas ruas, delirando ou na sarjeta, não o viam como escritor ou intelectual. Era visto como mais um desses ‘bêbados’ que vagavam pela cidade. No entanto, ele foi fundamental para a construção de nossa modernidade literária. Os dramas enfrentados por personagens como Isaías Caminha e Clara dos Anjos permanecem atuais por força do racismo ainda vigente na sociedade brasileira”, analisa Henrique Marques Samyn, doutor em Letras pela UERJ e autor de Uma temporada no inferno (2022). “Lima tem sido cada vez mais lido e pesquisado. Há um interesse crescente em sua obra, sobretudo por parte da juventude negra e pobre que o reconhece como pioneiro de nossa literatura militante”.
Em 10 de outubro de 1906, Lima Barreto tirou a primeira de suas muitas licenças médicas: “fraqueza geral”. Houve incontáveis afastamentos do trabalho, quase sempre por motivo de saúde: “reumatismo poliarticular”, “hipercinese cardíaca”, “alcoolismo crônico”... No dia 18 de agosto de 1914, sofreu um surto em casa e, temendo ser preso por suas opiniões políticas, foi contido por vizinhos e parentes. Por recomendação médica, foi transferido para o Hospital dos Alienados e tratado à base de ópio. Depois de 56 dias, recebeu alta em 13 de outubro. “Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber, paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver cotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me um por um dos meus sonhos”, escreveu em abril de 1914.
Lima Barreto não conseguiu se livrar do vício. Boêmio incorrigível, sofreu inúmeros porres. Alguns, em casa. Outros, na rua. Certa vez, chegou a fraturar a clavícula em uma de suas bebedeiras. Encontrado por um amigo, Noronha Santos, deitado na sarjeta, foi levado para o Hospital Central do Exército. De lá, enviou, dias depois, os originais do romance Gonzaga de Sá para Monteiro Lobato (1882-1948), que aceitou publicá-lo na Revista do Brasil, sua editora. Em julho de 1918, Lima Barreto entrou com um pedido de aposentadoria por invalidez. Uma junta médica o considerou inapto para o trabalho. O diagnóstico? “Epilepsia tóxica”.
Aposentado do serviço público, em dezembro de 1918, mudou-se com a família para a rua Major Mascarenhas, 26. No Natal de 1919, depois de novo surto psicótico, foi internado no Hospital de Alienados. Recebeu alta no dia 2 de fevereiro. De sua passagem pelo hospício, escreveu O cemitério dos vivos (1953). “São várias as qualidades de sua obra: o protagonismo de personagens de classes baixas, o cotidiano dos subúrbios cariocas, uma escrita de ficção que incorpora um olhar sociológico… Também não podemos esquecer o pioneirismo de enfatizar sua posição como negro e atacar o racismo no Brasil e no mundo, algo pouco comum na época”, explica Felipe Botelho Corrêa, doutor em Letras pela Universidade de Oxford, autor de Sátiras e outras subversões (2016) e organizador de Crônicas da Bruzundanga: a literatura militante de Lima Barreto (2017). “O fato de continuar sendo lido e sua obra influenciar novas gerações são evidências de seu reconhecimento”.
Seu último endereço foi a rua Major Mascarenhas, 42, em Todos os Santos. Lima Barreto foi encontrado morto pela irmã, Evangelina, no dia 1º de novembro de 1922. Estava recostado na cama do quarto, com um exemplar da revista Revue des deux mondes ao seu lado. Em seu atestado de óbito, constam “gripe torácica” (pneumonia) e “colapso cardíaco” (infarto) como causa mortis. José Henriques morreu dois dias depois. Pai e filho foram enterrados em uma mesma sepultura do cemitério São João Batista, em Botafogo. Quem pagou as despesas foi o crítico de arte José Marianno Filho (1881-1946) que, em retribuição, ganhou sua coleção de livros. Guardados em sua chácara em Jacarepaguá, foram destruídos por uma enchente. O único volume que escapou foi o que Lima ganhou de sua professora de Português. Cento e trinta e quatro anos depois, a relíquia pertence ao acervo da Fundação da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
“Lima Barreto é desses autores que já nascem clássicos. O Brasil da Belle Époque, que flertava com a Europa branca e sonhava transformar o Rio numa Paris tropical, não estava preparado para ouvir o que ele tinha a dizer. Incomodava ao lembrar que aquela capital asséptica, dominada por intelectuais esnobes, tentava camuflar uma pobreza alarmante e um racismo estrutural”, avalia Luciana Hidalgo, doutora em Literatura Comparada pela UERJ e autora de Literatura da urgência — Lima Barreto no domínio da loucura (2008). “Fico feliz em ver tantos movimentos antirracistas no Brasil, muitos deles sintonizados com tudo o que Lima denunciou há um século. Sua luta ainda rende frutos. O que mais um autor poderia desejar?”