por William Nunes de Santana
A frase “isso não é teatro” carrega uma carga histórica conservadora, puritana, e como tal se utiliza disso para descaracterizar experimentações de linguagem, resistindo às novas formas do fazer artístico que surgem de tempos em tempos. De volta à tona, ela tem permeado a produção teatral feita em ambiente digital. “Nós vimos o teatro ir para o shopping, para o hospital; o teatro já está na igreja há muito tempo, está nas ruas desde sempre. O teatro está em todos os lugares. E agora ele está na internet”, resume Ivam Cabral, dramaturgo, diretor e ator da Companhia de Teatro Os Satyros.
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Ivam, junto com toda a trupe da companhia paulistana, está em cartaz com A Arte de Encarar o Medo desde 13 de junho no Espaço Satyros Digital, na plataforma Sympla – as apresentações seguem até o próximo domingo, 2 de agosto. A peça encena um futuro distópico, no qual o isolamento social chega à marca dos 5.555 dias e já não sobra quase nada no mundo fora de casa.
São 18 atores contracenando ao vivo e em ambiente digital, cada um no seu canto, aproveitando as tecnologias disponíveis sem perder a criatividade que é particular ao fazer teatral. “Não tem nenhuma cena em que a gente tenha um recurso espetacular, tudo é feito de forma absolutamente artesanal. É uma lanterninha, um isqueiro ou uma vela que acendo. Eu diminuo a luminosidade da tela e já tenho outra relação com o espectador. Vamos explorando as possibilidades existentes”, explica.
Desde o começo da quarentena, diversos espetáculos foram disponibilizados em plataformas on-line; em suma, peças encenadas presencialmente que foram gravadas e, agora, exibidas no ambiente digital. Pouco depois, começaram a surgir outras experimentações, essas feitas ao vivo, em plataformas como o Zoom ou no YouTube, ou mesmo os trabalhos gravados durante o contexto da pandemia – caso de grande parte dos espetáculos exibidos no Festival Arte como Respiro.
Os Satyros, fundada por Ivam e Rodolfo García Vázquez, estava pronta para um ano agitado. São 20 anos de inauguração da casa própria, situada na Praça Roosevelt, centro de São Paulo, e uma série de atividades estava planejada para a celebração. E, então, veio a pandemia. “Nós fomos um dos primeiros teatros a suspender a programação. Eu me lembro que nesses dias [meados de março] ainda se falava em grupos de internet: abrir, não abrir; voltar, não voltar. Enfim, a gente fechou.”
No dia 20 de março, uma semana depois, Ivam colocou o seu solo Todos os Sonhos do Mundo em live no Instagram.
“Naquele momento ninguém falava de teatro na internet. Eu fiquei em cartaz até estrear A Arte de Encarar o Medo. Se no primeiro momento era uma questão de resistência – de continuar trabalhando –, eu tinha uma preocupação grande que era: eu dirijo um centro de formação das artes do palco, em que a questão da profissionalização desses artistas é muito importante.”
A partir daí surgiu a provocação de fazer uma peça em ambiente on-line. “No comecinho de abril, a gente se convenceu, primeiro eu e o Rodolfo. Fomos mexer aqui e ali para ver o que conseguíamos fazer pelo Zoom. Criamos um argumento e chamamos o grupo para conversar”, diz Ivam, para depois contar a horrível experiência da primeira reunião: “Estávamos todos muito deprimidos, solitários. Mas todo mundo se mostrou disponível para o trabalho e a gente foi salvo, na verdade. Depois disso começamos a nos encontrar diariamente. E foi incrível o que aconteceu.”
O solo Peça – concepção, texto e atuação de Marat Descartes e direção de Janaína Leite – estreou no canal do YouTube da produtora Corpo Rastreado em 20 de junho. De quinta a domingo, o espetáculo é exibido ao vivo e depois retirado do ar – as apresentações ocorrem até sexta 31, sempre às 21h. A encenação ao vivo é intercalada com pequenas inserções de vídeos previamente gravados e utilizados como recurso não só de roteiro, mas também de transição. “Eu já sabia durante o processo de escrita que precisávamos de pequenas peças prontas, o que chamamos de vídeos de transição. São momentos em que eu precisava sair da sala e chegar ao quarto, ou colocar outro figurino para o próximo trecho ao vivo”, explica Marat.
A trama traz o ator numa espécie de delírio entre o real e o ficcional, explorando essa linha tênue para o espectador. “O confinamento trouxe uma invasão do íntimo, a gente entra na casa das pessoas por meio das telas. Mas tinha aquele desejo de se manifestar, e foi muito com essa sensação que reescrevi o texto. Tem trechos de críticas social e política, é a forma que encontramos de falar. O contexto da pandemia, apesar de horrível, paradoxalmente jogou a favor de tudo que queríamos expressar.”
Durante o espetáculo, Marat está (quase) sozinho. Gisele Calazans, sua esposa, é assistente de direção e acompanha toda a apresentação de perto, além “das participações especiais das minhas filhas”. Fora isso, todo o trabalho – com exceção das gravações dos pequenos vídeos – foi feito a distância.
WhatsApp é a nova coxia
Começaram então a pipocar as perguntas: é teatro ou audiovisual? É teatro on-line, virtual ou digital? O teatro digital, nomenclatura que tem sido utilizada para trabalhos como os mencionados, é diferente dos chamados webteatro ou teatro on-line.
“Não acho que seja teatro on-line porque as nossas peças são ao vivo. Um teatro na web pode ser gravado, você pode assistir no YouTube. O teatro digital não. Ele é feito através da telepresença”, afirma Ivam Cabral.
“Por mais que você possa relacionar”, ele continua, “não se trata de uma experiência audiovisual. Estamos presentes. A gente não tem uma ilha de edição ou equipamentos mirabolantes. É o velho jogo do faz de conta”. Sobre as diferenças e as semelhanças com o trabalho presencial, o dramaturgo pontua: “Temos todas as semelhanças: a preparação, a coxia, o friozinho no estômago e tem, sim, o prazer de poder continuar falando as coisas que a gente quer falar. A diferença – e daí, sim, eu acho que pega forte – é não ter o companheiro ao lado, não ter o respiro ao lado”.
O improviso segue como parte do ofício. “Já aconteceu de cair luz, cair internet, tudo que você imagina, e o público não perceber. Eu já entrei em cena fazendo coisas para outros atores que não conseguiram porque a conexão estava ruim”, diz Ivam. “O WhatsApp agora é a nossa coxia.”
“Eu não tenho nenhuma dúvida de que é teatro”, afirma Daniele Small, crítica e pesquisadora de teatro. Para ela, as linguagens artísticas contemporâneas ainda sofrem com perguntas que demandam respostas limitadas ao sim ou não. “Temos de ver caso a caso, porque às vezes é sim e não. Na arte contemporânea – e o teatro faz parte disso, ele não está separado do que o mundo faz –, a experiência do público é que vai determinar onde aquilo se encaixa.”
Pela sua experiência, ela relata, “o que foi feito em ambiente digital com os saberes e a cultura teatral, com pessoas que são do teatro” é, sim, mais uma forma de produção e consumo dessa arte.
Perde-se por um lado, ganha-se por outro. A falta da aglomeração tão desejada nas atividades artísticas – afinal, “aglomeração sempre foi sinônimo de sucesso”, observa Ivam –, de fato, é sentida. “Você chegar para fazer uma peça e uma hora e meia, duas horas antes do espetáculo já ter fila, que começa a sair do teatro e ir para a Praça Roosevelt afora, isso é sensacional! E essa sensação a gente não tem mais.”
O intercâmbio entre artistas de diferentes lugares e a presença de um público que antes estava apartado são pontos que entram para balancear a situação.
“O grupo Pandêmica Coletivo Temporário de Criação está em cartaz com a peça 12 Pessoas com Raiva, que tem elenco entre Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro. Isso é uma coisa linda”, conta Daniele. Segundo a crítica e pesquisadora, o poder da inclusão digital ainda é uma limitação, mas, aponta, o teatro feito presencialmente também não era totalmente inclusivo. “Estamos lidando com um problema velho. Contudo, essa possibilidade, entre esses artistas que têm acesso à internet e conseguem trabalhar com ela, de criar pontes entre diferentes regiões, é muito bacana. É uma oportunidade que deve ser aproveitada mesmo após a pandemia.”
“A possibilidade de você ter numa sessão o Brasil inteiro assistindo, e isso tem acontecido, nos emociona muito. A gente consegue ter público do Acre, de Cuiabá, de Porto Alegre, de Salvador, de pequeninas cidades do interior, junto com o público que vem de países tão absurdos como Islândia e África do Sul. A gente recebeu espectadores desses lugares. É o lado bom que descobrimos”, completa Ivam.
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As interações com o público são testadas conforme as coisas ocorrem. Durante as primeiras apresentações de Peça, por exemplo, a produção estimulava a participação dos espectadores através do chat, mas com o decorrer do tempo as interações passaram a acontecer apenas antes e depois das exibições. “Nosso saguão pós-peça virou as redes sociais. É uma pena não compartilhar a reação da plateia, mas também é lindo receber algumas mensagens como a que o Elcio Nogueira Seixas [ator, diretor e produtor] me enviou: um vídeo do Renato Borghi, esse baita ator, batendo palma depois de ter visto a peça.”
O teatro é uma arte que diz sim
Segundo Daniele, o teatro é uma arte que diz sim. Assimilar a tecnologia do momento para continuar ativo e se reinventar não é algo que acontece somente no contexto da pandemia, é anterior a ela. “Se pensamos em pelo menos 2 mil anos de história do teatro ocidental, as transformações e as adaptações não foram poucas. O entendimento do que é teatro é diferente em vários lugares do mundo; nesse recorte imenso, nós não chegamos a um denominador comum mesmo quando falamos especificamente do que é feito presencialmente.”
Se esse denominador comum acabou se tornando a presença ao vivo, é preciso considerar as novas experiências incorporadas com a tecnologia. “Estamos lidando com outros regimes de presença desde que a internet entrou na nossa vida, e não só na pandemia. Essas novas experiências estão operando no nosso cotidiano constantemente e isso interfere no teatro. Existem muitas experiências anteriores, em parte ou radicalmente, de você estar assistindo a um espetáculo e o ator sair do palco com uma câmera ou peças feitas com elencos em outros países. Estamos subindo mais um degrau dessa relação com o digital”, aponta a pesquisadora.
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Apesar do fator compulsório que fez crescer o uso da tecnologia digital diante da impossibilidade dos eventos físicos, vale olhar para anos atrás.
“Antes mesmo do digital, podemos pensar no teleteatro, que tem uma importância enorme na história do teatro ocidental. As peças radiofônicas são da cultura do teatro, inclusive na contemporaneidade. Sempre que aparece uma nova tecnologia, o teatro acolhe e se adapta”, ressalta Daniele Small.
Ivam lembra das cenas pré-gravadas, recurso utilizado há anos. “É mais uma similaridade, o teatro já coloca vídeo em cenas desde sempre. Em Vestido de Noiva, do Nelson Rodrigues, de 1943, ele tem rubrica de projeção e de usar microfone. Enfim, é um processo absolutamente natural.”
Como o teatro vai voltar?
A relação palco-plateia como algo sagrado foi levantada como um ponto que pode ser desmitificado. “Como se a presença favorecesse automaticamente um ambiente propício a uma experiência elevada. Seria uma egotrip de artistas de teatro achar que as artes de presença têm alguma espécie de relação superior em relação às artes que não têm essa presença”, diz Daniele.
Pelo contrário, o teatro digital pode seduzir um novo público, especialmente o mais jovem, que não está preocupado em nomear o que está vendo à sua frente. Esse híbrido entre presencial e digital deve ganhar força e continuar a existir mesmo depois da volta à alguma noção de normalidade.
“Tenho a impressão de que vai ser tudo gradual. Nesse caminho pode ter diferentes experimentações com o convívio remoto”, completa a crítica e pesquisadora. O projeto Teatro Já!, proposta da atriz Ana Beatriz Nogueira e do ator André Junqueira, também gestor do Teatro PetraGold, no Rio de Janeiro, encena peças ao vivo no palco e que são transmitidas simultaneamente. “Isso tem a ver com inclusão além da pandemia. O Teatro Oficina fazia a mesma coisa, levando essa possibilidade de ver suas peças para pessoas em outras cidades.”
Na companhia Os Satyros – que não deve voltar fisicamente neste ano, segundo Ivam –, mais do que ter estreado uma peça na plataforma digital, criou-se um espaço nesse ambiente. “Vai existir, eu imagino, para sempre, independentemente da pandemia. A gente descobriu essa interação com o mundo que nos interessa muito”, diz, para depois concluir: “Acreditamos na trupe, na comunidade. Continuamos aqui, firmes e fortes”.