Por Marcella Affonso

“Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.”

Quase como a flor narrada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, que brota em meio às ruas cinzas perturbando a ordem estabelecida com sua sutileza, os traços da artista visual Luna Bastos tomam a fachada do Itaú Cultural e convidam quem passa pela Avenida Paulista a uma pausa na correria desenfreada do dia a dia. A ideia do grafite impresso no banco de concreto e em sua extensão, contudo, não é causar nenhuma perturbação, apenas acolher os passantes e aqueles que utilizam esses espaços como pontos de descanso ou de interação e troca.

“Muita gente tem me parado e falado da tranquilidade que o desenho traz, então acho que o que me motivou acabou se concretizando no processo: quebrar o ritmo doido que a gente vive nesta cidade. E, como eu venho de fora, acho que sinto isso um pouco mais”, conta a artista que é natural da cidade de Teresina, no Piauí, e vive na capital paulista desde o início do ano.

A artista Luna Bastos junto a sua obra "Flores Rompendo o Asfalto" (imagem: Amanda Rigamonti)

Intitulada Flores Rompendo o Asfalto, a obra é inspirada em “A Flor e a Náusea”, texto de Drummond publicado em seu quinto livro de poemas, A Rosa do Povo, de 1945. A proposta surgiu da observação. Apesar de já ter visitado o instituto em outras ocasiões, Luna lembra que voltou para poder criar algo que fizesse sentido para o fluxo de pessoas que apenas passam por ele ou nele ficam.

“Isso acabou influenciando até na escolha das cores. Trouxe um tom um pouco mais claro do que costumo usar porque queria muito passar essa ideia de aconchego”. Para contrapor o peso do ambiente urbano, foram utilizados ainda elementos que remetessem à natureza. “Escolhi um padrão que tem folhagem para grande parte do painel e alguns pontos de energia, que é o amarelo”, explica.

Raízes internas e em outras fontes e linguagens

Luna é o nome artístico pelo qual ficou conhecida Alana Soares de Carvalho Bastos. Hoje com 23 anos, a artista urbana, que também atua como tatuadora, conta que sua relação com o desenho se estreitou há sete anos, quando ainda estava no ensino médio. “Participei de uma oficina de grafite por volta de 2012 e fiquei encantada com a possibilidade de ter um diálogo com a cidade. Desde então vem sendo um processo de autoconhecimento, de ir desenvolvendo um estilo próprio, uma técnica”, observa.

Seus traços não são usados como um fim em si; retratam aquilo que sente, que percebe sobre o outro, que vivencia como mulher negra. E, apesar de utilizar os grafismos como meio de expressão, as artes visuais não são sua principal fonte de referência: formada em psicologia, é principalmente no estudo do comportamento humano que busca inspiração, também encontrada na música e na poesia. “Entrar em contato com o que há de mais profundo nas pessoas me traz uma sensibilidade maior para perceber o meio em que estou, filtrar coisas e transformar isso em algum desenho”.

Flores Rompendo o Asfalto faz parte do Arte Urbana, projeto criado pelo Itaú Cultural em 2017 que já contou com os kene dos Huni Kuĩ, com Erica Mizutani, com Guilherme Kramer e com Jota Cunha. Quinta convidada a dar cara nova à fachada do instituto, Luna vê nas intervenções artísticas em espaços públicos uma forma de democratizar o acesso à arte. Uma vez que, até mesmo em lugares gratuitos como o Itaú Cultural, algumas pessoas podem não se sentir pertencentes a esses espaços ou à vontade para entrar neles. “E por mais que a pessoa não tenha uma formação [em artes visuais], aquilo vai tocar de alguma forma”, conclui.

A obra poderá ser vista até o final de outubro deste ano.

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