por Milena Buarque Lopes Bandeira
O teatro na vida de Alícia dos Anjos se estabeleceu como concretização de um sonho de infância, mas também como simbologia de processos de transformação e ruptura. Trabalhando no caixa de uma rede de lojas brasileira especializada em comércio de materiais de papelaria e eletrônicos, em 2016, Alícia notou a premência do “bichinho da arte” quando se esqueceu de conferir a conta bancária no dia do pagamento do salário porque estava em uma diária de uma campanha publicitária. “Nesse dia, pensei ‘não estou recebendo por isso, mas estou tão feliz, que não tem dinheiro no mundo que pague essa sensação’.”
A artista em gestação largou o emprego, se enveredou pelas redes sociais em busca de trabalho e projetos na área das artes cênicas e passou a estudar teatro. Hoje, Alícia é uma das criadoras e proponente do Coletivo Dela, que estreia neste mês o espetáculo A lagarta & o camaleão, uma peça infantil que tematiza questões de gênero e identidade a partir do teatro de bonecos.
“O espetáculo conta a história de um camaleão que foi trazido contrabandeado da África. Ele não consegue se camuflar e só fica na cor verde. Quando chega ao Brasil, na floresta amazônica, é quase devorado por outro bicho. Para tentar sobreviver, ele se camufla dentro de uma bromélia. Daí ele começa uma amizade com uma lagartinha, que acha que ele é uma borboleta. Quando ele escuta essa voz, que pensa ser da lagarta, ele vê que é de uma minhoca”, diz sobre a dramaturgia, assinada por Juão Nyn.
Ao Itaú Cultural (IC), Alícia compartilha um pouco de sua trajetória nos palcos, fala a respeito do processo de entendimento de sua sexualidade e identidade de gênero e sobre a importância da representatividade de corpos trans nos palcos. Como? Ocupando-os.
Alícia, a arte sempre esteve presente na sua trajetória pessoal e profissional? Como se deu o início da sua carreira nos palcos?
Estou no meio artístico há pouco tempo, desde 2017. Antes disso, trabalhava como caixa de loja. Entrei como menor aprendiz e acabei sendo efetivada. Em 2016, meu último ano na empresa, o bichinho da arte me mordeu. Desde criança, sempre tive esse sonho, falava para todo mundo: “quando crescer vou ser artista”.
Mas, ao longo da vida, a gente vai crescendo, vai descobrindo outras coisas – no meu caso, teve o processo de transição, meu processo de me descobrir enquanto mulher trans, descobrir a diferença entre identidade de gênero e sexualidade. E, nesse meio tempo, a gente busca sobreviver, tem toda a preocupação e o medo de contar para os pais, de saber se vai ser aceita ou não. E, com toda essa bagagem de medo, a gente acaba esquecendo de sonhar um pouco.
Em 2016, participei de uma campanha publicitária de uma loja de roupa do Capão Redondo. A marca ia selecionar sete mulheres para contar suas histórias, e as fotos ficariam expostas por um mês na loja. A gente não estava ganhando valor nenhum, mas estava ganhando a sensação de estar ali, de ser inspiração para outras pessoas. Nesse dia, pensei “não estou recebendo por isso, mas estou tão feliz, que não tem dinheiro do mundo que pague essa sensação”.
Comecei a entrar em grupos no Facebook, procurando trabalhos, seguindo conselhos amigas, e encontrei um post de uma menina que estava precisando de atores e atrizes para fazer o trabalho de TCC dela. Daí, com a cara e a coragem, me inscrevi para participar da seleção, não fui aprovada, mas ela gostou muito de mim e me indicou para uma amiga que também estava fazendo um trabalho. Na segunda seleção, conheci a pessoa que falo que é a minha fada-madrinha da vida: o André Lino.
O André já vivia o universo das artes cênicas?
Ele também estava fazendo trabalho de conclusão de curso [na área cênica], dava aula para as meninas do Transcidadania e havia passado um trabalho para suas alunas, para que elas contassem suas histórias e experiências que marcaram suas vidas. Entre suas alunas, havia uma que tinha uma amiga travesti de 18 anos, que teve uma história de vida muito pesada: foi expulsa de casa muito cedo, foi estuprada pelo padrasto, e a mãe, em vez de protegê-la, acabou expulsando-a de casa, ficando com o marido.
O Lino me contou e me convidou [para a interpretação] com certo receio. Embora eu seja uma mulher trans, eu tenho uma vivência totalmente diferente das meninas que se prostituem. Sempre falo que a gente, enquanto ser humano – seja trans, seja cis –, vive em bolhas. Antigamente, a minha vida era casa-trabalho-escola-casa, não tinha contato com outras meninas trans, nem travestis, mesmo na periferia onde morava, em Capão Redondo.
Quando ele me contou a história, no entanto, me senti na obrigação de fazer, para que as pessoas conhecessem isso tudo. Apresentamos esse ato transperformativo – esse era o nome – em 2016. No final da apresentação, havia pessoas, que nunca tinha visto em minha vida, emocionadas, que vieram falar comigo, me abraçaram, me aplaudiram e pensei: “é isso que quero fazer da minha vida, quero contar histórias para as pessoas, quero que as pessoas sejam tocadas por isso”.
Em dezembro de 2016, depois dessa apresentação, a gente foi mantendo contato, e o Lino escreveu um espetáculo chamado Transderella.
Quando uma menina trans vai estar nesse lugar de princesa e vai ser acolhida pelas pessoas?
E você viveu a Transderella nos palcos?
Sim. Digo que esse foi o maior presente da minha vida, decidi viver disso e as coisas foram acontecendo. Como não tinha experiência nenhuma com o teatro, tinha feito apenas oficinas em Aracaju, onde nasci, resolvi estudar teatro.
E, entre o fim de 2017 e o início de 2018, vi um anúncio no Facebook do Coletivo Acuenda. Eles estavam fazendo audição para o Periferida, um espetáculo que contava a história de uma drag queen e de uma travesti da periferia, que tinham trajetórias diferentes que se cruzavam, terminando em uma amizade. De repente, comecei a ensaiar o Periferida, estava estudado teatro, fazendo espetáculos de encerramento de semestre, participando da audição de um filme – Nós somos o amanhã, do Lufe Steffen – e assim foi. Fui também chamada pelo Mário Góes para fazer a leitura dramática de um espetáculo do Cleyton Cabral, chamado Desculpe o atraso, eu não queria vir.
Desde então nunca parei. Só parei de fato, desde 2017, no ano passado por conta da pandemia, ano que não pisei nos palcos.
Qual e como foi a recepção de Transderella pelo público?
A peça era mais voltada ao público infanto-juvenil. Mais adultos do que crianças viram o espetáculo. Para nossa surpresa, o preconceito não veio das crianças, mas, sim, dos adultos, de pessoas idosas.
Na segunda temporada da peça, em 2019, apresentamos em um teatro grande que ficava próximo ao Minhocão, no centro da cidade. Tinha uma senhora que sempre frequentava esse teatro. Quando estávamos apresentando, a gente só ouvia alguém reclamando de fundo: “Isso é um absurdo! Sou uma idosa e não tenho de ficar vendo isso!”.
Foi a única situação que aconteceu com o espetáculo da Transderella. Foi a única situação de preconceito que a gente viu com o espetáculo que fala sobre essa questão da identidade de gênero. Na época, não foi bem um choque, pois a gente já fica preparado para isso. Mas nesse processo a gente foi bem mais acolhido pelas crianças, pelos adolescentes, pelos adultos, do que a gente achou que ia acontecer, de ser mal falado ou atacado pelos pais das crianças.
Percebo pela sua trajetória, pelos primeiros trabalhos, que essa questão de gênero, até por suas vivências pessoais, se mescla com o início da sua vida artística. Você já tinha vontade de trabalhar temas ligados a gênero e sexualidade, levar essas pautas para o teatro, quando começou a atuar?
Não tinha esse pensamento, pois quando entrei foi na época em que a Renata Carvalho e a Leona Jhovs, e outras artistas, estavam lançando o movimento do Monart, que foi todo aquele movimento para falar realmente sobre a questão do transfake, que acontecia muito nos teatros, nas novelas, então, para mim não importava muito.
Eu só queria estar ali, no meio artístico. Até hoje não é um problema para mim estar em espetáculos ligados a questões de sexualidade, identidade de gênero. Cheguei a fazer, em outra leitura de Mário Góes, outro espetáculo em que interpretei uma personagem cis, e foi a primeira personagem cis que fiz. Para mim, foi indiferente, é indiferente fazer uma mulher trans ou uma mulher cis.
Mas fico com esse pensamento de que não tem como não querer abordar esses temas, não tem como não querer participar. Desde criança, sempre senti que nasci para fazer a diferença na vida das pessoas.
E, na Transderella, isso foi muito importante para mim, porque no final de cada sessão – tinha aquele momento de fazer fotos com as pessoas com vestido de princesa, era quando tinha contato com o público – eu via pessoas que me abraçavam. Porque uma coisa é eu saber da minha vivência, do que passei, da minha história, outra é estar ali para aconselhar alguém que está passando por esse momento.
Lembro que teve uma pessoa que veio falar comigo. Ela estava chorando, em prantos, e disse: “eu sou igual a você, só que é muito difícil”. Respirei fundo, pensei no que falar, não queria deixá-la sair desamparada, falei: “olha, é difícil, mas não desista, isso é só o começo, a vida é difícil. Do mesmo jeito que estou sendo importante para você, você pode ser para outra pessoa”.
Isso é o que me move, não tem diferença fazer um personagem trans ou cis. O importante é que eu use a minha voz para que outras pessoas reflitam, mudem o pensamento e entendam que a vivência de uma pessoa trans não deve ser menosprezada, não deve ser ignorada.
As pessoas querem os nossos corpos, mas para consumo, para o prazer, nunca para ser vista como uma companheira. Não dá, não posso ficar calada diante disso. Quero que as pessoas reflitam, quero que as poucas pessoas que me conheçam mudem a sua forma de pensar e nos ajudem a lutar por isso.
Tem uma frase do espetáculo do Cleyton Cabral que a minha personagem falava: “Enquanto eu estiver transviva, lutarei”. E isso é o que me move.
E como se deu o caminho até o nascimento de A lagarta & o camaleão, de 2020, um espetáculo infantil que trata de questões de gênero?
A dramaturgia da peça é o Juão Nyn. Eu sou a proponente do Coletivo Dela, que está encabeçando o projeto. A lagarta & o camaleão foi a oficialização do coletivo. E já de cara fomos contempladas com o edital do programa VAI e foi tudo acontecendo.
Amo estar no palco, mas nunca imaginei sendo proponente de um coletivo. Ao mesmo tempo, é interessante porque a gente pode estar ocupando esses lugres, pode estar com os nossos projetos dando espaço para outros corpos trans.
Com a pandemia, tudo parado, não tínhamos a oportunidade de ir para os palcos. Retomamos a peça neste ano. Antes disso, partimos para os ensaios on-line. Foi um processo gostoso, mas cansativo, porque a gente passava três horas de ensaio, pelo Zoom, criando um espetáculo que a gente nunca teve oportunidade de fazer presencialmente.
A gravação foi o único momento presencial. Todos fizemos a testagem, rezando para que todos os testes dessem negativo, pois a gente não teria outra data para gravar. Gravamos em junho, está agora em fase final de edição e está previsto para estrear neste mês.
O espetáculo conta a história de um camaleão que foi trazido contrabandeado da África. Ele não consegue se camuflar, só fica na cor verde. Quando chega ao Brasil, na floresta amazônica, ele é quase devorado por outro bicho. Para tentar sobreviver, ele se camufla dentro de uma bromélia. Daí ele começa uma amizade com uma lagartinha, que acha que ele é uma borboleta. Quando ele escuta essa voz que pensa ser da lagarta, ele vê que é de uma minhoca.
Uma minhoca que acredita ser uma lagarta, que está esperando o processo de se transformar numa borboleta. Já o camaleão está na esperança de se camuflar em outras cores. São histórias de cada um com suas vivências. Daí nasce essa cumplicidade, esse companheirismo.
Trata justamente dessa questão, desse processo de transformação, desse processo de conhecimento, de ter esse momento para se transformar no que você realmente se entende.
E você já tinha pensado em trabalhar com o público infantil?
Tenho o costume de falar que criança é um papel em branco, ela é moldada de acordo com a criação, ela nasce livre de preconceito e espelha aquilo que vê. Então, sempre tive esse pensamento, quero as crianças ao meu redor, sejam minhas sobrinhas, meus sobrinhos, meu afilhado. Educo todos eles.
Quando a gente entende que a criança não é um bicho-de-sete-cabeças, é mais fácil de explicar uma situação para ela. Quando se trata tudo de forma simples, a complicação está na gente, não está na criança.
O teatro de bonecos e esses recursos mais infantis são a melhor forma de se explicar a sexualidade para as crianças, a identidade de gênero para as crianças. É possível você nascer de um jeito e se transformar em outro, a vida em si é uma transformação. A gente nasce, se transforma, cresce, amadurece e está tudo bem, a vida é assim.
Mas nunca planejei [trabalhar com crianças] nem imaginei em minha vida. Na peça Transderella, por exemplo, a minha sobrinha foi ver.
Em uma live no Instagram, você fala sobre o BBB, sobre uma participante que impactou a sua trajetória. Gostaria que falasse a respeito disso: como esses exemplos, como a televisão, no caso da sua área, o teatro e as artes cênicas podem abrir espaços e mentes, e aqui estou falando do público adulto.
A Ariadna Arantes, que participou do BBB 11, foi minha referência. Quando o programa começou, eu estava no processo de me entender enquanto pessoa, entendendo o meu processo de sexualidade. Quando houve esse boom da Ariadna, entendi que existia diferença entre sexualidade e identidade de gênero.
Fui pesquisar sobre a Ariadna e vi a palavra transexualidade. Digo que o meu psicólogo foi o Google. Cada vez que pesquisava, mais me identificava, lembrava de acontecimentos de quando era criança, e era como me sentia. Quando me entendi como pessoa trans, facilitou muito a minha vivência, entendi que o fato de eu gostar de um homem não tem relação nenhuma com o fato de me identificar ou me entender como mulher. São coisas totalmente diferentes.
É extremamente importante ter corpos trans ocupando esses lugares, levando essas discussões, gerando essas reflexões. A sociedade cria esse pensamento de que a travesti é ladra, é barraqueira, é tudo de negativo, e não é isso. A gente mesmo tem certos preconceitos.
Antes de entrar no teatro, sempre falava que não queria ser essas travestis de bairro que são barraqueiras, briguentas. Depois é que entendi, que tive conhecimento da vivência de muitas meninas, que elas fazem isso como forma de sobrevivência, ser barraqueira é uma forma de exigir respeito da sociedade.
Caso alguém queira se aproximar de outras produções que tenham como tema questões de gênero e sexualidade, de trabalhos como A lagarta & o camaleão, quem você indicaria, quais grupos, o que está sendo feito no universo da arte para quem está querendo aprender?
De referência, tenho vários. A primeira delas é um coletivo que admiro muito: o Coletivo Acuenda. A importância que eles têm e a diferença que fazem no dia a dia do Jardim Romano é incrível. Desde o Cabaret d’Água, que é um trabalho deles de drag, aos espetáculos, o Acuenda é sempre minha referência nas questões de temáticas LGBTQI+. Tem o pessoal do Estopô Balaio, a Gabriela Almeida, a Renata Carvalho, a Leona Jhovs, o Bernardo de Assis, com quem tive a honra de trabalhar no filme Nós somos o amanhã.
Minhas referências são essas. E, claro, Ariadna Arantes, Pepita, Linn da Quebrada. Enfim, diversas artistas que não cansam de levar informação. É só buscar.
Papo de coxia é um espaço virtual dedicado a conversas e expressões de aspectos, experiências e pensamentos sobre as diversas e distintas artes cênicas.