por Marcella Affonso

Passados menos de dois meses da aprovação da lei que declarava livres todos os “filhos de mulher escrava” que nascessem no império a partir de então, vinha ao mundo, no dia 23 de novembro de 1871, na cidade mineira de São João del-Rei, um personagem ímpar na história das artes circenses do país. Filho de dona Leopoldina Souza, uma mulher negra que havia sido escravizada, e de Francisco Alves, um português branco, seu nome era João Alves da Silva. Um homem negro que, pouco tempo depois da abolição da escravatura, se tornou o proprietário de um grande circo, o Circo Teatro Guarany, assumindo a frente da maior manifestação artística popular das terras brasileiras na época – posição que manteve até 1954, ano de sua morte.

Invisibilizada e esquecida pelo tempo, essa trajetória agora está registrada numa monografia de 350 páginas, resultado de uma pesquisa de campo realizada ao longo de cinco meses por Mariana dos Reis Gabriel, bisneta de João Alves, junto com sua mãe, Daise Alves dos Reis Gabriel (neta dele), e seu pai, Roberto Salim Gabriel. Apoiado pelo Rumos Itaú Cultural, o trabalho em família em busca de documentos da época e de depoimentos sobre João e o Grande Circo Guarany começou em outubro de 2018. A ideia de resgatar os caminhos de seu bisavô, contudo, nasceu antes, dum mergulho na vida de sua avó Maria Eliza Alves dos Reis, tida como a primeira palhaça negra do país, que interpretava o Palhaço Xamego no circo do pai. O trabalho culminou no filme documental Minha Avó Era Palhaço (2016).

O senhor João Alves da Silva, artista circense e proprietário do Circo Teatro Guarany (imagem: acervo pessoal)

“Estávamos havia três anos circulando com o documentário e começamos a nos questionar sobre o meu bisavô. Quem era essa figura? Quão grande era o Circo Guarany?”, relembra Mariana, que a partir dali sentiu a necessidade de engajar-se em um novo projeto de pesquisa e registro. “Várias dessas histórias são passadas de geração para geração, mas muitos desses artistas da época áurea do circo brasileiro já são muito velhinhos, então fui percebendo como era importante documentá-las e documentar também a história da minha família, sobretudo por ser uma história de artistas negros, protagonistas negros.”

Era tudo verdade

Depois de uma longa pesquisa prévia – telefonemas, encontros e trocas de e-mails que vinham sendo realizados desde 2016 –, Mariana, Daise e Roberto pegaram a estrada rumo aos possíveis caminhos realizados por João Alves antes do Circo Guarany e também depois dele para tentar reconstruir esse passado. “A princípio a gente sabia que o circo havia andado pelo estado de Minas Gerais, que é onde o meu bisavô nasceu. Lá foi o nosso ponto de partida”, relata Mariana.

Entre outros espaços, foram feitos levantamentos em cartórios, bibliotecas, centros culturais e museus de 33 cidades de 4 estados brasileiros: além de Minas, passaram por São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Ao longo do trajeto entrevistaram 62 pessoas, incluindo importantes estudiosas da história circense brasileira – a professora Regina Horta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte; a professora Ermínia Silva, da Universidade de Campinas (Unicamp); a pesquisadora Alice Viveiros de Castro, do Rio de Janeiro (RJ); e Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, na cidade de São Paulo (SP) – e personagens da vida real cujas histórias se mesclam à do grande circo de João.

Depoimento de Teófanes Silveira, o palhaço Biribinha, um dos 62 entrevistados

“As histórias que eu sabia sobre o circo era a minha avó quem contava – que ele era grande e rodava o Brasil inteiro, que eram fretados vagões de trens para levar sua estrutura. Ver que isso era verdade foi uma das coisas mais lindas deste projeto, porque havia coisas que a gente achava que era um pouco história de vó, né? Fantasiosas”, conta Mariana, emocionada. Uma das descobertas em meio às reportagens de jornais da época é a certeza de que o circo de João chegou a ser capaz de acomodar 2 mil espectadores e a ter banda própria e uma trupe de pelo menos 60 pessoas.

De acordo com a pesquisa, o Circo Guarany ficou sob o comando da família Alves no mínimo até 1958, e suspeita-se que suas atividades tenham sido encerradas a partir de 1957.

Um alento para a memória audiovisual do circo brasileiro

A monografia, resultado do projeto Os Caminhos do Negro João Alves por Esse País de Meu Deus – Entre Lonas, Serragens, Picadeiros e Palhaçadas, foi impressa e entregue a dez dos arquivos, bibliotecas e museus utilizados como fonte de estudo. A ideia, contudo, é que o trabalho seja continuado em um novo projeto: além de prever a publicação de um livro, a família quer que a pesquisa seja ampliada e transformada em um documentário de longa metragem, sobretudo por notarem uma carência de registros audiovisuais da história do circo brasileiro.

“Temos a intenção de inscrever um projeto de continuidade na próxima edição do Rumos para visitar estados por onde o Circo Guarany passou, mas que não estavam previstos neste primeiro momento”, adianta Mariana. Numa densa pesquisa pela Hemeroteca Digital do Arquivo Nacional, ela e os pais encontraram 56 citações sobre o Circo Teatro Guarany, descobrindo que este também foi apresentado em outros três estados: Mato Grosso, Bahia e Espírito Santo.

Em relação ao documentário, a previsão é que o roteiro seja fechado ainda no segundo semestre de 2019, assim como a segunda parte das filmagens, e que sua estreia nas telas de cinema seja no dia 21 de março de 2020, data de celebração do que seria o 111o aniversário de Maria Eliza Alves dos Reis.

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