por André Bernardo
Mal assumiu a presidência e Café Filho (1899-1970) recebeu a visita de Rubem Braga (1913-1990) no Palácio do Catete. Era setembro de 1954. Os dois, relata o jornalista Marco Antônio de Carvalho (1950-2007) na biografia Rubem Braga – um Cigano Fazendeiro do Ar (2007), se conheciam desde os tempos de “vacas macérrimas”, “quando tomavam média com pão e manteiga na Galeria Cruzeiro e um esperava que o outro pagasse”.
“Rubem, preciso de sua ajuda!”, bradou Café Filho, abrindo os braços, ao avistar o amigo. “Tem graça. Você é que tem que me ajudar, João!”, rebateu o escritor, capixaba de Cachoeiro de Itapemirim (ES), adentrando o gabinete. “A vida está difícil. Estou cheio de dívidas!”, lastimou-se. “O que posso fazer?”, indagou o presidente, bebericando uma xícara de café. “Emprego no exterior, ganhando em dólar”, respondeu o escritor, com sua habitual franqueza. E arrematou: “Não vai faltar quem queira ajudar o presidente da República”. E foi assim que Rubem Braga se tornou o chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1955. Mas, antes de assumir o posto, ainda foi entrevistado por um alto funcionário do ministério que, em tom burocrático, quis saber seu currículo: “Sou amigo do presidente!”, resumiu o Sabiá da Crônica, autor de obras-primas como O Conde e o Passarinho (1936), Ai de Ti, Copacabana (1960) e As Boas Coisas da Vida (1988).
Essa história foi contada pelo próprio Braga à repórter Beatriz Marinho na edição de 24 de outubro de 1987 do jornal O Estado de S. Paulo. A amizade entre Rubem Braga e Café Filho rendeu crônicas memoráveis, como “Momento” (25/8/1954), “Detalhes” (25/09/1954) e “Oswald” (24/11/1954), incluídas na antologia Bilhete a um Candidato (2016), que reúne 108 textos políticos de Rubem Braga, do fim do Estado Novo ao início do governo Collor.
“Rubem Braga escreveu alguns dos discursos do ex-presidente Café Filho”, revela Ana Karla Dubiela, doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de uma trilogia sobre o escritor capixaba: A Traição das Elegantes pelos Pobres Homens Ricos – uma Leitura da Crítica Social em Rubem Braga (2007), Um Coração Postiço – a Formação da Crônica de Rubem Braga (2010) e As Cidades de Rubem Braga e W. Benjamin (2017). “A questão financeira pesa para grande parte dos escritores. Muitos não conseguem viver somente da venda de seus livros. Mas, por outro lado, alguns trabalham como ghostwriters por motivação ideológica.”
Fantasmas não falam
Rubem Braga não foi o único grande nome da literatura brasileira a emprestar seus dotes literários a discursos políticos. Mineiro de São João del-Rei, o jornalista e escritor Otto Lara Resende (1922-1992) também exerceu a arte de escrever em nome dos outros. Em janeiro de 1961, por indicação de José Aparecido de Oliveira (1929-2007), seu secretário de imprensa, Jânio Quadros (1917-1992) convidou o autor de Boca do Inferno (1962), O Braço Direito (1964) e As Pompas do Mundo (1975) para trabalhar no Palácio do Planalto. O diálogo entre Jânio e Otto, revela o jornalista Benício Medeiros na biografia Otto Lara Resende – a Poeira da Glória (1998), ficou famoso na versão de Fernando Sabino (1923-2004). “Soube que você gosta de bater papo”, teria dito Jânio. “Pois, então, venha fazê-lo aqui”. “Fá-lo-ia, presidente, se tivesse competência”, teria respondido Otto, gaiato como sempre. “Mas não passo de um especialista em ideias gerais.” “Eu também”, concluiu o presidente e, dando por encerrada a conversa, nomeou o escritor como coordenador da Assessoria Técnica da Presidência da República. “Tenho um fraco por mulheres bonitas e homens inteligentes”, justificou o presidente.
“Otto recusou o convite”, revela Gabriela Kvacek Betella, doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Os Quatro Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse: Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos na Escrita de Perfis (2007). Algumas décadas depois, porém, Otto dedicou algumas crônicas, como “Outro dia, há trinta anos” (23/8/1991), “Ao cair da tarde” (24/8/1991) e “Jânio” (19/2/1992), e até um perfil na antologia O Príncipe e o Sabiá (2017), Jânio, ao Cair da Tarde: 1961, ao ex-presidente.
“Escrevi, sim, gratuitamente, não um, mas numerosos textos que, ao longo dos anos, me foram solicitados por homens públicos”, admitiu Otto, em um trecho da crônica “O enigma do Collor”, publicada no jornal Folha de S.Paulo de 17/1/1992. “O silêncio é dever do ‘ghost-writer’. Dever, digamos, pelo menos contemporâneo”, arrematou. Há rumores de que outros gigantes da literatura também atuaram como ghosts para políticos com pretensões literárias. Quando Benedito Valadares (1892-1973), ex-governador de Minas, lançou o romance Esperidião (1951), logo se especulou, à boca miúda, que o verdadeiro autor da obra seria seu genro – o escritor mineiro Fernando Sabino (1923-2004), marido de sua filha, Helena. “O livro é muito ruim para ser do Sabino, porém, é bom demais para ser do Benedito”, ironizou Otto.
Confraria de espectros
Diferentemente de Café Filho ou Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek (1902-1976) não teve um, mas quatro ghostwriters, dois deles imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL): Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), Álvaro Lins (1912-1970), Josué Montello (1917-2006) e Autran Dourado (1926-2012). Seu preferido, dizem, foi Schmidt. Ao ler os pronunciamentos do poeta carioca, JK costumava exclamar: “É incrível, Schmidt, era isso mesmo o que eu queria dizer!”. Os dois se conheceram em 1953 quando Juscelino, então governador de Minas, mandou erguer um mausoléu para Alphonsus de Guimaraens (1870-1921) no cemitério de Sant’Anna, em Mariana, e convidou Schmidt para declamar um poema em homenagem ao poeta. “Eram muito amigos e conversavam todos os dias”, relata a jornalista Eliane Georgette Peyrot, presidente da Fundação Yedda & Augusto Frederico Schmidt.
“Houve um tempo em que ambos moraram em Copacabana. O quarto do Schmidt ficava na Paula Freitas e o de JK na Avenida Atlântica, ambos no oitavo andar. Os dois se falavam pelas janelas de seus quartos, na área interna entre os prédios.” É atribuído ao autor de Pássaro Cego (1930), Estrela Solitária (1940) e O Galo Branco (1948) o mais famoso aforismo de JK: “Deus poupou-me do sentimento de medo”, proferido quando, em 1954, o ainda governador de Minas foi pressionado a não se candidatar à presidência da República, e, também, o slogan “50 anos em 5”, que marcou o Plano de Metas. Em 2000, por ocasião do lançamento de Gaiola Aberta – Tempos de JK e Schmidt, o escritor mineiro Autran Dourado (1926-2012), secretário de imprensa de JK de 1955 a 1960, levantou polêmica ao reivindicar para si a autoria de tal frase: “Renunciei à vaidade por muito tempo, mas, como estou custando a morrer, resolvi contar a verdade”, declarou, à época, o autor de A Barca dos Homens (1961), Uma Vida em Segredo (1964) e Ópera dos Mortos (1967).
Em 1984, Autran Dourado se inspirou no período em que trabalhou como assessor de imprensa e ghostwriter de JK –e, por incontáveis vezes, chegou a despachar no banheiro do Palácio do Catete, enquanto o presidente se ensaboava na banheira! – para lançar o romance A Serviço del-Rei. Na obra, Dourado serve de modelo para João da Fonseca Nogueira, jovem aspirante a escritor, e JK a Saturnino de Brito, senador candidato a presidente. “Eu era apenas a mão que escrevia”, declarou o autor, certa vez. O tema do “fantasma literário” é explorado, direta ou indiretamente, em outras obras, como a crônica “Bons dias” (1888), de Machado de Assis (1839-1908), o conto “Numa e a ninfa” (1911), de Lima Barreto (1881-1922), e o romance Budapeste (2003), de Chico Buarque. “É sabido que, se Deus dá o frio conforme a roupa, não faz o mesmo com as ideias. Há pessoas bem enroupadas e pouco ideiadas”, graceja o Bruxo do Cosme Velho na crônica publicada em 17/12/1888. “O ‘ghost writer’ é como a sombra do meio dia”, define o diplomata brasileiro Sérgio Danese. “Você sabe que ela existe, mas não a vê.”
Embaixador do Brasil na Argentina, Danese explica que já escreveu discursos, artigos e até entrevistas para presidentes, ministros e embaixadores. Como todo e qualquer ofício, analisa, tem seu lado bom e ruim. O bom, explica, é que, mesmo sendo uma atividade anônima, o sujeito ganha muito prestígio. Quando o profissional aprende a conciliar alguns atributos, como um bom texto e rapidez na execução – “os discursos, muitas vezes, são solicitados em cima da hora!” –, o ghostwriter passa a ser cada vez mais requisitado. “Quando ganhei certa experiência, passei a exercer o papel de ghostwriter em diferentes lugares, para diferentes chefes, em diferentes circunstâncias”, relata. O lado ruim, pondera, é que, muitas vezes, quem contratou o serviço não faz ideia do trabalho que deu ou do sofrimento que causou. “Os textos, quase sempre, sofrem alterações, que variam na intensidade e importância. No entanto, eu sempre tive um ‘índice de acerto’, ou seja, a proporção daquilo que ficou do texto original na versão final, assustadoramente elevado”, orgulha-se o diplomata que, em 2003, lançou um romance intitulado A Sombra do Meio Dia.
“Instituição mundial”
Se, ainda hoje, pairam dúvidas sobre a autoria de “Deus poupou-me do sentimento de medo”, atribuída a Schmidt e reivindicada por Dourado, o mesmo não acontece com “Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”, a última frase da carta-testamento de Getúlio Vargas (1882-1954). Sua autoria é, segundo o historiador americano John W. F. Dulles (1913-2008), escritor de Vargas of Brazil: a Political Biography (1967), do jornalista carioca José Soares Maciel Filho (1904-1975). Redator de grande parte dos discursos de Getúlio, José Soares não imaginava o que o presidente tinha em mente quando, no dia 14 de agosto de 1954, o chamou para redigir o documento. Quando soube do suicídio, na manhã de 24 de agosto de 1954, desabou no choro. Uma versão original da carta-testamento, redigida pelo próprio presidente, trazia um desfecho, digamos, menos impactante: “A resposta do povo virá mais tarde”.
A carta-testamento de Getúlio faz parte do livro 100 Discursos Históricos Brasileiros (2003), organizado pelo jornalista e escritor Carlos Figueiredo. A antologia inclui pronunciamentos que vão de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) a Luiz Inácio Lula da Silva. Entre um e outro, figuras públicas como José Bonifácio (1763-1838), Rui Barbosa (1849-1923) e Herbert de Souza, o Betinho (1935-1997). Mas, como diria o economista e escritor Roberto Campos (1917-2001), escritor-fantasma do ex-presidente Castelo Branco (1897-1967), em artigo do jornal O Globo de 10/1/1993, “a figura do ‘ghost writer’ é uma instituição mundial”. Um ano antes, Figueiredo já tinha lançado 100 Discursos Históricos. Neste volume, incluiu pronunciamentos do italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), do francês Napoleão Bonaparte (1769-1821) e do alemão Karl Marx (1818-1883). Mas, desses 200 discursos, quantos teriam sido escritos por ghostwriters? “Difícil dizer”, admite Figueiredo. “Creio que a maioria contou com a pena de escritores. Mandatários, via de regra, são avessos à escrita. Carlos Magno é tido como praticamente analfabeto. Por outro lado, quem ousaria escrever para Benjamin Franklin?”
Nos Estados Unidos, a criação do termo ghostwriter é atribuída a Walter “Christy” Walsh (1891-1955). Considerado um dos primeiros agentes de beisebol, redigiu a autobiografia de diversos astros do esporte. Lá, como aqui, há muitos escritores de aluguel a serviço da política. Um dos mais famosos é, sem dúvida, Theodore Chaikin “Ted” Sorensen (1928-2010). É ele, assessor de longa data de John Kennedy (1917-1963), o autor do seu discurso de posse, no dia 20 de janeiro de 1961. Aquele que diz: “Não pergunte à América o que ela pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer pela América”. Quando lançou sua autobiografia, Counselor: a Life at the Edge of History (2008), Ted Sorensen admitiu que “fez um primeiro esboço da maioria dos capítulos” de Profiles in Courage (1955), que rendeu ao então senador o Prêmio Pulitzer, assim como “ajudou a escolher as palavras de muitas de suas sentenças”.
Profissionais da palavra
Há casos de ghosts, porém, que não se limitaram a redigir discursos e pronunciamentos. O diplomata carioca José Guilherme Merquior (1941-1991) foi um desses. Não bastasse escrever boa parte do discurso de posse de Fernando Collor de Mello, intitulado “O Brasil aberto ao mundo”, Merquior elaborou, a pedido do então candidato, seu programa de governo. “Apesar de sua influência sobre Collor, não pode ser atribuída a Merquior as decisões drásticas que prejudicaram ainda mais a economia brasileira”, pondera Anderson Barbosa Paz, mestre em ciência política e relações internacionais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor do artigo “A visão liberal social de José Guilherme Merquior para o Brasil” (2019).
“Se tivesse vivido mais, Merquior, certamente, teria tecido críticas contundentes às decisões políticas de Collor.” Por pouco, Merquior, além de ghostwriter, não se tornou ministro da Cultura do governo Collor. Convidado para o cargo, o então diplomata em Paris recusou. “Por ser diplomata de carreira, Merquior tinha interesse no Ministério das Relações Exteriores. Contudo, revelou a amigos que negou a sondagem, alegando que a nomeação reduziria drasticamente seu salário no momento em que seus filhos estavam em idade escolar”, explica Anderson.
Admirador confesso de Rubem Braga, a quem chama carinhosamente de O Santo Padroeiro dos Cronistas, o jornalista Edmilson Caminha ganhou a vida redigindo discursos para deputados. Ex-consultor legislativo da Câmara, em Brasília, prestou concurso em 1990, tomou posse no ano seguinte e se aposentou em 2013. Em 22 anos, estima ter escrito 2 mil discursos. Para concluir os menores, de cinco laudas, tinha 72 horas. Para os maiores, de 15 laudas, uma semana. O salário hoje, calcula, está na casa dos R$ 25 mil.
“O direito autoral daquele texto não me pertencia e, sim, ao deputado para quem eu o escrevi. Jamais poderia publicar um daqueles discursos como sendo da minha autoria”, explica. Ao longo desses 22 anos, escreveu sobre os mais diferentes assuntos: de queimada na Amazônia à reforma tributária, da doença da “vaca louca” ao rombo no sistema financeiro, da morte de Yitzhak Rabin (1922-1995) ao drama dos sem-terra. Por vezes, defendeu uma posição contrária à sua. “O papel do ghost é escrever para quem não sabe ou não pode. Não vejo glória ou vergonha nisso. Escrevo discursos como poderia redigir verbetes para enciclopédia ou catálogo para museu. Não me considero escritor de encomenda ou intelectual de aluguel. Sou apenas um profissional da palavra”, define.