por Gilberto F. Martins

“A tarde morria meio escura. Quando chegou à esquina, viu que o trânsito era interrompido por um grande enterro. Já ia um pouco longe o coche carregado de grinaldas e mais três carros cheios de flores. Mas o acompanhamento era enorme – um acompanhamento interminável, de automóveis com as capotas arriadas, as lanternas acesas e os motoristas de cabeça descoberta. Poucos automóveis deviam ter ficado na praça. [...] aquela sociedade fazia a sua apoteose na apoteose do morto [...].”

Transcrito de A profissão de Jacques Pedreira – romance cujos capítulos iniciais saíram na Gazeta de notícias no decorrer de 1910 e integralmente em edição descuidada da Casa Garnier em 1912 –, o excerto flagra um acontecimento extraordinário que mobiliza a multidão e congestiona o espaço público da capital fluminense[1]. A cena ficcional parece, assim, antecipar em escala reduzida o que registrariam os jornais e as revistas após o último domingo de junho de 1921, ao noticiar o funeral de seu autor, João do Rio, nascido Paulo Barreto. Vitimado no dia 23 daquele mês por um infarto fulminante dentro de um táxi, pouco antes de completar 40 anos, o celebrado e controverso escritor teve seu corpo embalsamado, exposto à visitação durante três dias e acompanhado por milhares de pessoas até o cemitério São João Batista.

Fotografia preto e branco de João do Rio. Ele é um homem, está vestindo um terno e um chapéu. Está de lado, olhando para diretamente para a foto. A foto é datada de 1921.
João do Rio, 1921 (imagem: Real Gabinete Português de Leitura (RJ))

Em meio à aglomeração, decerto se encontravam na rua cidadãos com as mais diversas ocupações, de diferentes classes sociais, sinceramente comovidos com a perda precoce de seu conviva dos salões, teatros, redações, confeitarias e conferências, assim como curiosos e outros tantos que ali faziam figuração, tão somente para ver e ser vistos. Afinal, o Rio civilizara-se, modernizara sua região central nos primeiros anos do século, demolira cenários insalubres, iluminara sua orla, importara vocabulário e atualizara formas de mise-en-scène e performance social, ostentando novos hábitos de consumo e conduta: tudo prolificamente registrado nas crônicas e reportagens ou ficcionalizado em cores mais ou menos intensas nos contos daquele de quem agora se despediam. Mais do que nunca, ser era (a)parecer.

Porém, havia naquela tarde de 26 de junho muita gente que preferia não ser notada, disfarçando-se mimeticamente no ambiente, a espiar com discrição nas esquinas, das janelas dos prédios ou em veículos preventivamente distanciados, com cortinas apenas entreabertas. Personagens reais que povoaram suas obras e ali compareciam por reconhecer e para homenagear aquele profissional que acolhera demandas de escuta e representação, o qual não se furtara a subir o morro e adentrar na favela, a visitar celas de cadeias e manicômios, a acompanhar ritos de religiões tidas por periféricas (e mesmo ilegais), entrevistando pioneiramente seus líderes e oficiantes[2].

Prostitutas e michês, coristas e recrutas, ciganas e marinheiros, estivadores e secretas, desempregados e ex-escravizados, mendicantes e comissionados do governo, sádicos e viciados em ópio, atravessadores e arrivistas... As entrevistas, os perfis biográficos e as reportagens de João do Rio (e de outros de seus pseudônimos) oscilam entre a crua objetividade e o ponto de vista subjetivo, judicioso, indo da contemplação à denúncia, da identificação empática à repulsa, em escritos sempre marcados pelo desejo de conhecer e de trazer à luz.

Foto preto e branco de uma página de jornal que mostra, em dois quadros, uma imensidão de pessoas no enterro do jornalista João do Rio, no Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1921.
Enterro de João do Rio, no Rio de Janeiro, em 26 de junho de 1921 (imagem: Biblioteca Nacional)

As circunstâncias da sua morte, em movimento e no trânsito, no espaço exíguo de uma máquina de uso particular (entretanto não exclusivo), ganham inevitável dimensão alegórica. Pouco menos de um ano antes do evento que ao menos oficialmente marcou o início do modernismo estético brasileiro – a Semana de arte de 22 –, a trajetória do intelectual mestiço e homossexual, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), encerrava-se em meio a um período de transformações e deslocamentos: nas últimas quatro décadas, o país importara levas de imigrantes, passara da escravidão ao trabalho formal assalariado (embora escasso), do Império à República, da Rua do Ouvidor às escadarias do Theatro Municipal da ascendente metrópole do café.

O amigo do teatro

O narrador do romance protagonizado por Jacques Pedreira apresenta o pai do personagem como um advogado “admirável” que se acostumara “a fingir, a representar. [...] O hábito de mascarar o temperamento, de mudar de cara várias vezes ao dia, apagara-lhe a energia de retomar o seu ‘eu’ [...]. O secreto e acovardado Justino íntimo tornara-se apenas o espectador de vários Justinos mundanos, e só raramente intervinha no drama, como os frequentadores de circo para os palhaços em situações difíceis”. Tal como em Shakespeare, a vida era um palco no qual se representavam papéis.

João do Rio militou pela constituição e pelo fortalecimento do teatro nacional, o que exigiria investimentos na profissionalização de artistas da cena, na produção de textos dramatúrgicos em português e tematicamente aterrados em nossa situação histórica, e a formação de um público bem informado e de uma crítica devidamente instrumentalizada. E atuou fortemente nessas frentes, pois, para ele, o “gosto pelo teatro é um sentimento da civilização. Só o homem civilizado sente a necessidade de ouvir peças, de discuti-las e aplaudi-las ou vaiá-las”.[3]

Assistia aos espetáculos de companhias estrangeiras (marcadamente portuguesas, francesas e italianas), frequentava as estrelas do métier, atacava “a infeliz e falecida crítica dramática” do país, apontava a concorrência desleal com os cinematógrafos e os “apimentados” espetáculos musicais de “gênero alegre”, “sem literatura”, encenados em “barracões ignóbeis” e moldados para o entretenimento da massa. Sob diversos pseudônimos, documentou a vida teatral do Rio de Janeiro a partir da virada de século (e de Lisboa no tempo em que lá esteve[4]), atento ao palco e à plateia, reconhecendo provocativamente São Paulo como a nova “capital artística do país”. Escreveu ao menos sete peças (As quatro fases do casamento, Eva, Que pena ser só ladrão! e A bela Madame Vargas, entre outras), algumas encenadas com sucesso[5]. Paralelamente, traduziu e divulgou as de autores europeus, notadamente Oscar Wilde, a quem considerava, em 1910, “o maior esteta contemporâneo”.

Montagem com diversas fotos de João do Rio. O jornalista e cronista aparece em imagens preto e branco, em diferentes anos entre 1881 e 1921..
João do Rio nasceu em 1881 e faleceu aos 39 anos, em 1921 (imagem: Biblioteca Nacional)

No ano em que se celebram o centenário da morte de João do Rio e os 140 anos do nascimento de Paulo Barreto, vale retornar à sua extensa e consistente produção jornalística, ensaística e ficcional, tão multifacetada, não poucas vezes contraditória, porém quase nunca desprovida de interesse. É ainda com prazer que se degusta sua incursão pelos gêneros de romance e conto[6], neste último caso encontrando-se criações verdadeiramente antológicas, com personagens excêntricos e entrechos ousados, nos quais a representação literária de pulsões geralmente inconfessadas vem reafirmar a ideia de que um efetivo processo de modernização exige não mudanças de fachada, mas a superação de valores caducos e relações pautadas no atraso. Assim seja.

 

Gilberto Figueiredo Martins é graduado em Letras pela FFLCH da USP, onde também concluiu seu mestrado e doutorado em literatura brasileira, ambos com trabalhos sobre Clarice Lispector, de que resultou o livro Estátuas invisíveis – Experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector (Nankin/EDUSP, 2010). Desde 2006, é professor do curso de Letras da UNESP de Assis.


[1] Felizmente, o livro foi reeditado em parceria entre a Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e o Instituto Moreira Salles (IMS), tendo uma segunda edição pela Scipione em 1992.

[2] Ver, especialmente, o livro As religiões no Rio, editado pela José Olympio em 2006. E, ainda, o essencial A alma encantadora das ruas, coletânea de crônicas com edições da Companhia das Letras (1997/2008).

[3] Além dos acervos de hemerotecas digitais, como os da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Brasiliana Mindlin, consultar os dois volumes organizados por Níobe Abreu Peixoto e publicados pela Edusp, em 2009, sob o título João do Rio e o palco.

[4] Recentemente, Silvia Maria Azevedo e Tania Regina De Luca trouxeram a público uma nova edição do livro Portugal d’agora, no qual se encontram ao menos dois textos de João do Rio dedicados ao teatro nesse país.

[5] Preparada por Orna Messer Levin, a edição de Teatro de João do Rio pela Martins Fontes reúne seis peças.

[6] É o caso dos contos “Dentro da noite”, “O bebê de tarlatana rosa”, “O carro da semana santa”, “Dona Joaquina”, “O homem da cabeça de papelão”, “O monstro” e “As palavras da máquina”.

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