por Amanda Rigamonti

Nos dias 10 e 11 de abril o banco de entrada do Itaú Cultural ganhou cara nova: a artista Erica Mizutani encheu o espaço com suas cores e formas. Durante dois dias a artista pintou o banco com a ajuda de seus irmãos, Camila e Arthur Mizutani. O trabalho faz parte de uma ação do instituto que pretende trazer diferentes artistas para ilustrar o espaço.

Erica posa junto à sua obra, finalizada após dois dias de trabalho. Foto: André Seiti
Erica posa junto à sua obra, finalizada após dois dias de trabalho. Foto: André Seiti

 

Desde o design gráfico e a edição de arte até diferentes técnicas de ilustração – no papel, na parede, em objetos etc. –, Erica conta que foi desenvolvendo seu trabalho de maneira muito espontânea, sem ter feito cursos, e comenta o quanto isso foi importante na formação de seu estilo de arte. Em entrevista, a artista fala sobre sua carreira, seus personagens, como a vida pessoal interfere no trabalho e, por fim, como foi pensada a obra que colore a fachada do Itaú Cultural.

Como começou esse seu trabalho de arte urbana? O que a influenciou?
Eu não considero muito o meu trabalho como arte urbana ou grafite, porque há várias vertentes desse tipo de trabalho de arte urbana. O meu se encaixa em algum lugar que eu ainda não sei; está meio entre o design e a arte, arte misturada com ilustração, mas o começo mesmo da minha carreira foi muito ligado à ilustração e à editoração. Trabalhava com diagramação de revistas e livros, e depois trabalhei com uma editora de arte. Nesse tempo comecei a ilustrar para as revistas e os livros que eu fazia, e às vezes o borderô era baixo e não tinha como pagar um ilustrador, aí acabava criando as artes para essas mídias.

Por outro lado, eu também tinha sempre em casa alguma arte pintada numa parede, porque gostava muito de plataformas gigantes, maiores do que uma tela, só que o mercado ainda não conhecia esse tipo de trabalho; não era muito comercial, era mais a arte de rua. Então eu fazia em casa mesmo e, tendo esses dois tipos de trabalho – tanto como ilustradora quanto como editora de arte –, acabei partindo para esse tipo de trabalho com mais facilidade, de murais e telas. Foi quando comecei a pintar e acabei deixando um pouco o trabalho digital, fui largando devagarzinho.

E você tem desejo de passar para outras pessoas essas suas técnicas de trabalho?
Na verdade, eu sempre tive um pouco de receio em oferecer oficinas ou cursos, porque nunca fiz curso nenhum – desde pequena até hoje, o que aprendi foi espontâneo, convivendo com os materiais em casa. Acabei optando por não fazer nenhum tipo de curso. Inclusive, saí da faculdade nos primeiros seis meses. Como eu cheguei a conquistar algumas coisas mesmo não sabendo a parte técnica acadêmica, acho que acabei alcançando um resultado legal, e talvez essa coisa do espontâneo tenha gerado o meu estilo, que é um pouco mais orgânico, uma coisa muito minha.

O curso que penso em dar não é exatamente um curso, mas um bate-papo, e é mais sobre essa parte da espontaneidade mesmo, porque eu acho que você consegue estimular pessoas que não estão com vontade de seguir alguma linha ou algum curso específico, sabe? Mas que queiram vivenciar os materiais e começar a criar dentro de casa.

Como os diferentes lugares em que você morou ou que visitou influenciaram o seu trabalho?
Eu nunca morei no Japão, mas já fui umas três vezes para lá; já mudei de casa também umas 15 vezes, de casa, cidade, bairro... Acredito que essas referências da minha vida influenciam bastante no meu trabalho. Não muito esteticamente falando, mas na parte de não se apegar demais às coisas. Então estou fazendo um estilo de que gosto, mas consigo logo na sequência fazer outra coisa, mesmo tendo de desapegar do estilo que estava usando antes. É diferente de antigamente, quando os artistas queriam muito abraçar um estilo e seguir nele a vida inteira. Acho legal – pensando no momento em que vivemos hoje, da internet, de as coisas serem muito rápidas – o artista ousar mais e experimentar mais.

Então essa coisa do desapego, de sair de um bairro, de uma cidade, mudar de amigos e mudar de escola o tempo inteiro, acho que isso enriqueceu minha atitude na hora de desapegar de um estilo, me apegar a outros, mudar, e a coragem de querer conhecer novos materiais, entende? Acho que influenciou mais na atitude do meu trabalho do que esteticamente falando. Inclusive tenho um amigo que é um street artista superlegal, e ele sempre fala que detesta artista que tem fórmula e que a repete sempre. Eu também, porque, apesar de eu ter uma linha que você olha e sabe que é meu trabalho quando o enxerga no todo, é um trabalho que percorre várias plataformas. Pinto no papel, na tela, na parede e em objetos.

Você tem personagens que se repetem em determinadas situações. Eles têm alguma história?
Eu tenho uma bonequinha chamada Mizulina. Ela aparecia mais algum tempo atrás; agora de vez em quando eu a desenho, mas uso muito para passar alguma mensagem, quando quero passar alguma ideia... Então, por exemplo, usei a Mizulina na época em que houve o desastre de Mariana, e é como se ela representasse uma esperança ou algo de bom por vir. Isso porque ela nasceu com rabiscos que fui fazendo quando meu filho mais velho ficou doente. Descobrimos que ele tinha uma doença incurável, uma doença autoimune, e foi no hospital em que fiquei com ele por uma semana que ela nasceu. O mais interessante é que não é um desenho depressivo ou uma coisa que represente a dor ou um momento ruim, mas é um desenho que representa a passagem do ruim para algo melhor.

Existem também umas minhocas listradas. Na maioria das vezes em que pinto na rua, eu uso as minhocas. Esteticamente falando, elas meio que nasceram das pernas da Mizulina – parece engraçado, mas a Mizulina tem as pernas listradinhas e eu achei legal imaginar que é uma minhoca amiga dela, e poderia ter uma conexão visual bacana –, mas o conceito da minhoca também vem da procura de oxigênio. A maioria das artes nas ruas é feita em grandes cidades, onde tem muito concreto, e a frase principal que segue quando eu faço as minhocas – que chamo de Mizunhocas – é “Não sobrevivo no concreto”, porque é uma espécie de crítica, mas leve, porque não é uma escolha minha criticar com agressividade.

Como ser mãe influencia no seu trabalho? Como seus filhos se relacionam com a sua arte?
Um dos motivos para eu ter escolhido ser autônoma foi porque tenho três filhos, que já são até grandes, mas a trajetória toda foi em busca de estar mais em casa. Por mais que eu viaje e saia bastante por causa do meu trabalho, quem está sempre com eles em casa sou eu, e não uma terceira pessoa. Então, isso influenciou muito na escolha, para eu poder passar mais tempo com eles.

E eles têm orgulho do meu trabalho, sabe? Por exemplo, eu participei do Arte Rua, o maior evento de grafite no Brasil. Foi no Rio de Janeiro e nesse dia fui a primeira mulher e a primeira pessoa a subir numa caixa-d’água enorme que tinha ali no bairro, que era na zona portuária, era toda enferrujada, um trabalho superperigoso, e meu filho do meio ficou muito orgulhoso, mais do que de qualquer outro trabalho que fiz, e repostou no Facebook dele, esse tipo de coisa.

Como é ser mulher e estar nesse meio da arte de rua?
É um meio bem machista. Você percebe que a maioria dos grupos/coletivos, senão os eventos de grafite, é formada 90% por artistas homens, e quando as mulheres são aceitas em algum evento geralmente é um evento que no título tem “mulheres” alguma coisa, como se estivessem dando lugar para a minoria. Eu participo muito de eventos/coletivos quando têm o título voltado para artistas japoneses, orientais ou mulheres, mas acho que devagarzinho a gente vai conquistando espaço, porque é mostrando mesmo que vamos conquistar, então é importante a gente mostrar nosso trabalho.

Sobre o trabalho que você fez no Itaú Cultural, como foi esse processo, desde o convite até o resultado?
Eu já tinha feito alguns trabalhos no Itaú Cultural e acredito que isso também foi um dos motivos para o pessoal ter me chamado, porque já rolou uma empatia, e aí a gente teve essa mesma conexão nesta vez. Eles me chamaram e me deram uma liberdade de criação que não encontramos em qualquer lugar. É muito louco, porque, quando você tem essa coisa do desapego que a gente comentou agora há pouco, quando alguém lhe dá uma liberdade total de criação, você consegue evoluir, e ainda numa plataforma como essa, que é um lugar de passagem, por onde passa muita gente, numa avenida importante, e o espaço também é importante. É gratificante conseguir fazer uma coisa que você quer, e você sente também que evoluiu esteticamente.

O trabalho teve antes um estudo de cores e com formas mais voltadas para a natureza; isso não tem como desapegar porque é uma parte que está dentro de mim, e não é nenhum apego – na verdade, é a personalidade do traço. Acho que num visual completamente de concreto, cinza, uma arte colorida e que tivesse a ver com a natureza daria um impacto legal. As sobreposições, o fato de estar no meio da avenida, acho isso muito legal.

Outra coisa muito legal é que existe uma parte abstrata também, e é o que estou buscando no meu trabalho. O abstrato vira formas diferentes, dependendo da pessoa que enxerga. Passou um senhor que viu um coração em uma folha preta que eu fiz com galhos brancos dentro. Ele falou para mim: “Isso é um coração, não é?”. E me mostrou que tinha acabado de fazer uma cirurgia no coração nesse hospital aí na frente [do instituto], o Santa Catarina, e isso foi muito legal. Tem também essa relação do abstrato, que é uma coisa que estou tentando buscar e que consegui colocar no banco do Itaú Cultural porque me foi dada essa liberdade e me trouxe essa surpresa.

Como você entende a importância de a arte ocupar esses espaços públicos?
Além do que já disse, tenho a sensação de que a poluição visual pode gerar uma organização em alguns pontos de onde você olha e, quando a plataforma do artista é grande, tipo um muro de 10 por 4 metros, ou mesmo esse banco, que tem quase 20 metros, ele agrada aos olhos no meio de tantos pedaços de informação. Não é apenas uma parede enorme cinza. Existiram naquele pedaço grande um estudo e uma organização visual. Acho que agrada porque a pessoa passa e vê aquilo como uma surpresa – porque a arte de rua surpreende, você não escolheu estar lá, você não escolheu ver aquilo como numa galeria, em que você entra e escolhe; então ela surpreende, ela pode passar uma imagem boa, ruim, triste... Mas, enfim, ela foi pensada.

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