por Nayra Lays

 

“Eu sou a minha própria embarcação / Sou minha própria sorte.”

Os versos de Luedji Luna abrem os caminhos em Boa Sorte, segunda música de trabalho de Marabu, e se repetem como um mantra. Assim como a cantora e compositora baiana, Matheus Santos, nome de nascimento do artista, lança seu corpo e sua arte no mundo, sabendo que não, este mundo não nos suporta, e reserva para nós o não lugar.

Marabu tem 23 anos e é de Capão Redondo, na Zona Sul paulistana (imagem: @bahyra_)

Ele, então, juntou esse não lugar aos de outras pessoas tão grandes quanto para realizar algo extraordinário: uma construção artística que reflete o tempo que nós já somos. Uma baita missão, partilhada e fomentada com Wellison Freire, Amanda Figueiredo e Caue Carvalho, sócios da firma, como se chamam, mas, antes disso, amigos de longa data do MC e compositor. Com projetos individuais em produção-executiva, comunicação e música, os três hoje fazem parte da equipe fixa que trabalha com Marabu, desenvolvendo estratégias para que tudo saia com a excelência que a arte pede.

Por falar em excelência, “Boa Sorte” e Negócios, primeiríssimos trabalhos de Marabu, também contaram com a mente e as mãos de Levi Keniata, produtor musical responsável por lapidar as duas obras, escritas há algum tempo e que, antes de ser lançadas, eram apresentadas em saraus e slams com outras roupagens. Partindo do Sarau da Cooperifa para muitos outros espaços de São Paulo (SP), Marabu vivenciou as primeiras reações do público às suas performances ao vivo e começou a sentir uma musicalidade que já se mostrava organicamente forte quando declamava. O encontro com Levi foi o início de uma alquimia criativa que trouxe à tona desafios e ambições ainda maiores, como lançar um disco.

“Eu sempre fiz música, mas eu não tinha conhecimento e não sabia como viabilizar.”

No início, tudo vinha da intuição. Da visita ao sentimento que inspirou a palavra, antes de qualquer técnica. Mas, ó, falando em sentimentos, engana-se quem acha que um jovem preto de 23 anos vindo do Capão Redondo, na Zona Sul paulistana, está interessado em falar só da raiva, da dor. Existem, no que já foi lançado, boas doses de deboche e muito, muito desejo de vida para si mesmo, e para as suas e os seus. É por isso também que todo o investimento e o risco corrido valem a pena. Quem não cresce com a perspectiva de ver potência no que sabe vai encontrar força para eternizar o que está aprendendo onde mais senão nos motivos coletivos?

Marabu tem o desejo de explorar identidades musicais afro-brasileiras que dialoguem com o máximo de pessoas possível (imagem: @getup.f)

Há muito a ser dito, e, a esta altura, ele aprendeu que pode, sim, “passar a visão” de MUITAS formas. Olhou para trás, para os lados, para o agora, e abraçou as muitas influências musicais que o compõem, para além do rap. Fala tranquilamente sobre algumas das coisas que tem ouvido, como Dodô Pressão, MC Troia e Dadá Boladão, cantores do estilo brega. Já viu de perto um show da Beyoncé e cita Neguinho do Kaxeta, um dos maiores nomes do funk atualmente, como uma grande inspiração.

“Eu gostava dos forrós que minha vó ouvia, mas como eu ia falar que gostava se eu sabia que ia ser tirado*?”

Se antes o tentaram convencer de que as raízes pretas e nordestinas eram motivo de vergonha, hoje são elas o religare ao seu próprio divino, ao seu lado espiritual, alimentando em Marabu o desejo de explorar identidades musicais afro-brasileiras que dialoguem com o máximo de pessoas possível. Da galera dançando nos shows feitos com a DJ Livea Soares à dona Josy, mãe do Levi, cantando o refrão de um dos sons nos quais eles ainda estão trabalhando, o objetivo se mostra cada vez mais real. E é inegável que tecer narrativas assim exige coragem.

Coragem.

Nomes como Gilberto Gil, MC Tha e Criolo são citados quando pergunto quais artistas têm demonstrado a audácia de “dar rasteiras em si mesmos, reinventando-se quando todo mundo acha que já entendeu tudo”, como ele mesmo diz. Marabu se enxerga nesses e em outros artistas, reconhecendo que tal coragem é necessária por existir um mercado musical que cria e alimenta fórmulas muitas vezes limitantes criativamente, mas que por vezes se mostra rentável mais rapidamente. Sendo assim, como se manter autêntico sem abrir mão de ganhar grana, que também é muito bem-vinda? Até agora, o caminho tem sido acreditar nos processos e no poder de conexão da música.

Por enquanto, não existe glamour, e pelo menos duas vezes por semana ele se desloca do Capão Redondo até o estúdio em São Caetano (SP), dividindo-se entre o trabalho e a graduação em história na Universidade de São Paulo (USP). A cada sessão, são muitas as descobertas sobre o próprio corpo como instrumento, e aprendizados sobre seus medos, suas inseguranças e seus padrões. Até brisas ganham forma, e muitas vezes são materializadas como a parte mais bonita de tudo, por revelarem também o menino com memórias do que o torna quem é. Um brega com uma pitada de funk, ou aquele samba-rock, que lembra as festas das casas de tantas famílias pretas? E os dois? Entonações leves ou densas, rima ou canto? E se tudo for experimentado, em diferentes momentos?

Marabu é MC e compositor (imagem: @getup.f)

É sobre poder definir a si mesmo.

O que eu tive a chance de ouvir em primeira mão desse novo trabalho, ainda sem nome, me levou exatamente ao universo que está sendo criado, no qual narrativas e personagens próprios se interligam brilhantemente (spoiler permitido), e me fez viajar em um tempo não necessariamente linear. Incrível, né?

“Outras narrativas precisam ser contadas.”

E, se até aqui tudo foi construído com a ajuda de tanta gente, agora não seria diferente. Com o objetivo de custear parte da produção do disco, foi lançada em junho uma campanha de financiamento coletivo, que atualmente já está com 50% do valor total arrecadado. Para incentivar ainda mais as contribuições, foram pensadas recompensas especiais, que vão desde artes digitais exclusivas até convites para a audição e o evento de lançamento do projeto. Chique!

Aprendendo a lidar com momentos de crises e ansiedades diante das tantas incertezas no corre, especialmente com o cenário político que estamos atravessando, o artista segue contando o que está sendo absorvido, observado e sentido. Marabu, como também era chamado o responsável por transmitir conhecimentos em algumas regiões da África Ocidental, tem plantado, todos os dias, sementes preciosas, regadas de dentro para fora, dia a dia. Vai ver é por isso que não suportam nossos corpos no mundo, afinal. É que, quando descobrimos que somos mais do que alvos, nos juntamos e damos frutos eternos. Haja sorte para quem deseja nosso fim.

Boa colheita, Marabu. Obrigada.

Para saber mais sobre a campanha de financiamento coletivo do #discomarabu, é só clicar aqui.


 

*Ser tirado (gíria): ser zoado, ser vítima de discriminação.

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