por Ivana Moura e Pollyanna Diniz

 

A humanidade é mortal. Rainhas e reis, ditadores, bilionários, pobretões, gênios, melancólicos, todos morrem um dia. Mesmo que alguns arroguem infinitude. Apesar dos recursos tecnológicos, o controle sobre a morte é uma ilusão. “Ainda”, dirão alguns. Dois trabalhos da segunda semana do evento Cena agora – arte e ciência teceram fios sobre a temática da morte: Das águas que atravesso: um diário de vida que ancoro, da médica Renata Meiga, com direção de Jhoao Junnior, e O futuro não é depois: uma performance palestrativa sobre Cazuza e Herbert Daniel, com Fabiano Dadado de Freitas e Ronaldo Serruya. A professora Dodi Leal, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), mediou o debate pós-cenas.

O diário fílmico sobre os apontamentos de “doulagem” da “paliativista” Renata Meiga é construído em cinco partes – histórias de como as pessoas lidaram com os últimos tempos de vida, narradas pela médica. Em uma delas, por exemplo, acompanhamos a história da senhora chinesa que, na infância, viu seus conterrâneos ser fuzilados por japoneses. Ela migrou para os Estados Unidos, onde morreu honrada por sua única filha, cercada por cuidadoras e ouvindo sua música preferida.

Imagem do mar. Ao fundo é possível ver uma canoa, com uma pessoa dentro. A pessoa está distante, bem ao fundo da imagem, pequena na imensidão do mar azul. O céu azul também compõe a fotografia.
Das águas que atravesso: um diário de vida que ancoro, da médica Renata Meiga, com direção de Jhoao Junnior (imagem: Jhoao Junnior)

Em A trilogia das barcas, o dramaturgo português Gil Vicente articula elementos expressivos para pensar a morte: a morte como travessia, o barco, o barqueiro e o rio. Renata se apresenta como barqueira, buscando garantir as melhores condições para que o paciente faça sua travessia. “Cada vida de que a gente cuida é um livro dotado de uma biografia interessantíssima”, pontua. O trabalho carrega ética na sua estética simples e uma lição de empatia.

Cada um de sua tela, Fabiano Dadado de Freitas e Ronaldo Serruya brindam: “Saúde” – um desejo tão caro para nós brasileiros enlutados. Assim começa O futuro não é depois: uma performance palestrativa sobre Cazuza e Herbert Daniel, único trabalho apresentado ao vivo na segunda semana da programação. Cazuza (1958-1990) deixou sua marca de rebeldia, polêmica e ousadia na música brasileira como cantor, compositor, poeta e letrista. Morreu em decorrência da Aids, aos 32 anos de idade. Já Herbert Daniel (1946-1992) foi um revolucionário gay que desafiou a ditadura de direita e incomodou os pares de esquerda que “rezavam” o padrão heteronormativo. Um dos poucos integrantes da luta armada a escapar da prisão e das torturas, exilou-se em 1974 e foi o último dos anistiados. Voltou ao Brasil em 1981, tornando-se um militante essencial pelos direitos das pessoas vivendo com HIV e Aids.

Dadado repercute a vida e a obra de Cazuza, traçando reflexões que vão desde a experiência de se aproximar da morte até o fim das ideologias apregoado no pós-queda do Muro de Berlim e a patologização dos corpos dissidentes no Brasil. Lembra que foi com o álbum Ideologia, de 1988, que o músico “metaforizou a Aids”. Em “Boas novas”, a letra é direta e cortante: “Senhoras e senhores / Trago boas novas / Eu vi a cara da morte e ela estava viva”.

Tanto Dadado como Serruya experimentam a ideia e o lugar de herdeiros de Cazuza e Herbert Daniel, seus ancestrais. Serruya reproduz, por exemplo, o conceito de morte civil definido por Daniel: “Eu vivo a Aids como qualquer outra dificuldade do existir. Sou o corpo que precisa se afirmar vivo todos os dias como ato político. Eu me recuso a carregar esse óbito provisório que vocês reservaram aos corpos como o meu”.

O poder médico, arrogante, que nos primeiros 15 anos da epidemia de HIV/Aids desumanizou o portador do vírus, é criticado na apresentação. “Em ‘40 segundos de Aids’, um dos muitos escritos de Herbert sobre a doença, o foco é o despreparo da medicina”, diz Serruya ao condenar o tipo de postura que levou um médico a dedicar 40 segundos a dar o diagnóstico a Herbert Daniel. “Uma medicina fóssil, que tem mais de terrorismo do que de ciência.”

Corpos, histórias e movimentos esmiuçados

No último dia 29 de maio, a Polícia Militar de Pernambuco reagiu ofensivamente às pessoas que marchavam pacificamente no Recife contra o governo federal. Dois homens que nem participavam da manifestação foram atingidos por balas de borracha nos olhos. Um deles era Jonas Correia de França, de 29 anos, auxiliar de carga e descarga de contêineres, que estava de bicicleta a caminho de casa. O vídeo em que Jonas se senta no chão, chora desesperado, leva a mão ao rosto e chama por Deus foi incorporado à obra Figura humana – trabalho em processo a partir do estudo de Oskar Schlemmer, do grupo chileno-brasileiro Tercer Abstracto.

O coletivo parte do movimento social que aconteceu no Chile no dia 18 de outubro de 2019. Nessas manifestações, 469 pessoas sofreram traumas oculares, vítimas das forças militares. A partir de determinado momento de Figura humana, português e espanhol dividem espaço, paralelamente, num sinal de que as lutas na América Latina são, por vezes, muito semelhantes.

A imagem mostra três pessoas em um palco, cada um em uma extremidade do espaço. Eles estão fazendo movimentos corporais. No chão há um desenho geométrico que dividi o espaço em quadrados.
Figura humana – trabalho em processo a partir do estudo de Oskar Schlemmer, do grupo chileno-brasileiro Tercer Abstracto (imagem: Brendo Trolesi)

O trabalho, que se estrutura inicialmente como um documentário, reverbera: “Um país é construído pelas figuras humanas que atuam nele”, reforçando que talvez tenhamos que “criar um novo vocabulário. Compreender, do zero, a arquitetura que sustenta a sociedade”. Na segunda parte, são traçadas linhas de composição que saem da bi para a tridimensionalidade do palco. A atuação dos manifestantes, a reação de Jonas ao ser atingido e o avanço da polícia são transformados em partituras corporais descritas e reproduzidas em diferentes combinações e localizações no espaço geometrizado. Os movimentos são esmiuçados, dissecados, como se, contraditoriamente, precisássemos retirar os componentes da vida real, ampliar os distanciamentos, enxergar o jogo de tabuleiro, para aí devolver humanidade aos corpos dos manifestantes.

Já em Corpos aleatórios ou sobre a aparente aleatoriedade da vida, trabalho assinado pela AntiKatártiKa Teatral, com direção de Nelson Baskerville, o corpo se torna um jogo de encaixe, sobreposições e combinações matemáticas. A experiência reúne histórias de cinco pessoas – Dani D’eon, Larissa Nunes, Michelle Bráz, Ronaldo Fernandes e o próprio Baskerville. 

O dispositivo escolhido foi um site: com um clique, um sorteio é realizado, e o novo corpo é montado a partir de experiências fracionadas. Começamos ouvindo uma história de infância contada pelo pernambucano Ronaldo Fernandes. A próxima história, que poderia ser de qualquer um dos cinco atores, dizia respeito à adolescência; a terceira, à fase adulta; e a quarta era uma espécie de resumo da vida. São 625 possibilidades de combinações no total. 

Nesse experimento se entrecruzam a autoficção (que lida com o material biográfico para construir a dramaturgia, algo que Baskerville faz pelo menos desde Luis Antonio – Gabriela) e os questionamentos sobre a padronização dos corpos. Sim, porque esses corpos montados pelo esquema matemático são formados por fragmentos, numa combinação que talvez seja parecida com a construção dos nossos próprios corpos. Mutáveis, suscetíveis a intervenções, à passagem do tempo, ao acúmulo de experiências.

Ruínas e templos

De 1940 a 1990, empresas mineradoras da cidade de Urussanga, em Santa Catarina, lucraram com a extração de carvão mineral. Essas atividades exploratórias causaram danos ambientais graves: remoção da vegetação, contaminação de recursos hídricos e degradação do solo, poluição do ar com a eliminação de altos níveis de fumaça e fuligem. No papel, as firmas foram condenadas a executar um projeto de recuperação da área danificada.

Em maio de 2021, a artista Walmeri Ribeiro, do programa Territórios sensíveis, foi convidada para compor uma equipe de pesquisa na cidade catarinense. Na volta ao Rio de Janeiro, com essa experiência pulsando no corpo, foi chamada pelo Itaú Cultural (IC) para participar do Cena agora. O resultado foi Não se pode tocar, está em mim, está em nós, obra colaborativa que, além de Walmeri – presente em cena –, conta com Ana Emerich, Eloísa Brantes e Sofia Mussolin. O som rico em texturas chega primeiro nesse experimento de imagens poderosas de destruição, que trazem à memória a lavagem do minério que tornou o rio laranja. “Tudo aqui é rejeito”, vozes repetem na gravação.

O projeto Territórios sensíveis pesquisa a criação em arte que mantém um diálogo com as questões ambientais diante dos impactos do Antropoceno e das mudanças climáticas nos modos de vida contemporâneos. O trabalho executa a sensibilização com a força micropolítica da arte. É uma forma ético-política e participativa de fazer arte e expor esses territórios em ruínas.  

Imagem mostra uma área verde aberta. No meio da imagem é possível ver uma mulher negra agachada, ao lado de dois montantes de terra. Ao fundo é possível ver grandes árvores compondo a paisagem do local.
Espaços perecíveis de liberdade, de Castiel Vitorino (imagem: frame de vídeo)

A artista Castiel Vitorino, escritora e psicóloga, mulher trans, preta, nascida no Espírito Santo em 1996, exibiu o trabalho Espaços perecíveis de liberdade. O mesmo título nomeia o segundo encontro do curso Estéticas macumbeiras na clínica da efemeridade, conduzido por Castiel desde 2019 para cinco turmas distintas. Na ementa desse encontro específico, Castiel explicita: “Estudar os processos de formação ontológica vividos nos Calundus, que possibilitaram a Cabula, as Umbandas, o Candombe e os Candomblés. Romper com o ‘Nagocentrismo’. Desinstitucionalizar a espiritualidade dos Templos Religiosos. Compreender o Tempo Linear como ferramenta da Violência Racial. Aproximar-se do Tempo Exusiático, encruzilhado. Estudar poéticas que instauram espaços perecíveis de liberdade”.

Todos esses elementos se materializam, imbricados, no vídeo apresentado no Cena agora. Castiel gravou num espaço aberto, descampado, no meio da natureza, em Boituva (SP), desde o entardecer até o amanhecer. A poética da artista está direcionada para o desejo de cura, a felicidade e a liberdade, entendendo a liberdade como um momento, um acontecimento que inaugura espaços. No experimento, que privilegia o plano aberto, o trabalho com a luz e a sonoridade ambiente, arte, espiritualidade e ciência são parte de um mesmo eixo de resistência e propagação das heranças africanas.

Na conversa mediada por Emerson Uyra, artista visual indígena, mestre em ecologia, Castiel disse que, desde que se entende por gente, se questiona como continuar livre. “A liberdade para pessoas racializadas, travestis e trans no Brasil beira uma mentira. O Brasil é uma grande desgraça; a brasilidade é uma maldição, a abolição nunca existiu. Existe uma farsa da abolição.”

Teatro no museu de ciência e ciência preta nas redes

Quais são os pontos de intersecção entre as experiências artísticas e as obras científicas? Um espetáculo de teatro, por exemplo, pode ser ciência? A trajetória do professor Marcus Vale, fundador da Seara da Ciência, museu da Universidade Federal do Ceará (UFC), mostra que arte e ciência são campos de transformação capazes de se potencializar mutuamente. O museu tem várias peças no repertório, além de ter feito vídeos, história em quadrinhos e livro com temas como bioquímica, a natureza da luz, energia e vacinação.

O debate que abriu a segunda semana do Cena agora contou, ainda, com a participação de Kananda Eller, química conhecida como “deusa cientista” nas redes sociais, e de Letícia Guimarães, do Museu da Vida, com mediação do ator e diretor Leonardo Moreira, mestre em ensino de ciências e doutor em educação. O museu, ligado à Fiocruz, possui uma produção sistemática de espetáculos profissionais de temática científica. “Não estou no museu para ensinar alguma coisa; no entanto, a educação é a base de tudo e de todes”, pontuou Letícia, reafirmando a missão de popularizar a ciência e a saúde a partir da mediação da arte.

No caso de Kananda, a experiência como pesquisadora preta faz com que as questões de raça permeiem os vídeos e conteúdos publicados nas redes. Como desbancar o sistema de ensino e de produção de conhecimento e ciência majoritariamente brancos? No discurso que é prática: disseminando informações – que se misturam ao entretenimento proposto pelas redes sociais – sobre cientistas pretos e suas descobertas, e sobre a própria história, muitas vezes racista, da ciência.

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