por André Felipe de Medeiros

Roberta Filizola conta ter escrito uma crônica em 2016 durante uma viagem de ônibus, quase que em um supetão de criatividade, e precisou usar o telefone celular, na falta de um caderno ou computador, para registrar suas ideias. O que começou com uma ideia quase repentina pôde ganhar forma ao longo dos anos seguintes e resultar em Tempo trem, curta-metragem em animação com previsão de estreia em 2023.

A roteirista e diretora explica que a ideia inicial do projeto veio de uma conversa com familiares na varanda de casa, próximo a uma linha férrea para trens de carga. Ao ouvirem o som dos veículos, sua mãe e sua tia começaram a contar da época em que pegavam o trem no Crato, no sul do Ceará, para estudar em Fortaleza, e de todas as vezes em que faziam o caminho contrário para visitar a família. É uma linha que não existe mais para o transporte de passageiros, um dado que teve grande impacto na geografia local. “É uma história que se repete no Brasil todo”, afirma Roberta, “de cidades criadas à beira de estações que ficam abandonadas quando a estrada é desativada.”

Fã de Milton Nascimento, a artista logo lembrou de duas de suas canções. A primeira foi “Trem azul”, em paralelo com o nome do trem que transportava os passageiros pelo sertão do estado: Sonho Azul, o mesmo em que sua mãe e sua tia viajaram no passado. A outra música é “Ponta de areia”, que “cria todo um imaginário em volta de trens para falar de uma cidade que fica abandonada depois de uma estrada de ferro, que passava por lá, ser desativada”, como ela explica. Na época, Roberta era uma estudante de direito que decidira estudar o curso básico de cinema e animação da Casa Amarela [da Universidade Federal do Ceará (UFC)], e a crônica escrita no celular começou a virar um curta.

Desenho de um menino negro, sentando em um jardim e encostado em uma árvore. Ele está brincando com um carrinho. O desenho faz parte da animação Tempo trem, projeto apoiado pelo Rumos Itaú Cultural.
Tempo trem, curta-metragem em animação com previsão de estreia em 2023 (imagem: divulgação)

Inicialmente, o personagem central – batizado de Bituca, em homenagem a Milton – pegaria o tal Sonho Azul para sair de uma cidadezinha fictícia no interior do Ceará a fim de tentar a vida como artista na capital, enquanto seu local de origem desapareceria à medida que o trem parasse de funcionar. A partir de uma extensa pesquisa, que contou com o apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020, a história teve a oportunidade de ser desenvolvida para comunicar melhor as intenções da autora desde o princípio.

“Quis passar essa mesma energia de Bituca sair de casa para seguir seu sonho em vez de viver a tendência de ficar ali e se tornar agricultor como o pai”, conta Roberta. “Acabei substituindo isso pelo sonho de virar maquinista. Assim, ficamos mais concentrados na simbologia do trem”. A história, contada de maneira não linear, atravessa o tempo e o espaço ao mostrar Bituca criança, brincando com um trenzinho, e jovem, como maquinista, em suas lembranças a partir do momento em que ele, já mais velho, escuta o apito do trem na estação abandonada.

O projeto de pesquisa teve boa parte concentrada em entrevistas, a começar pelos seus familiares, mas também com um maquinista do Sonho Azul que completou 100 anos de vida em 2021 e, para a surpresa de Roberta, ainda morava na mesma rua em que sua mãe viveu na infância, no Crato. “Li muito sobre história oral e dissertações sobre o trem na cidade”, relata, “e sobre a relação entre trem, cinema e modernidade, que é uma ideia fugaz, de criação de ruínas. A maria-fumaça, por exemplo, representou tanto o progresso e, de repente, virou algo do passado. As cidades foram criadas com rapidez e logo ficaram abandonadas.”

Ela ainda conta que, mesmo com um aspecto infantojuvenil, Tempo trem toca também os adultos. “O curta ficou mais no lado da memória afetiva, bem solar e nostálgico”, comenta a roteirista e diretora, “mas tem esse lado também que é traumático até. O trem chega para criar esse espaço moderno ocidental, no meio da floresta e do sertão, através de muita devastação e de condições análogas à escravidão. Os flagelados da seca eram muitas vezes colocados para trabalhar nos trilhos.”

Desenho de um menino negro, correndo e brincando. Ao seu lado há um trem passando. O menino está correndo ao lado do trem.
Bituca, o personagem principal da história (imagem: divulgação)

O período de pesquisa para a animação foi tão proveitoso que Tempo trem deve ganhar dois novos formatos em breve. Um deles é um romance, uma ideia que remete à crônica de 2016, que não foi escrita pensada no audiovisual. O outro é um longa-metragem, que está em processo de captação de recursos e deve, nas palavras de sua criadora, “expandir o universo do curta” ao narrar “uma viagem pelo espaço-tempo com outra personagem indo atrás de Bituca, que desaparece ao pegar o trem para tentar a vida como artista em outra cidade”.

“É legal podermos embarcar nesse projeto mais longo ainda mergulhados na pesquisa para Tempo trem”, diz Roberta. Além do foco nessa nova personagem, ela se recusa a adiantar mais detalhes sobre o próximo filme, mas entrega a música “Chegadas e despedidas”, de Milton Nascimento, como uma pista: “E assim chegar e partir / São só dois lados da mesma viagem / O trem que chega é o mesmo trem da partida / A hora do encontro é também despedida / A plataforma dessa estação / É a vida desse meu lugar”.

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