Criolo já cantou que “cada maloqueiro tem um saber empírico”. Alguns desses saberes foram e são construídos coletivamente por necessidade. Outros são heranças culturais e espirituais, compartilhadas até despretensiosamente por nossos tios, nossas mães, nossas avós e nossos amigos enquanto se passa o café, nas conversas que parecem corriqueiras, em qualquer roda que se forme nas festas de família. Tudo isso compõe inteligências sociais complexas demais para ser replicadas por quem não as vive, mas genuínas e ricas o bastante para atravessar gente que parte de muitos lugares-comuns.

O que acontece, então, quando maloqueiras e maloqueiros passam a encarar seus saberes empíricos como conhecimento palpável, a ser lapidado, registrado e partilhado?

Façamos uma viagem pelo tempo-espaço até Itaquera, na Zona Leste de São Paulo (SP). Estamos na madrugada do dia 21 de abril de 2017. Pra ser mais específica, estamos no canto do quarto da Ana Beatriz, que organiza pautas para a gravação do episódio 1 de seu podcast. Ela liga pela primeira vez o microfone, comprado em 12 vezes, e fala sobre afrofuturismo, sankofa e música.

Ana Bê começou a criar o seu podcast em abril de 2017 (imagem: Lucas Farias)

O NIAcast nasceu ainda sem nome, compartilhado com o mundo às 7h da manhã, em um tweet tímido da menina que tinha muito o que dizer mas temia ser julgada. Inspirada nos muitos encontros com amigas e amigos que visitou em diferentes quebradas durante as férias, nas conversas com o irmão mais velho e na cultura hip-hop, Ana Bê, como é carinhosamente chamada, cruzou a fronteira dos silêncios e deu movimento às tantas inteligências dentro de si. No início, porém, falar abertamente sobre seu projeto até para essas pessoas mais próximas era um desafio. 

“E se eu for mal interpretada?”

Acontece que capturar o que a atravessava já tinha se tornado tão inevitável que a cada mês um novo episódio de seu podcast ganhava vida. Tudo o que a tocava era anotado e guardado para uma próxima edição, e Ana seguia se colocando no mundo, mesmo com o medo – que, aliás, foi diminuindo e diminuindo a partir do momento em que ela assumiu pra si mesma que tudo era sobre o processo. Sobre o que ainda estava sendo aprendido. Ó, que bonito.

Pensar nisso a conectou à potência de sua própria verdade, e não à projeção do erro.

Não deu outra: os pais se emocionaram ao se reconhecerem no que ela contava ali, o irmão que mora longe ficou orgulhoso, e os amigos a convidaram para apresentar o sarau do Coletivo Negro Vozes, da Universidade Federal do ABC (UFABC), onde estudam. Logo, pessoas que ela ainda não conhecia também passaram a dizer que se identificavam com o que ouviam. Pronto. Era do que Ana Bê precisava para fortalecer o que já sabia: sua voz e sua forma de contar como as coisas chegavam a ela conversavam com muitas outras pessoas.

“Eu sou um pedacinho de várias histórias que deram continuidade e desaguaram aqui.”

Ana Bê é a criadora do podcast NIAcast (imagem: Alice de Carvalho)

Da família com raízes em Pernambuco às zonas Norte e Leste da capital paulista, Ana Bê traz na bagagem um punhado de memórias. É verdade que, em algum momento, entre o que disseram que ela precisava ser e a descoberta de sua grandeza como já é, Ana se sentiu desconfortável em seu próprio corpo. O que a libertou do que não era seu foi justamente se dar tempo, mudar de cabelo quantas vezes fosse, observar o que os tantos outros processos de gente que se parece com ela tinham a ensinar nos detalhes. Aprendeu indo à praia com a amiga Jéssica, ouvindo música preta com o pai e buscando vírgulas, ao invés de um ponto-final, na história da vó Claudete, que faleceu quando ela tinha 8 anos.

Hoje, aos 21, fala sobre o que gostaria de ouvir, como gostaria, mas com a beleza e o tom de quem convida. Ana Bê atenta ao que ainda tem a aprender e, ao longo das 19 edições do podcast, passou a se preocupar mais com a linearidade das narrativas, a diversidade das pautas, as novas formas de captação da voz, e adicionou música, muita música, especialmente o rap, como um grande e poderoso fio condutor de tudo. Nada mais coerente, já que o nome NIA foi inspirado no álbum do Blackalicious e, como descoberto por ela depois, esse é um dos princípios da celebração afro-americana Kwanzaa, que significa PROPÓSITO. Pergunto, então, qual é o propósito do NIAcast, e Ana Bê sorri:

“É simplesmente sobre entender quem a gente é”.

Ilustração criada por Ana Bê (imagem: Ana Bê)

Só mesmo alguém tão disposto a falar mais sobre o caminho do que sobre o destino final poderia oferecer uma resposta tão grandiosa com tamanha leveza. Se existem muitas formas de aprender, que todas as que descobrimos até o momento sejam escritas, cantadas, faladas, postadas, revisitadas. Que existam para além de nós, de nossas casas, de nossos corpos, e cheguem aonde precisam, “sampleadas” em outras descobertas. No fim, é tudo sobre propósito.

Para #mergulharnainspiração, ouça aqui o episódio 19 do NIA. <3

Obrigada, Ana Bê.

 

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