por Cristino Wapichana
Do passado ao presente, resgatamos e atualizamos a nossa memória; e, ela, o mundo.
Foi com esse pensamento que o ciclo de saberes Mekukradjá convidou lideranças importantes do movimento indígena do Brasil para relatar experiências e avanços sociais, políticos, culturais e seus impactos nas sociedades indígenas no país após 30 anos da Constituição brasileira de 1988 – em especial os artigos 231 e 232, que tratam dos povos indígenas. Neste texto, fazemos uma crônica dos vários pensamentos surgidos durante essas mesas de debate.
Território e cultura
Sou a casa deste chão! Sou ancestralidade e testemunha da história que ninguém contou. Sou Umutina Balatiponé, sou Kayapó, Arara, Guarani, Kuikuro, Xerente, Wapichana, Munduruku.
Os olhos indígenas enxergam as diversas literaturas presentes nos cantos, na dança e na pintura. Os olhares acadêmico, indianista e indigenista são incapazes de expressar os valores ancestrais e a espiritualidade latente desses povos.
Falar da arte indígena é falar em território. Embaixo deste palco, existem várias camadas de tempo. Estamos pisando em cemitérios indígenas, recebendo as diversas energias. Estamos conectados.
Oralidade e história
A tradição oral é eficaz. Fundamental para a existência de um povo. Oralidade é poesia.
Os indígenas que possuem uma base não estão abalados culturalmente, mesmo com tantas interferências externas. Histórias possuem territórios. Um lugar de origem. Ouvimos histórias no caminho da roça, numa caçada, nas atividades diárias. Quando as escutamos ou as contamos, elas nos remetem ao lugar em que as conhecemos, e todas as cenas daquele ambiente são relembradas. Rememorar é fortalecer a identidade. Histórias devem ser contadas para filhos e netos por tios, avós, primos, pais.
A oralidade tem a função de reconstrução da história. A oralidade é o certificado do que nós conhecemos. A oralidade e a escrita têm a mesma função e símbolos comprobatórios de como somos vistos. A tradição oral carrega o conhecimento coletivo.
A língua faz parte da organização do mundo; a morte de uma língua é o desaparecimento de um mundo.
Cinema e resguardo da cultura
Dizia-se que as tecnologias externas acelerariam o processo de “civilização” dos povos originários. Era assim que críticos viam o trabalho do cineasta Vincent Carelli, que ensinava indígenas a manusear câmeras. Pelo contrário, as tecnologias ajudam a resguardar as culturas indígenas.
Trabalhar como realizador no cinema independente é acreditar em cinema de princípios. Levar os trabalhos para outras aldeias de modo a provocar reflexões e incomodar o público. Cada cineasta traz sua vertente. A visibilidade vem de dentro para fora; alguns filmes são de militância. Mostramos o que achamos importante, como o registro de cantos, danças, rituais em desuso, motivando os indígenas a voltar a praticá-los. É preciso usar as tecnologias de forma sustentável, como suporte para fortalecer a cultura do meu povo.
Tecnologia e perda da transmissão da memória
Os avanços tecnológicos estão provocando uma lacuna na história milenar dos povos indígenas. Filhos conversam pelo Facebook, estando um no quarto e outro na cozinha, perguntando o que tem para o jantar.
Os jovens já não conversam com os velhos. Usam as redes sociais para outros fins. Se os jovens não conseguem ouvir os seus velhos, os povos indígenas irão cair em extinção. Os indígenas dos países vizinhos choram ao ver nossos povos com suas danças, seus cantos, suas pinturas e seus rituais, por não os terem mais.
Somos Bayaroá (Tukano). Cantores curandeiros. Pensamos diferente do grego, do haitiano e dos corintianos. Apoiamos nossos parentes. Somos do mundo das águas. Não somos novidade aqui na terra. Somos antigos – e não invasores, como os portugueses. Temos lei própria. Acreditamos no Criador eterno e ensinamos nossas crianças.
Meu avô jogou no rio todos os nossos instrumentos sagrados para não entregá-los a estrangeiros. Escrevi histórias de meu povo para os meus filhos para que não esqueçam quem são. Temos que manter nossas tradições. Proteger e preservar nossas águas e nossas florestas. Não é Chico Mendes quem protege nossa floresta.
Movimento político indígena
Como enxergam o movimento político indígena hoje?
Álvaro Doéthiro – Precisamos de mais encontros com velhas lideranças, para manter equilíbrio.
Marcos Terena – Venho de um movimento indígena estrategista. Sempre fui de armação. Hoje acho que o movimento indígena precisa ser repensado. Não tem estratégia e é muito dispersivo.
Se Bolsonaro ganhar? O que acontecerá? Qual será a estratégia em relação aos povos indígenas?
Sônia Guajajara foi colocada como candidata a vice-presidente. Quem vota em vice-presidente?
Falta estratégia política!
Por que estão fazendo curso de saberes indígenas na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]?
Tem curso de língua terena. Não entreguem os conhecimentos ancestrais para a academia. Senão, serão donos dos índios!
E a comissão da verdade?
Marcos – Tortura psicológica. Os velhos indígenas não entram em carros. Em nome de que acontecem as perseguições políticas? Éramos chamados de bugres!
Estudei na Aeronáutica para piloto de avião. Era chamado de japonês e eu aceitava, porque japonês não era preguiçoso, lutava caratê e todos respeitavam.
Foi na última aula de pilotagem, quando eu estava nos preparativos para o pouso, que o instrutor, capitão, deu um tapa na minha cabeça por não acionar um botão no painel de controle do avião. Quando aterrissamos, o instrutor disse: "Parabéns, japonês, você passou!".
Foi nesse instante que a espiritualidade me fez voltar à minha ancestralidade.
– Permissão para falar, senhor.
– Permissão concedida!
– Eu não sou japonês! Eu sou índio Terena!
Nenhum indígena representa o outro.
Queremos mostrar os indígenas como profissionais participantes do mundo.
Vivemos para aprender um com o outro, conhecendo outras realidades. A universidade nos ocupa demais, enquanto nossa tradição terena vai se apagando dentro da gente. Buscamos nossas motivações com a mãe e os mais velhos.
Hoje estou no doutorado e a universidade foi mostrando como me reinventar. Minha relação com a universidade, embora conflitosa, é de reflexão. O saber ancestral na universidade é para quebrar esse conhecimento formal.
No Mekukradjá, alguém contou: “Minha mãe apanhava de palmatória para falar português. Na escola eu tinha muitos apelidos: bugra, índia, suja etc.”.
Estou na universidade e, com os conhecimentos que aprendi, percebo o quanto fui discriminada na infância apenas pelo que viam em mim.”
São 518 anos de contato com os portugueses. Nesta guerra perdemos muito de nossa cultura e lutamos para resgatar o que nos foi tomado.
Cortaram nossos troncos, nossos galhos, mas deixaram nossas raízes.
Aprendemos a respeitar o conhecimento tradicional e também o ocidental. Ambos devem andar juntos. Precisamos ser mais criativos e usar o que está no universo. Renovar os nossos conceitos.
“A justiça nunca sobreviverá sem os valores indígenas.”
Constituição brasileira de 1988
Artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, que tratam dos povos indígenas no Brasil. Diversas lideranças indígenas se empenharam para ter na Constituição um espaço para esses povos.
Temos cultura forte, mas somos tratados como pobres marginalizados na sociedade. Nossa Constituição foi a primeira da América Latina a criar um capítulo para os direitos indígenas. Serviu de exemplo para os demais povos incluírem os indígenas na Constituição.
Conflitos legais e questões indígenas
A lei criada para defender os indígenas não está servindo. É como a casa em que não mora ninguém: é fácil de pegar fogo.
Tentamos mostrar que as nossas terras deveriam ser contínuas. Infelizmente no Ministérios Público e na Justiça não temos amigos. As teses sobre os indígenas foram feitas pelos outros. Precisamos de um direito feito por indígenas.
Se os indígenas se manifestarem, os políticos vão temer!
O marco temporal foi criado para destruir a lei constitucional. Tantos indígenas doutorados que estão calados! Tem uma carta que muitos já leram. Leio vez por outra essa carta que um parente norte-americano escreveu. A carta do chefe Seattle. Ele escreveu pensamentos de índio! Cadê os professores indígenas para escrever sobre isso?
Se não fizerem isso, continuarão a nos chamar de preguiçosos!
Nossos pais, nossos avós lutaram para que fosse respeitada a nossa lei. Os jovens deveriam falar disso, mas poucos falam.
Ética, solidariedade, união
Temos que usar a ética. Cada povo tem ética e organização social. Talvez vocês tenham o diagnóstico e nós, indígenas, tenhamos a receita. O país está em crise, mas temos a certeza de que não é por nossa causa.
Dentro de uma aldeia as coisas não acontecem separadamente.
Um plantou a banana da educação, outro a mandioca da saúde. Muitos estavam do nosso lado.
Se tu sabes quem é e onde está e conhece quem está perto de você... junte-se!
O grande pisa em você, o pequeno te socorre.
Indígena conhece e reconhece outros indígenas. O Pariwat sabe de todos os problemas com a gente. Para estar aqui precisei ouvir primos, meus tios, avós, pais antes de eu deixar a aldeia para ganhar conhecimento dos velhos.
Marcos Terena falou em Nova York para muitas pessoas. Os velhos lhe perguntaram:
– Quantos estavam lá?
– Mil!
– Quantos te ouviram?
O aprendizado dos seus
Frequentei a escola, mas não concluí. Desisti para não perder a maneira de ser indígena.
Muitos jovens foram estudar fora e, quando retornaram, não sabiam mais fazer fogo, caçar, escolher o melhor lugar para pescar. Não sabiam tratar a esposa e o esposo.
Quando entrei na academia, foi um choque cultural. Mas ninguém da academia havia feito algo sobre a língua do meu povo. Preocupado, estudei para poder trabalhar com propriedade como linguista do meu povo Xokleng.
O que você aprendeu com sua família depois que você foi para a universidade?
Amado: amai o teu próximo como a ti mesmo. Ser e estar no mundo é isso!
Fragmentos de denúncia
Fomos chamados de indolentes, mas indolentes são os que ganham mais de 300 mil reais e não batem ponto.
Não somos nós que estamos ferrados, não, cara pálida!
Vocês não são brasileiros?
Houve uma mulher indígena que foi amarrada com as pernas abertas e partida ao meio por facão! Onde estavam?
Fragmentos de diálogo
Eu quero conversar com você. Você entende o que eu falo?
Use sua língua e sua inteligência para conversarmos. Somos humanos, não precisa me perguntar muito. No mundo somos parecidos, cheio de coisas boas e ruins.
Dentro do estar no mundo devemos fazer intercâmbios culturais; vamos nos juntar para rir e melhorar nosso lugar!
A palavra tem alma e vida. Saber usá-la para bem tratar o outro é inteligência. Cabe a uma sociedade decente o respeito.
Cristino Wapichana é músico e escritor.