por André Bernardo

Entre outras virtudes, Darcy Ribeiro (1922-1997) era um exímio “fazedor” de discursos. Tão habilidoso que ganhou elogios até do ex-presidente do Chile Salvador Allende (1908-1973), de quem foi assessor e, vez por outra, ghost-writer. Certa ocasião, depois de um comício no Estádio Nacional, em Santiago, Allende perguntou aos generais se eles tinham gostado de seu pronunciamento. Diante da resposta afirmativa, revelou: “Foi esse brasileiro que escreveu”. O tal brasileiro era Darcy Ribeiro. Dois dos seus discursos mais famosos foram em agradecimento aos títulos de doutor honoris causa que recebeu. Um da Universidade de Sorbonne, na França, em 1978; o outro da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, em 1991. O primeiro discurso, de 762 palavras, levou dois meses para ser burilado e foi prestigiado, entre outros notáveis, por Leonel Brizola (1922-2004), ex-governador do Rio de Janeiro, e Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República. Nele, Darcy enumera alguns de seus “fracassos”: na “salvação” de indígenas, na realização da reforma agrária, na alfabetização de todas as crianças do Brasil... “Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”, arrematou.

No segundo discurso, 13 anos depois, Darcy Ribeiro se compara às cobras. Não por ser serpentário ou venenoso, explicou, mas porque elas mudam de pele. E citou algumas de suas “peles”: de etnólogo, de educador, de político... “Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói demais o Brasil que é”, declarou. A foto de Darcy Ribeiro na Universidade de Sorbonne foi clicada por um jovem aspirante a fotógrafo chamado Fernando Rabelo. Em 1978, o rapaz morava em Paris com os pais, o jornalista José Maria e a economista Therezinha Martins. Perseguido pela ditadura, o cofundador e editor do jornal Binômio, que circulou em Belo Horizonte (MG) entre 1952 e 1964, fugiu do Brasil com a família e se exilou no Chile, e, nove anos depois, na França. Amigo de Darcy dos tempos da reconstrução do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), José Maria Rabelo levou o filho, então com 16 anos, para fotografar a solenidade. “Fiquei impressionado com o que ouvi naquele dia. Para um menino da minha idade, que não conhecia o país onde nasceu, foi uma lição de vida”, recorda o fotógrafo Fernando, hoje com 60 anos. “Tanto tempo depois, o discurso continua atualíssimo. Poderia ter sido escrito ontem. Nada mudou no país.”

Darcy Ribeiro | crédito: Acervo Fundação Darcy Ribeiro

Quem também conheceu Darcy, ainda garoto, foi Eric Nepomuceno. O futuro jornalista e escritor tinha 11 anos quando o pai, o físico Lauro Xavier Nepomuceno, então professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos (SP), começou a ir ao Rio para ajudar Darcy e outros cientistas na criação da Universidade de Brasília (UnB) em 1962. Em 1975, Eric voltou a se encontrar com Darcy, por intermédio do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), amigo dos tempos do exílio no Uruguai. Desde então, não se desgrudaram mais. “Do Darcy guardo um Himalaia de recordações. Uma, definitivamente, iluminou minha vida: ‘Na América Latina, só podemos ser duas coisas: indignados ou resignados. E eu não vou me resignar nunca’. Até o fim, foi um lutador.” Outra lembrança é mais prosaica. Em casa, Darcy só andava descalço, “para poder voar em seus sonhos de transformar o país e a América Latina, queria sentir o chão debaixo dos pés”, arrisca Eric, organizador de diversos títulos do amigo, como Tempos de turbilhão – relatos do golpe de 64 (Global), Coleção Darcy no bolso (UnB) e Darcy Ribeiro – crônicas brasileiras (Desiderata).

A antropóloga Gisele Moreira também conheceu Darcy ainda criança, por volta dos 12 anos. Foi em 1973, no Peru. Em viagem pela América Latina, Gisele e a família visitaram Darcy e a mulher, Berta (1924-1997), durante o exílio. Refestelado numa poltrona, Darcy, sempre descalço, desafiava o irmão mais velho de Gisele, então com 14 anos, a levar o dedão até a boca. “Consegue roer as unhas do pé?”, perguntava o anfitrião, gaiato. Em 1981, já estudante universitária, Gisele voltou a se encontrar com Darcy em um evento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Salvador (BA). Numa feira de livros montada no local, Darcy pegava um de seus exemplares e, em voz alta, perguntava a Gisele se ela conhecia aquele autor. “Dizem que é muito bom!”, afirmava Darcy, aos risos. “Foram muitas as suas contribuições ao Brasil. Foi o criador de duas universidades, a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), em Campos (RJ), que se tornaram modelo de ensino e pesquisa. E, também, dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps). Só nos dois governos de Leonel Brizola, foram inauguradas 506 dessas escolas em horário integral”, analisa Gisele, que, em 1991, foi convidada para trabalhar como assessora técnica do então senador até fevereiro de 1997.

Um vulcão de ideias

Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros, município a 422 quilômetros de Belo Horizonte, no dia 26 de outubro de 1922. Era filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos, farmacêutico, e de Josefina Augusta da Silveira, professora. O pai morreu aos 34 anos, quando Darcy tinha apenas 3. “Não fui domesticado por ele. E, como não tive filhos, nunca domestiquei ninguém. Dessas carências vem o traço principal do meu caráter: a coragem de me ser, gostem ou não”, afirma Darcy. Filhos biológicos, ele não teve nenhum. Mas “filhos afetivos”, teve alguns. Eric Nepomuceno é um deles. “Eu brincava dizendo que ele era meu ‘vice-pai’”, recorda o jornalista e escritor. Isa Grinspum Ferraz é outra. “Foram muitos anos de convivência, trabalho e amizade. Virei um pouco sua filha e estive junto com ele até sua morte, em 1997”, recorda a socióloga, que, entre outros trabalhos, assinou o roteiro e a direção do documentário Darcy Ribeiro – vulcão de ideias (2007), foi a curadora da exposição As utopias de Darcy Ribeiro, em Brasília (DF), e organizou o livro Darcy Ribeiro – utopia Brasil (Hidra). “O que mais me fascinava era sua inteligência livre e surpreendente. Lia e escrevia sem parar, tinha humor e amava a vida. Sentia-se responsável pelo Brasil e pelos brasileiros. Não era retórica nem demagogia. Ele de fato amava o Brasil e chorava pela tragédia brasileira com todo o seu corpo e alma”, afirma Isa.

Isa Grinspum Ferraz e Darcy Ribeiro | crédito: acervo pessoal

Quando criança, Darcy gostava de brincar de Tarzan nas árvores frondosas dos quintais e tomar banho na água salobra do Rio Verde Pequeno. Outro de seus passatempos favoritos era ler. Às vezes, dois, três livros ao mesmo tempo. Travesso, também gostava de aprontar das suas. Certa vez, o sacristão da matriz deixou o pequeno Darcy subir à torre para tocar o sino. “Só uma badalada”, frisou o homem. Quando o coroinha pôs a mão na corda do sino, enlouqueceu. “Badalei tanto que assustei a cidade. Pensavam que era incêndio”, diverte-se. Noutra ocasião, ouviu Seu Nelson, um farmacêutico, dizer que o doutor Plínio, seu tio, comprara tanto azul de metileno que daria para pintar o Oceano Atlântico. Bem, como a cidade não tinha mar, Darcy resolveu colorir a água do reservatório de Montes Claros. “Ficou toda azul, azulíssima. Assim, desceu para as torneiras e eu levei aquela santa surra.”

Em 1939, quando completou 17 anos, Darcy trocou Montes Claros por Belo Horizonte e, inspirado na figura de tio Plínio, “o homem mais culto da cidade”, ingressou na Faculdade de Medicina. Três anos depois, abandonou o curso e se mudou para São Paulo. Lá, passou a cursar ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP). Formado em antropologia, trabalhou, ao lado de Marechal Rondon (1865-1958), no Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Entre outros povos indígenas, conheceu os Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, e os Urubu-Kaapor, no Maranhão. Em 1953, inaugurou o Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e, em 1961, criou o Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. “Se os territórios tribais continuassem nas mãos dos índios, teríamos a garantia de que todo o esplendor da natureza brasileira seria preservado. Postos em mãos dos latifundiários, serão totalmente destruídos, porque fazendeiro não sabe fazer outra coisa com a mata senão queimá-la e plantar capim”, escreveu na crônica “Pacote sinistro”, publicada na Folha de S.Paulo de 6 de maio de 1996.

Durante o governo do presidente João Goulart (1919-1976), Darcy exerceu os cargos de ministro da Educação e ministro-chefe da Casa Civil. Com o golpe militar de 1964, exilou-se no Uruguai. Conseguiu sair do Brasil, no dia 4 de abril, com a ajuda de Rubens Paiva (1929-1971), a bordo de um Cessna. “Rubens era um homem muito forte. Devem ter usado de violência extrema para quebrar suas forças e matá-lo”, lamenta. Assim que aterrissou em Montevidéu, Darcy foi convidado pelo reitor da Universidade da República, Mario Cassinoni (1907-1965), a dar aula de antropologia na instituição. “O Uruguai foi para mim um exílio fecundo. Estudei e escrevi muito. Não tendo família que cuidar, nem velhos amigos que receber e visitar, nem obrigações sociais, tipo batizado ou casamento, nem mesmo ativismo político, a sobra de tempo era imensa, para espreguiçar ou para trabalhar”, relata.

Memórias do exílio

Darcy regressou ao Brasil quatro anos depois. Foi preso um dia depois de decretado o Ato Institucional no 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968. Certa manhã, acordou atordoado. Tentou caminhar pela cela e não conseguiu. Caiu, com o coração disparado. “Estou tendo um enfarte”, pensou. Poucas horas depois, chegou um médico, que o examinou, e disse: “Não há enfarte nenhum. É labirintite!”. “Quase caí de mim de tanta vergonha pelo medão que tive de morrer”, confessa. Em 1969, partiu para um novo exílio. No Chile, assessorou o presidente Salvador Allende e, no Peru, Juan Velasco Alvarado (1910-1977). Em sua última conversa com Allende, ouviu do presidente chileno: “Só sairei de La Moneda coberto de balas”. “Assim foi, e eu teria morrido com Allende se estivesse em Santiago”, garante. No exterior, Darcy conheceu e fez amizade, entre outros nomes, com o guerrilheiro argentino Che Guevara (1928-1967), o líder cubano Fidel Castro (1926-2016) e o poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973). Em suas andanças pela América Latina, enfrentou incontáveis terremotos: no México, Chile, Peru... “Cheguei ao hotel depois de um pileque de tequila e fui dormir. Acordei à noite, achando que a tequila era uma bebida terrível, porque eu via o quarto todo se mover, tão bêbado estava. De manhã, a cama estava do outro lado do quarto…”, conta.

Darcy estava em Paris quando, em 1974, foi diagnosticado com câncer no pulmão. Retornou do exílio em 1976 e fixou residência no Rio. Três anos depois, anistiado, tornou-se professor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Em 1982, disputou o governo do estado do Rio, como candidato a vice na chapa de Leonel Brizola. Ganhou. Em sua gestão, inaugurou a Passarela do Samba, também conhecida como Sambódromo, projeto do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). Em 1990, foi eleito senador pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e, dois anos depois, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). “Convencido que sou, esperei o resultado da eleição no restaurante Assirius, onde receberia os acadêmicos e também meus amigos”, gaba-se.

Darcy Ribeiro discursa em Sorbonne (França), no ano de 1978 | crédito: Fernando Rabelo

Como escritor, Darcy Ribeiro aventurou-se por diferentes gêneros: do romance – Maíra (1976), O mulo (1981), Utopia selvagem (1982) e Migo (1988) – à poesia – o póstumo Eros e tanatos (1998). Por pouco não estreou como escritor em 1942. À época, chegou a inscrever um romance, o ainda inédito Lapa grande, em um concurso da Editora José Olympio. Quem levou a melhor foi Antônio Olinto (1919-2009). Escreveu também ensaios nas mais diferentes áreas, da educação à antropologia, e até infantojuvenis, como Noções de coisas (1995) e Histórias gáticas (2002). “Se estivesse vivo, Darcy certamente estaria preocupado com os rumos do país. Estaria se pronunciando com veemência sobre todos os descasos e desmandos no cenário político. Mas, mais do que falar, penso que estaria fazendo de tudo para que a sociedade brasileira pudesse se dar conta do valor da democracia”, afirma o historiador Gustavo Henrique Tuna, editor da Global, que já lançou 24 títulos do autor. “Darcy sempre foi firme ao se posicionar em favor dos mais vulneráveis. Não suportava injustiças, fossem elas de qualquer tipo.”

Em defesa da democracia

Em 1994, Darcy foi internado no Hospital Samaritano, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, para tratar de uma pneumonia. Ainda assim, voltou a fazer travessuras. Certo dia, pediu autorização ao médico de plantão para dar um pulinho em casa, no bairro de Copacabana, para ver sua mãe e rezar a Iemanjá. Autorização concedida, fugiu para Maricá, a 60 quilômetros da capital. Em sua casa de praia, terminou de escrever O povo brasileiro (1995), uma de suas mais importantes obras. “O que Darcy diria do atual momento? Teria se indignado contra o extermínio de povos indígenas e a devastação da Floresta Amazônica. Acusaria o atual governo de não ter programas efetivos contra a fome e o combate à pobreza. Teria criticado, de forma contundente, o desprezo pelo conhecimento científico, mola propulsora para o desenvolvimento político-econômico, voltado para o social. Combateria o uso das novas tecnologias para mentir e enganar a população. Enfim, condenaria toda e qualquer forma de autoritarismo que ameaçasse a democracia”, analisa Haydée Ribeiro Coelho, doutora em teoria da literatura e literatura comparada pela USP e professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (Fale/UFMG).

Darcy Ribeiro | crédito: Acervo Fundação Darcy Ribeiro

Darcy Ribeiro morreu no dia 17 de fevereiro de 1997, em Brasília, vítima de câncer. Tinha 74 anos, 3 meses e 21 dias de idade. Sua última crônica, “Meninos de rua”, foi publicada na mesma segunda-feira em que morreu. Seu corpo está sepultado no mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista, no Rio. “Se ainda estivesse entre nós, Darcy seria uma liderança tremenda e permanente contra toda a destruição que vivemos nos últimos seis anos e, em especial, nos últimos três anos e nove meses”, enfatiza Eric Nepomuceno. “Muito mais que uma voz de denúncia, seria uma trincheira de combate. Não estaria na trincheira. Seria a trincheira! Darcy faz falta nestes tempos de breu.”

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