por André Felipe de Medeiros

Um tirano que se apresenta de forma grotesca, dotado de brutalidades e corrupções, em um contexto no qual a mensagem é de ordem e progresso, mas a realidade por trás das aparências é da mais chula violência: Pai Ubu, personagem criado pelo francês Alfred Jarry, teve grande impacto desde seu surgimento, em 1896, sendo citado como influência direta nas vanguardas modernistas do século XX, e é ainda hoje uma representação aplicável a circunstâncias de autoritarismo.

Ele foi resgatado para o Brasil contemporâneo pelo coletivo Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, no projeto Ubu tropical, que desenvolveu uma pesquisa sobre o personagem tendo em vista também o movimento tropicalista, como uma forma de melhor contextualização para a realidade brasileira. Os estudos, viabilizados pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, geraram um curta-metragem e a intenção de encenações em 2023. O objetivo do projeto era realizar uma pesquisa para o desenvolvimento de um espetáculo que seria apresentado nas ruas, como explica Tânia Farias, atuante do grupo. Por causa da pandemia, entretanto, foram realizados apenas os estudos. Posteriormente veio o filme – a primeira obra audiovisual em 45 anos do coletivo.

Imagem em preto e branco do curta-metragem Ubu Tropical. A imagem traz um grupo de pessoas juntas olhando para a mesma direção, com expressões de surpresa.
Frame do curta-metragem Ubu tropical (imagem: Frame de vídeo/Ubu tropical)

A artista conta que uma das grandes inspirações para o trabalho do grupo de Porto Alegre (RS) é o pensamento do francês Antonin Artaud, que tinha o trabalho de Alfred Jarry como uma de suas inspirações. “Nossa relação com Artaud nos levou a admirar ainda mais Jarry, que com certeza é um marco da história do teatro”, comenta Tânia, que continua: “Quando fomos pensar no projeto, já estávamos sob esse fantasma do obscurantismo no Brasil. Era notório que esse personagem grotesco, autoritário e violento que é o Pai Ubu tinha absolutamente tudo a ver com o nosso presidente. E fizemos uma proposta que juntava o desejo de muito tempo de nos debruçarmos sobre a obra de Jarry com a compreensão de que todos os textos em que ele aparece como personagem, infelizmente, pareciam atuais para nós, brasileiros”.

Movidos pela intenção de desenvolver “um Ubu com a cara do Brasil, com referências da nossa cultura e geografia, das nossas questões geopolíticas”, os atuantes iniciaram também um longo estudo sobre o Tropicalismo, a antropofagia e a Semana de arte moderna e seus modernistas. Essa pesquisa nasceu, como Tânia conta, do desejo de manter um posicionamento crítico sobre o pensamento tropicalista, mas também de “reconhecer aspectos políticos de luta importantes ali colocados, e a questão do comportamento como algo vital, que também nos interessa”.

“Ói Nóis é um coletivo de teatro que trabalha com a questão da pesquisa de linguagem, da pesquisa formal para a criação de seus espetáculos, mas que se debruça profundamente na pesquisa temática, porque quer fazer um teatro que discuta as questões da atualidade”, explica Tânia. “É um grupo que sempre se posicionou politicamente e sempre fez um teatro com esse nível de engajamento.”

Fotografia colorida de Tânia Farias. Ela aparece da cintura para cima encostada em uma parede cor de rosa. Ela está do lado esquerdo da foto, que é horizontal. Ela tem cabelo castanho cacheado na altura do ombro. Veste uma blusa laranja com desenhos marrons. Ela olha para a direita, séria.
Tânia Farias (imagem: Mariana Rotilli)

Com a pesquisa concluída e o filme já lançado, Ubu tropical encontra-se agora em fase de adaptação para o formato que foi inicialmente planejado: o de um espetáculo para ser apresentado nas ruas, praças e parques de Porto Alegre. “Tem a ver com a convicção do Ói Nóis de que, se a arte é relevante, a arte pública é essencial”, comenta Tânia. “A arte deve ser o mais acessível possível. Não no sentido de ser simplificada – temos que fazer algo que se comunique com o público, e temos essa capacidade –, mas ela tem que estar em um lugar e em um tempo nos quais as pessoas possam ter contato com ela. A arte não pode estar fechada em uma caixa perto da qual boa parte da população não consegue chegar. O espaço público é o melhor lugar para a arte, porque é onde ela é mais viva, em diálogo com diversos públicos, fazendo o exercício democrático de ocupar os espaços de todas as demais pessoas, todas as manifestações. O espaço público é a arena onde devem acontecer todas as discussões pertinentes que possam definir ou construir pensamento e afeto, e que possam vir a transformar os rumos das nossas cidades, estados e país.”

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