Criada por artistas trans, travestis e não binários em 2017, em Florianópolis (SC), a companhia circense Fundo Mundo atua sob o mote de que o corpo trans é dotado de potência, trazendo para os seus espetáculos reflexões sobre esse assunto, muitas vezes tratado como tabu.

Nesta entrevista, Lui Castanho fala sobre os integrantes, os processos artísticos e os desafios do grupo. Artista circense, ator e roteirista, Lui é formado pela Escola de Palhaços do Circo da Dona Bilica/Casa do Palhaço e ministra oficinas de acrobacias aéreas. Atualmente, dedica-se à Cia. Fundo Mundo e ao roteiro de longa-metragem que desenvolve com Dê Kelm, pela Haver Filmes, além de atuar como produtor cultural e fazer parte da equipe do Encuentro Latinoamericano de Circo LGBTIA+.

A trupe já se apresentou em vários espaços culturais e eventos pelo Brasil. Entre os seus trabalhos, destacam-se Sui Generis e O Melhor Trapezista de Todo o Mundo, com Noam Scapin, que será exibido no Festival Arte Como Respiro, no site do Itaú Cultural, no dia 9 de outubro

Cia. Fundo Mundo (imagem: Allan Lira3)

Surgimento da companhia

A ideia de criar a companhia veio da vontade de fazer circo entre pessoas trans. Queríamos desenvolver um trabalho que enxergasse o corpo trans como potência, não como lástima, e que pudesse reverberar de maneira positiva em nossa comunidade. Apesar de a transgeneridade ser um assunto bastante em pauta nas artes naquela época, a maior parte dos trabalhos que ganhavam visibilidade partia de um olhar cisgênero e era pensada para esse público. No meio circense, a transgeneridade nem sequer era abordada, a não ser de maneira jocosa e pejorativa.

Alguns de nós já habitavam esse meio há bastante tempo e uma experiência que tínhamos em comum era o sentimento de que nossos corpos não tinham lugar. No meu caso, por exemplo, comecei a trabalhar com acrobacias aéreas antes da transição, e foi nítida a diferença tanto de aceitação quanto de oportunidade. Não havia mais espaço para um corpo que já não era uma mulher, mas que também não era visto como um homem. A vontade de tensionar essa padronização de corpos, olhares e narrativas no circo foi o que nos impulsionou inicialmente. Queríamos provocar ruído, desafiar a norma. Mais que isso, queríamos fazer um trabalho que fosse interessante para a comunidade trans. A atenção à nossa comunidade está presente em cada detalhe – na concepção, no desenvolvimento, na contratação de equipe técnica e na garantia de acesso gratuito. Não se trata de criar uma linguagem hermética, mas de organizar nossa arte pensando em como ela reverbera em pessoas como nós.

Queríamos que as pessoas trans nos assistissem e se sentissem bem, dessem risada e pudessem sentir que são fortes e potentes, que sua existência não está a serviço da cisgeneridade.

Em outras palavras, podemos dizer que criamos a companhia que tínhamos muita vontade de assistir.

Todas as pessoas que integram atualmente a Cia. Fundo Mundo estavam presentes em sua fundação. Conheci o Ian Pooka, antigo membro do grupo, na Escola de Palhaços do Circo da Dona Bilica, em 2016. Começamos a desenvolver um trabalho juntos que mais tarde fez parte do Sui Generis, o nosso primeiro espetáculo. Em 2018, comecei a dar aulas de acrobacias aéreas e foi assim que conheci o Noam Scapin e o Juno Nedel, que foram meus alunos. A Helen Maria e a Vulcânica Pokaropa eu havia conhecido brevemente, mas já ouvia falar delas fazia tempo, tanto por amizades em comum quanto pelo trabalho artístico que mantinham. Morávamos em Florianópolis (SC), uma cidade relativamente pequena, então, mesmo quem entre nós não se conhecia pessoalmente já tinha notícia das outras pessoas trans que faziam circo por ali.

Os principais desafios

Um dos principais desafios é o financiamento, que está diretamente ligado ao acesso aos espaços – tanto para apresentar quanto para criar e ensaiar. Por bastante tempo, o único lugar que nos cedeu espaço foi a Casa do Palhaço, onde eu dava aula. Nem sempre era possível ensaiar lá, então treinávamos no quintal da casa do Noam, ao ar livre. A maior parte de nossas apresentações foi de maneira independente, “passando o chapéu”, como dizemos no circo. Quem trabalha com circo conhece a realidade da falta de apoio, porém, no nosso caso, enfrentamos essas dificuldades multiplicadas pela transfobia. Já sabíamos que não conseguiríamos qualquer apoio por via de editais públicos em Santa Catarina – mesmo assim, tentamos todos eles –, tampouco é fácil acessar a curadoria de entidades privadas. Ninguém quer correr o risco de desagradar os clientes da família tradicional brasileira. Esse foi um dos motivos que fizeram com que iniciássemos uma campanha de financiamento coletivo contínuo. A ideia é buscar o público que, de fato, acredita que nosso trabalho é importante. A arrecadação ainda está incipiente, mas, com esse financiamento, planejamos reformar nossos figurinos e repor materiais de cena, assim como, futuramente, alugar um espaço para ensaios e apresentações.

Outro desafio que enfrentamos diz respeito à formação técnica de pessoas trans. Somos uma companhia formada exclusivamente por pessoas trans, travestis e não binárias, e temos como princípio manter essa exclusividade em todas as funções técnicas e artísticas: iluminação, sonorização, contrarregragem, produção e montagem. Porém, por mais que existam pessoas trans que realizam essas funções, é muito difícil que tenham certificação, pois a maior parte não teve acesso a um curso formal. Mesmo nós tivemos bastante dificuldade para conseguir o registro no Ministério do Trabalho. Como comprovar experiência na área se não conseguimos ter acesso aos espaços formais para nos apresentar? Como completar uma formação em uma instituição que não respeita nossa identidade? E, mesmo quando conseguimos a papelada toda, como comprovar que o nosso nome e gênero ali são diferentes do que consta no registro civil?

Atividades realizadas pelo grupo

Além de apresentações artísticas, sendo a principal o nosso espetáculo Sui Generis, também realizamos ações formativas e políticas. As rodas de conversa que propomos têm o intuito tanto de visibilizar a arte feita por pessoas trans e questionar as estruturas normativas do circo quanto de aproximar a comunidade desse meio, formando laços entre nós. Neste ano também iniciamos um projeto de ocupação no Tendal da Lapa, na capital paulista, chamado Laboratório de Criação Circense para Pessoas Trans, Travestis e Não Binárias. Trata-se de um espaço para experimentação, criação e desenvolvimento de números circenses. Com ele, buscamos criar um ambiente criativo e potente em que pessoas trans possam desenvolver seu trabalho. A ideia é que cada pessoa saia de lá com um número, um produto, em seu repertório como artista. Não dá para desvincular o fazer artístico da necessidade de renda, ainda mais quando falamos de uma população que enfrenta muitas dificuldades para se inserir no mercado. Ao final do laboratório, faremos um cabaré com todos os números. Encanta-nos a ideia do que pode surgir daí. Consideramos esse fazer coletivo uma forma muito potente de criar narrativas a partir do olhar de pessoas transgêneras. Sui Generis veio de um processo semelhante.

Além dessas atividades, a Cia. Fundo Mundo busca ativamente produzir ações no meio circense. Temos participado de diversos encontros e convenções, sempre pautando a presença e a permanência de corporalidades subalternizadas nesses espaços.

Acreditamos que é uma forma importante de gerar questionamentos e possibilitar que o ambiente seja mais aberto para a comunidade trans.

Alguns dos membros da companhia também fazem parte da organização do Encuentro Latinoamericano de Circo LGBTIA+, num movimento de estender os laços a outros territórios.

Sui Generis, da Cia. Fundo Mundo (imagem: Viviane de Paoli)

A sobrevivência dos artistas

Cada integrante realiza outras atividades concomitantes para se manter financeiramente. Por muitos anos, eu garanti minha renda dando aulas regulares de acrobacias aéreas. No momento, estou escrevendo o roteiro de um longa-metragem por meio de um edital de desenvolvimento. É o que tem me mantido, além de outros bicos como paciente simulado em uma faculdade de medicina, venda de videoperformances e algumas apresentações em cabarés on-line. Os integrantes da companhia realizam diversas atividades, de ilustração e atuação a curadoria e artes plásticas, ou criação de websites, design de peças publicitárias etc.

Enfrentando preconceitos

A situação mais grave aconteceu às vésperas de uma apresentação em Balneário Camboriú (SC). Recebemos ameaças de morte por meio de comentários em uma matéria de divulgação em um jornal local. Não preciso dizer que ficamos com bastante medo. Eu inicio o espetáculo na plateia e identifiquei dois homens cis brancos que permaneceram o tempo inteiro de braços cruzados e com a cara fechada. Assim que fui para a coxia, avisei às outras pessoas do grupo. O nosso medo não era que eles xingassem ou vaiassem, até porque a casa estava cheia e o público estava muito envolvido. Nosso medo era tentativa de homicídio. Na situação, o que fizemos foi compartilhar isso com o público, dizer que havíamos recebido ameaças e que sabíamos que tinha pessoas transfóbicas ali. Tudo isso dentro do contexto, nosso espetáculo dá margem para essas interações. O apoio do público e da Plasticine Produções, produtora que nos levou até lá, foi importante para nos sentirmos seguros, mas não há como dizer que não ficamos afetados, inclusive nas apresentações que se seguiram. A próxima seria em Curitiba (PR), a cidade onde nasci e onde já passei por muitas situações de violência transfóbica e homofóbica. O estresse de ter que pensar nessas coisas antes de entrar em cena prejudica não só o trabalho, mas nossa saúde mental.

Apesar de situações como essa, a maior parte dos casos de transfobia não é do público que nos assiste, mas sim das instituições. Já aconteceram tentativas menos sutis de censura do nosso trabalho. Em uma ocasião, a pessoa responsável pela gestão do espaço em que iríamos nos apresentar tentou mudar a classificação indicativa que apontamos, de 14 anos. A gestora em questão queria colocar como 18 anos porque, segundo ela, “o tema era muito forte”. Foi preciso argumentar que transgeneridade não é um fator considerado para a estipulação da faixa etária, isso nem sequer é citado na cartilha do Ministério da Justiça. Nitidamente, ela estava preocupada com a opinião da população local e como isso iria afetar sua imagem.

O ato de querer limitar o acesso ao trabalho de pessoas trans faz parte da manutenção da transfobia estrutural.

Situação semelhante aconteceu com a Vulcânica em um projeto individual. Ela havia passado num edital para montar sua exposição em um museu de Florianópolis. Porém, depois de divulgada a seleção, a diretoria da empresa patrocinadora tomou conhecimento da temática e tentou impedir que a exposição acontecesse. Foi preciso muita pressão nas mídias sociais, nas mídias alternativas e pessoalmente para garantir que o trabalho fosse realizado. E, mesmo assim, as performances não puderam acontecer dentro do museu, foram feitas na rua.

Outra vez, aconteceu que nos inscrevemos num festival de circo e não passamos. Só que algumas pessoas haviam questionado publicamente a curadoria, apontando que quase a totalidade de trabalhos selecionados era de homens cis brancos. Havia pouquíssimas mulheres, uma única pessoa negra e nenhuma pessoa trans. Um dos organizadores do evento respondeu dizendo que não havia pessoas trans porque ninguém se inscreveu. Isso chegou ao nosso conhecimento e fomos diretamente questionar a mentira. O discurso da curadoria foi de que davam preferência a artistas com maior tempo de trajetória e mais currículo. Porém, numa realidade em que os homens cis brancos têm infinitamente mais oportunidades que todas as outras pessoas, isso é o mesmo que dizer que a seleção sempre irá favorecê-los, e, por consequência, essa estrutura se mantém. No caso de pessoas trans circenses, que só há pouco tempo têm conseguido alguma visibilidade no meio artístico, exigir que os trabalhos tenham décadas de circulação é literalmente assumir que, nas próximas décadas, seguiremos sem ter qualquer pessoa trans em festivais de circo. Daqui a 20 anos, se essas pessoas tiverem continuado no meio artístico e estiverem vivas, quem sabe tenham alguma chance.

Processos artísticos durante a pandemia

Como boa parte das pessoas que trabalham com artes cênicas, temos tentado estar mais presentes nas redes sociais. Pelo fato de as linguagens serem completamente diferentes, estamos testando algumas coisas e aprendendo bastante. A criação coletiva enquanto grupo está bastante prejudicada por não podermos nos encontrar, com exceção das pessoas que já vivem juntas. Nós temos trabalhado na criação de um número de pirotecnia e na adaptação de nosso número de palhaçaria para uma linguagem audiovisual.

Iniciativas de editais, cabarés e apresentações on-line têm sido importantes para mantermos a atividade e algum tipo de renda.

Porém, nem de longe é suficiente para nos sustentarmos enquanto indivíduos. Quanto à companhia, o financiamento coletivo contínuo tem sido bastante importante, mesmo que o valor ainda seja pequeno. Temos planos de começar uma lojinha on-line de ímãs, camisetas e outros itens, para podermos tanto alimentar o fundo da companhia quanto gerar renda para as pessoas que estão com mais dificuldades para se manter.

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