Revista Observatório 31 | Do trabalho terapêutico e da arte-terapia à cidadania e à transformação do lugar social da loucura
29/03/2022 - 10:06
por Paulo Amarante
Resumo
O autor desenvolve um percurso histórico das propostas de utilização do trabalho e da arte no campo da saúde mental, partindo das perspectivas do trabalho terapêutico ou laborterapia e da arte-terapia, concepções dominantes nos momentos iniciais, até o momento atual do processo conhecido como reforma psiquiátrica, no qual as iniciativas baseadas nas atividades de trabalho e de arte têm como objetivo a produção de novas possibilidades de relacionamento social com a diferença e a diversidade, cujo resultado almejado não é reduzido ao ideal terapêutico, mas à produção de cidadania, autonomia, solidariedade e reconhecimento do outro como sujeito. A trajetória adotada pelo artigo é iniciada com o trabalho terapêutico como eixo fundamental do tratamento moral preconizado por Philippe Pinel e repassa as principais experiências de transformação da psiquiatria, tais como a comunidade terapêutica, a psicoterapia institucional, a psiquiatria de setor, a psiquiatria preventiva, a antipsiquiatria e a psiquiatria democrática italiana, e chega aos dias atuais, com destaque para a internacionalmente reconhecida experiência brasileira na qual a dimensão sociocultural alcança um papel inovador.
O francês Philippe Pinel (1745-1826) garantiu que seu nome entrasse para a história como o “pai da psiquiatria”. De fato, o nome Pinel ficou tão relacionado a essa área que se tornou expressão genérica para se referir à loucura (“Fulano ficou ‘pinel’...”) e às instituições psiquiátricas (“... e foi internado no ‘pinel’”). Não seria de estranhar essa imediata relação, uma vez que, em vários países, inúmeras instituições psiquiátricas levam o seu nome.
Pinel foi um grande médico, por sua contribuição pioneira não apenas no campo da psiquiatria, mas também na medicina em geral. É considerado um dos fundadores da clínica médica moderna. Além de médico, filósofo e naturalista, foi deputado nacional constituinte, reconhecido como político progressista, dedicado às causas da liberdade, igualdade e direitos de cidadania.
Se não foi o primeiro livro escrito na psiquiatria, o certo é que o seu Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania (UFRGS, 2007) delimitou os princípios, os conceitos e as bases terapêuticas dessa ciência incipiente denominada de alienismo. E não é por outro motivo que Machado de Assis criou uma pérola da literatura universal, O alienista, que, com perspicácia e espírito crítico, revelou os impasses culturais, políticos e epistemológicos com os quais a nova ciência iria se deparar.
Alienação mental foi o conceito que Pinel adotou para, pela primeira vez, representar o processo de apropriação teórica da medicina sobre uma experiência tão complexa e polissêmica como a loucura. Antes identificada como possessão, demoníaca ou divina, possuidora de inúmeros significados e representações no imaginário social, passaria a ser, a partir de então, acontecimento de natureza exclusivamente médica. É o que pretendia e reivindicava a medicina. Mas o tratado era médico (e) filosófico, no qual Pinel reconhecia não se tratar de um fenômeno exclusivamente corporal, tão somente médico, no sentido restrito do orgânico. Assim, alienação seria um distúrbio das paixões; um distúrbio da razão. Não a ausência absoluta da razão, como oportunamente observou Hegel comentando o texto de Pinel, mas uma alteração na razão que ainda existe! O alienado seria aquele que se deixava dominar por paixões artificiais, distantes da realidade objetiva; seus impulsos subjetivos dominavam sua determinação, e ele seria assediado pela fantasia, pelas ilusões. Ora agressivo e perigoso, ora indiferente e irresponsável, estaria invariavelmente alheio aos que o cercam e aos princípios e regras da ordem e da moral.
Assim, alienação seria um distúrbio das paixões, um distúrbio da razão, não a ausência absoluta da razão
Em que pese a profunda e consistente argumentação de Pinel sobre a alienação, esse termo sugeria determinada perda de autocontrole; uma perda da capacidade de juízo e discernimento, ou impossibilidade de distinguir o falso do real! Ser alienado, no senso comum, é estar fora da realidade, estar em “outro mundo”. Não é ocasional que muitos hospitais psiquiátricos fossem assim denominados [como o Asilo de Lunáticos de Blackwell’s Island, em Nova York, onde esteve internada a jornalista Nellie Bly (1864-1922), que produziu contundente relato de sua experiência nessa instituição]. Fundamentalmente, a noção de alienação passou a significar periculosidade, já que se supõe que uma pessoa com distúrbio da razão seja considerada irracional – despossuída, portanto, do bem maior que caracteriza a raça humana, que a diferencia dos animais irracionais.
Entre as contribuições originais de Pinel estava a consolidação de uma proposta terapêutica denominada de tratamento moral, prática adotada por muitos de seus antecessores ou contemporâneos. Foi o caso do reverendo e médico Francis Willis (1718-1807), que tratou a loucura do Rei George III, da Inglaterra.
O tratamento moral viria a ser bastante desenvolvido por Pinel ao longo de sua obra e consistia, grosso modo, na imposição de um regime moral, de uma relação de autoridade, com regras e regimes “invariáveis de polícia interior” (em suas palavras) a partir de um adequado funcionamento institucional. O asilo de alienados deveria ser uma máquina de cura e uma espécie de instituição pedagógica.
Teixeira Brandão (1854-1921), primeiro alienista diretor do Hospício Nacional de Alienados e da Assistência Médico-Legal a Alienados, discípulo de Pinel, considerava que o diretor do asilo poderia “tirar partido” de todas as circunstâncias existentes como forma de tratamento moral. Entre as possibilidades mais destacadas do tratamento moral estaria o trabalho terapêutico. Waldemar de Almeida, outro discípulo de Pinel, observava ser o trabalho “um meio terapêutico precioso, que, ativando a vida, estimulando a vontade e a energia, consolida a resistência cerebral e tende a fazer desaparecer os vestígios do delírio”.
O trabalho terapêutico passou a ter enorme importância na psiquiatria, especialmente a partir da experiência da aldeia de Geel, na Bélgica. A localidade ficou marcada pela história de Santa Dimpna, uma princesa irlandesa que teria deixado sua terra natal rumo ao interior da Bélgica, fugindo das tentativas de seu pai de casar-se com ela. Quando seu pai, o Rei Damon, descobriu seu paradeiro, ele a perseguiu e a decapitou em plena praça pública. Um alienado que teria assistido à terrível cena de filicídio e à resistência heroica da jovem teria sido imediatamente curado, milagre este que justificou a santificação da princesa pelo Vaticano. A partir dessa história, a aldeia virou ponto de peregrinação em busca da cura milagrosa. Como muitos não eram curados, passavam a viver na aldeia, eram acolhidos por moradores locais e começavam a trabalhar com os aldeãos, fundamentalmente nas atividades agrícolas. Quando os alienistas descobriram que os alienados viviam livres com pás e enxadas, ancinhos e machados nas mãos, sem representar nenhum perigo para a sociedade, entenderam que se tratava do valor terapêutico do trabalho, especialmente o trabalho agrícola, que reuniria condições particulares, em espaço aberto, em contato com a natureza e outras qualidades.
Dessa forma, a experiência viria a ser reorganizada em um modelo que passaria a ser conhecido como “colônias de alienados”. Não é por outra razão que no Brasil existiram, e ainda existem, tantas colônias de alienados, das quais algumas ficaram célebres, como a do Juqueri, que chegou a ter quase 30 mil internos e cujo fundador, o médico psiquiatra Francisco Franco da Rocha, posteriormente passou a dar nome a uma cidade na região metropolitana de São Paulo. Outro exemplo é a colônia de Barbacena[1] (aberta à sociedade a partir da visita de Franco Basaglia), eternizada no curta Em nome da razão, de Helvécio Ratton, no livro Nos porões da loucura, de Hiram Firmino, e no livro (Colônia): uma tragédia silenciosa, que seria fonte de referência de outros livros e filmes.
A ideia do trabalho terapêutico abriu também a perspectiva da importância do trabalho com arte. Entre nós, o psiquiatra Juliano Moreira (1873-1933) preconizou a introdução da arte nos manicômios brasileiros, observando que desde o início do hospício existiam uma rabeca, uma flauta, uma clarineta e uma requinta “como meio de distração ou talvez de cura” (MOREIRA, 1955, p. 73).
A introdução da arte na psiquiatria passou a ter forte significado com Hans Prinzhorn (1886-1933), psiquiatra e crítico de arte alemão, personagem pouco conhecido no Brasil, mas que influenciou fortemente os trabalhos de Osório César e Nise da Silveira. Prinzhorn se tornou um marco porque considerou que a obra de arte dos alienados não era uma arte inferior, primitiva, inacabada ou imperfeita, mas era arte.
Prinzhorn se tornou um marco porque considerou que a obra de arte dos alienados não era uma arte inferior, primitiva, inacabada ou imperfeita, mas era arte.
Osório César (1895-1979) notabilizou-se pela criação da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, pelo reconhecimento da importância da arte dos alienados e pela dimensão que conseguiu dar a essa questão. Casado com Tarsila do Amaral, convivia com artistas e intelectuais importantes, que participaram da Semana de arte moderna de 22 e da elite intelectual paulista.
Nise da Silveira[2] (1905-1999) se tornou conhecida por sua militância política e social e, entre outras ações, notabilizou-se por recusar-se a aplicar eletrochoque em um paciente e por rediscutir todos os princípios organicistas e arcaicos da psiquiatria. Entre suas maiores contribuições está o fato de ter criado o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, em 1952. O museu reúne milhares de obras de ex-internos do antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, sobre as quais são desenvolvidos estudos e pesquisas – portanto, esta se tornou uma iniciativa conhecida e admirada em todo o mundo.
Em que pese a inovação de Prinzhorn, a relação da arte com o campo da psiquiatria permaneceu sendo, prioritariamente, aquela oriunda da forma como o trabalho foi introduzido no campo: como atividade de cunho terapêutico. Dessa forma, o princípio da arte-terapia dominou as iniciativas, mesmo no contexto das experiências de crítica à psiquiatria, como as chamadas reformas psiquiátricas. Alguns exemplos são as comunidades terapêuticas da Inglaterra (que não têm nenhuma relação com as instituições de mesmo nome hoje existentes no Brasil) e a psicoterapia institucional francesa.
A proposta do coletivo terapêutico, que passou a ser conhecida pela denominação psicoterapia institucional, foi elaborada e conduzida fundamentalmente por François Tosquelles (1912-1994), um enfermeiro catalão que posteriormente se formou em medicina. Ao fugir da ditadura de Francisco Franco na Espanha, Tosquelles mudou-se para Saint-Alban, no sul da França, levando consigo seus ideais democráticos e libertários, que seriam aplicados na psiquiatria e se tornariam um dos marcos inovadores desse campo. Entre algumas de suas principais referências estavam a “terapêutica ativa” de Hermann Simon (1867-1947) e a psicanálise. Ele considerava que as instituições, especialmente as asilares, tinham mecanismos interpessoais patológicos e, por isso, deveriam ser tratadas. A introdução de atividades laborais e artísticas seria estratégica nesse sentido, por possibilitar condições de participação e construção coletiva. Dessa forma, surgiu o Clube Terapêutico Paul Balvet, iniciativa pioneira no campo da reforma psiquiátrica, uma instituição totalmente autônoma, gerida pelos internos com base no trabalho e na criação artística.
A ideia de um clube terapêutico dessa natureza representava um enfrentamento ao modelo vertical e totalitário do hospital psiquiátrico. Com o clube, passariam a existir práticas de solidariedade, companheirismo, coparticipação, passeios, ateliês de trabalho e muitas outras formas de troca social. Os ateliês do clube desenvolviam atividades de artesanato, pintura, costura, música e teatro, entre outras. Mas o importante, no entanto, não era o aprendizado de uma profissão, e sim o estímulo à organização do espaço interno, da auto-organização psíquica, a partir do exercício de relações com o mundo externo.
A psicoterapia institucional tinha como prioridade, por assim dizer, o “tratamento” do hospital, pois entendia-se ser impossível tratar um indivíduo no interior de uma estrutura doentia. Dessa forma, passou-se a considerar que todos os integrantes do hospital possuíam uma função terapêutica e, logo, todos deveriam participar de todos os momentos da vida institucional. Essa experiência contribuiu vigorosamente para o processo atual vivenciado no Brasil e em outros países que apostam e investem em uma transformação dos saberes e das práticas em saúde mental, valorizando a voz de todos os sujeitos envolvidos, reconhecendo e potencializando suas possibilidades e seus protagonismos, e consolidando a importância do trabalho e da arte como estratégias de construção coletiva e social.
Essa experiência contribuiu vigorosamente para o processo atual vivenciado no Brasil e em outros países que apostam e investem em uma transformação dos saberes e das práticas em saúde mental, valorizando a voz de todos os sujeitos envolvidos, reconhecendo e potencializando suas possibilidades e seus protagonismos, e consolidando a importância do trabalho e da arte como estratégias de construção coletiva e social.
Além de Tosquelles, cujo nome entrou para a história como um dos grandes pensadores da área da saúde mental, vários personagens ilustres tiveram, de uma forma ou de outra, suas trajetórias marcadas por Saint-Alban, como Frantz Fanon, Salvador Dalí, Jacques Lacan, Jean Oury, Lucien Bonnafè e Felix Gattari.
Contudo, será na Itália que ocorrerá a proposta mais inovadora com arte no campo da saúde mental e que vai se tornar a maior referência não apenas para nós, brasileiros, mas também para muitos países europeus e de outras partes do mundo. Logo após chegar a Trieste, no norte da Itália, o psiquiatra Franco Basaglia deu início a um amplo processo de superação do modelo manicomial psiquiátrico, que – além de uma rede de serviços territoriais, como centros de saúde mental 24 horas, espaços de convivência diurna, espaços variados de acolhimento e sociabilidade, residências assistidas ou mesmo totalmente autônomas, associações de usuários e familiares, e associações de voluntários em geral – consistia de cooperativas de trabalho de “usuários” de serviços de saúde mental. Iniciada em 1973, a “Lavoratori Uniti” (Trabalhadores Unidos) foi a primeira cooperativa de “loucos” da história, que serviria para disparar muitas outras mundo afora. Apesar de ter um estatuto semelhante às demais, com as mesmas regras e objetivos, apresentava um propósito inovador, que era o de promover a inclusão de pessoas em “desvantagem social” e que, portanto, não teriam as mesmas condições para concorrer a uma vaga de trabalho no mercado formal. Posteriormente, tais iniciativas passaram a ser denominadas de “cooperativas sociais”, que gozavam de determinadas prerrogativas para seu objetivo de inclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Em 1987, o Fundo Social da Comunidade Econômica Europeia reconheceu tais cooperativas como “empresas sociais”, tornando-as referências e preconizando-as em todos os países-membros.
A transformação da concepção do trabalho a partir daí sofreu uma reviravolta, ao superar a concepção de “trabalho terapêutico” para se tornar trabalho produtor de vidas, de valores e de trocas sociais. Tal transformação vai repercutir no campo da arte-cultura em saúde mental, inicialmente, pela proposição de cooperativas sociais com produções de vídeos, rádios, companhias de teatro e outras iniciativas artísticas. Posteriormente, o investimento específico nas atividades de arte-cultura como estratégias de diálogo com a sociedade e de provocação de respostas sociais permite a reflexão sobre as práticas de violência e exclusão produzidas pela psiquiatria e suas instituições, inclusive reconhecendo o diagnóstico como categoria de acusação, estigma e preconceito. Projetos de natureza social, política e cultural, baseados na intersetorialidade e na intervenção cultural realizadas na cidade, nos espaços culturais, políticos e sociais comuns a todos, passam a fazer parte da agenda do campo da reforma psiquiátrica.
A transformação da concepção do trabalho a partir daí sofreu uma reviravolta, ao superar a concepção de “trabalho terapêutico” para se tornar trabalho produtor de vidas, de valores e de trocas sociais.
Muitos dos projetos de arte-cultura passaram a se inscrever nessa concepção de economia solidária criativa, na medida em que se configuram como trabalhos culturais que geram recursos para os participantes, produzem reconhecimento, no sentido proposto por Axel Honneth[3], e promovem direitos, cidadania e emancipação.
Forte e explicitamente inspirado na experiência italiana, o processo da reforma psiquiátrica brasileira assumiu os princípios relacionados à defesa dos direitos das pessoas com diagnósticos psiquiátricos, por entender que elas vivenciam experiências de desvantagem social e que, por tal motivo, necessitam de ações afirmativas, de estratégias de discriminação positiva. E não é por coincidência que o movimento de reforma psiquiátrica e luta antimanicomial se aproxima de outros movimentos sociais de defesa dos segmentos vulnerabilizados; movimentos de defesa dos direitos de grupos étnicos, da sexualidade, do gênero, entre outros.
Com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), o conceito de saúde foi ampliado para a concepção de defesa e produção de vida. Não apenas políticas setoriais do campo da saúde, mas muitas outras políticas públicas e sociais passaram a ser consideradas importantes e fundamentais no estado de saúde da coletividade. Uma dessas políticas intersetoriais diz respeito ao campo da cultura e da diversidade cultural, de relevância singular para a área da saúde mental pelo potencial estratégico de inclusão social, de diálogo, reconhecimento e possibilidade de trocas sociais. A arte-cultura é fundamentalmente uma forma de intercâmbio entre pessoas, entre subjetividades e entre culturas diversas.
A arte-cultura é fundamentalmente uma forma de intercâmbio entre pessoas, entre subjetividades e entre culturas diversas.
A dimensão sociocultural da reforma psiquiátrica é fundamental por pretender transformar as relações com a sociedade e, assim, transformar o “lugar social” da loucura, isto é, articular um conjunto de ações que visam transformar a concepção da loucura no imaginário social, transformando as relações entre sociedade e loucura.
Participar de um coral, de uma companhia de teatro ou dança, um festival de música e tantas outras atividades é uma iniciativa que produz alegria e bem-estar, sentimento de participação, de coletivismo, de integração. São atividades que produzem, revelam e transmitem habilidades e aptidões diversas, aumentam a autoestima, a dignidade e a autonomia, mas também contribuem para o conhecimento do outro, com o reconhecimento da alteridade e da diversidade.
Como consequência, surge a necessidade também de podermos refletir e reconstruir todas as concepções de saúde, não mais como ausência de doença nem abstratamente como bem-estar físico, psíquico e social, mas como o direito a exercer a diferença e a diversidade, de trabalhar de forma diferente, de relacionar-se com a natureza, a terra, de bem viver! A diversidade cultural é uma dimensão do diálogo com a diferença: a aceitação do outro não como prática de tolerância, mas de reciprocidade, de solidariedade, de compreensão da diversidade das identidades individuais e coletivas.
Para além de um objetivo terapêutico em si, a arte tem uma potência que transcende seu uso instrumental, que abre perspectivas para a produção de novas subjetividades e sentidos, para novas sociabilidades e significados, para novas formas de pertencimento social.
Outro aspecto importante que aprendemos nesse processo é relacionado à concepção de arte, não apenas como restrita à terapia, mas como arte-cultura estratégica para a vivência estética e cultural do significado da vida. Em outras palavras, como expressão dos sujeitos individuais e coletivos, como conjunto de valores da sociedade. Enfim, as iniciativas de arte-cultura produzidas pelos sujeitos que viveram ou que ainda vivem a experiência do sofrimento, da medicalização, da discriminação, do estigma na transformação da sociedade são o instrumento estratégico de produção de novos significados, novos sentidos, ou de um novo imaginário social sobre a loucura, propiciando novas práticas sociais de solidariedade, autonomia e cidadania. Para além de um objetivo terapêutico em si, a arte tem uma potência que transcende seu uso instrumental, que abre perspectivas para a produção de novas subjetividades e sentidos, para novas sociabilidades e significados, para novas formas de pertencimento social.
Como citar este artigo
AMARANTE, Paulo. Do trabalho terapêutico e da arte-terapia à cidadania e à transformação do lugar social da loucura. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/revista-observatorio/trabalho-terapeutico-arte-terapia-cidadania?p=2. Acesso em: .
Paulo Amarante é pesquisador sênior da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); líder do grupo de pesquisas Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Laps/CNPq). Especialista em psiquiatria, mestre, doutor e pós-doutor em saúde mental, além de professor de universidades nacionais e estrangeiras.
Referências bibliográficas
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BLY, N. Dez dias num hospício. Editora Fósforo: São Paulo, 2021.
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EM NOME da razão. Direção: Helvécio Ratton. Brasil, 1979. Documentário sobre o hospital psiquiátrico em Barbacena.
FIRMINO, H. Nos porões da loucura: reportagem. Rio de Janeiro: Codecri, 1982.
FREITAS, F.; AMARANTE, P. A importância de Hans Prinzhorn para a reforma psiquiátrica no Brasil. Revista Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 117, p. 503-517, abr.-jun. 2018.
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MACHADO DE ASSIS, J. M. O alienista. 8. ed. São Paulo: Ática, 1981.
MOREIRA, J. Notícia histórica sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil. Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, edição especial, Rio de Janeiro, p. 65-101, 1955 (publicado originalmente pela Imprensa em 1905, 34 p.).
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TOLEDO, J. F. (org.). (Colônia): uma tragédia silenciosa. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Fhemig, 2008.
[1] Nota da edição: fundado na cidade mineira em 1903, o Hospital Colônia de Barbacena ficou famoso pelas condições degradantes em que viviam seus internos, muitos dos quais sequer tinham diagnóstico de problemas mentais. Após uma visita à instituição em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia a comparou a um “campo de concentração nazista” e exigiu seu fechamento imediato, o que só aconteceu alguns anos depois.
[2] Para saber mais sobre a vida e a obra da psiquiatra alagoana, visite o site da Ocupação Nise da Silveira. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/nise-da-silveira/. Acesso em: 5 jan. 2022.
[3] No livro Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais, o filósofo Axel Honneth observa que o nexo existente entre a experiência do reconhecimento e a relação consigo mesmo advém da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal, e que, para que as demandas por reconhecimento sejam contempladas, demandas essas que são permanentemente atualizadas, são necessárias novas possibilidades sociais e institucionais (HONNETH, 2009).