por Luiz Henrique Eloy Amado

Os povos indígenas têm muito para oferecer às sociedades não indígenas. São detentores de uma cultura riquíssima, marcada pela diversidade de línguas, cosmovisões e modos de vida no seu trato com a natureza e a espiritualidade, que se traduzem no bem viver. Temos também o nosso modo de fazer política, consistente em ações que visem à garantia de direitos historicamente conquistados.  

Em 2018 a Constituição está completando 30 anos de sua promulgação. Conhecida como Constituição Cidadã, documento que reconheceu diversos direitos socioambientais e solidários, a Carta de 1988 trouxe também um capítulo específico dedicado aos povos indígenas, inovando na ordem jurídica brasileira e reconhecendo um Estado pluriétnico, impondo o dever de respeito às organizações sociais, às línguas, aos costumes, às crenças e às tradições dos povos originários deste país.

Quando se fala em direito dos povos indígenas, é muito comum se referir à Constituição Federal. Não por acaso, ela é, sem dúvida, uma legislação divisora de águas na história do indigenismo brasileiro, pois marcou a transição de mudança de paradigma na relação do Estado brasileiro com os povos indígenas. Se antes a orientação estatal era “integrar” os povos indígenas à dita “comunhão nacional”, partindo da ideia de que essas sociedades eram sinônimo de atraso social e cultural, a nova Carta rompe com essa visão e determina o respeito e a manutenção dessa diversidade cultural. 

Entre as lideranças, também é consenso referir-se ao documento quando se fala nos direitos dos povos originários. É sempre bom rememorar a participação ativa dos povos indígenas no processo da Constituinte de 1988, que resultou na elaboração de um texto que contemplasse a dimensão sociocultural indígena. Lideranças de diversos povos e oriundas das mais variadas regiões do país compareciam diariamente no Congresso, ocupando os corredores da casa legislativa, fazendo lobby com os deputados constituintes com o único intuito de levar suas propostas para que seus direitos fossem contemplados. Sem dúvida, o episódio é um exemplo de participação ativa na construção da cidadania intercultural, fruto da luta do movimento indígena brasileiro.

Quando se fala nesse movimento, é comum citar as décadas de 1970 e 1980 como o início da mobilização indígena no país. No entanto, é preciso relembrar que o movimento é um processo de resistência que existe desde quando a Coroa portuguesa aportou neste território, em 1500, por parte de várias comunidades e lideranças, as quais, cada qual ao seu modo próprio, se opuseram ao processo colonial.

Contudo, precisamos, é claro, destacar que em cada momento histórico o movimento indígena foi marcado por formas, simbolismos e apropriações estratégicas. Ou seja, os anos 1970 e 1980 foram apenas mais uma maneira de como lideranças se apropriaram e se posicionaram perante aquele contexto histórico, mais uma etapa marcada por lutas e conquistas que se extraíram concretamente de líderes como Raoni Metuktire, Megaron Txucurramãea, Ailton Krenak, Álvaro Tukano, Domingos Veríssimo Terena e Paulinho Piakan.

Estamos relembrando os 30 anos da Constituição, um documento que marcou em muito a vida das comunidades indígenas. Neste ano, o Mekukradjá – Círculo de Saberes: o Movimento da Memória, promovido pelo Itaú Cultural e que contou com a curadoria de Daniel Munduruku e da antropóloga Junia Torres, propiciou o encontro de várias dessas figuras históricas e também de uma geração de jovens indígenas que trazem em sua trajetória a passagem pelas universidades. Tendo a oralidade como traço marcante, esses jovens agora se valem de novos instrumentos: “o saber dito científico aliado ao conhecimento tradicional” como arma para a defesa dos direitos dos povos indígenas e da Constituição, que vem sendo atacada ao longo de todos esses anos.

Nossas lideranças dão exemplo de verdadeira participação democrática e incidência nos poderes republicanos, pois, todas as vezes em que alguma decisão lhes afeta, elas deixam suas aldeias e vão a Brasília falar com as autoridades frente à frente. O cacique líder de sua comunidade senta para conversar com o ministro, o presidente, enfim, a autoridade do “branco”. Exemplo concreto disso foi a recente ida de uma comissão de lideranças indígenas da Raposa Serra do Sol, que na bagagem traziam um dossiê sobre suas comunidades, com dados atuais da população, da produção, do sentimento de solidariedade, da autonomia e do bem viver presente entre eles e seu território. O recado levado a todos os gabinetes dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) foi claro: a decisão da Raposa Serra do Sol foi acertada. O que provocou essa visita ao ministro do STF foi, é claro, uma manifestação do ministro Gilmar Mendes, que em outra situação havia reclamado que a decisão de demarcação daquela terra indígena fora equivocada.

O ano de 2018 foi marcado também pela intensa participação de representantes indígenas no pleito eleitoral aos mais diversos cargos: deputado estadual e federal, senador, vice-governador e até mesmo o caso inédito de Sonia Guajajara concorrer numa chapa presidencial. Ao todo, foram 131 candidaturas indígenas pelo Brasil, demonstrando a percepção que esses povos têm da importância de ocupar o espaço legislativo como arena para a luta por seus direitos, por meio de seus representantes próprios.

O movimento indígena continua, agora com novos personagens que trazem na bagagem a reverência aos seus líderes tradicionais e outros conhecimentos que surgem a partir do contato com a universidade do “branco” – travando uma luta para excomungar dos poderes da República todo e qualquer ato racista que tende a negar direitos a uma coletividade que sempre foi invisibilizada e condenada ao genocídio. Em sua maioria, são atos de agentes estatais que deliberadamente agem contra as populações, não se tratando de mero desconhecimento da questão indígena, mas, sim, de um argumento racista para legitimar a usurpação das terras, favorecendo interesses políticos e econômicos de setores particulares da população brasileira.

O movimento indígena não para. O seu comando não pertence a nenhuma liderança indígena que esteja viva no presente momento. O seu comando pertence aos nossos encantados, aos nossos ancestrais. Por isso, cada qual em sua área de atuação, seja nas organizações indígenas ou nos rincões da máquina pública deste imenso Estado, devemos obediência irrestrita aos valores deixados por nossos ancestrais, sob pena de sermos descartados ao esquecimento. O movimento indígena segue seu ritmo e seu fluxo, segue a resistência para a existência dos povos. Ele não para!   

 

Luiz Henrique Eloy Amado é indígena Terena da Aldeia Ipegue. Advogado, doutorando em antropologia social – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

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