por Cristiane Batista

“Entre nas minhas águas e sinta a corrente que é contracorrente do seu mundo / E quando sair não deixe minha correnteza sair de você”
(Roberto Freitas)

Para rever sua história e chamar a atenção para o grave quadro ambiental das nossas águas, o artista Roberto Freitas idealizou a instalação audiovisual O grito surdo das vozes silenciadas, projeto que ganhou o apoio do Rumos Itaú Cultural 2019-2020. Utilizando-se de conhecimentos em “hackearia”, luteria, eletrônica, filmografia e programação, ele criou máquinas fílmicas e sonoras em um período de três anos para compor uma instalação cujas imagens e sons são intercalados pelas frases: “A vida é o pensamento da terra” e “Sob o asfalto tem um rio que escuta seus passos”.

As imagens retratam suas andanças sobre o Córrego do Cardoso, em Belo Horizonte, e na Serra do Cipó, a 90 quilômetros dali, com uma câmera GoPro presa ao corpo. Na performance, uma coreografia de movimentos é filmada e repetida em ambos os espaços e depois sobreposta a um quadro que dura 15 minutos, dividido em três capítulos e um prólogo, que sugerem que o espectador se sinta parte do projeto, em ubiquidade com a imensidão que o leva até ali. Segundo o dicionário Michaelis, “Ubiquidade: propriedade ou estado do que é ubíquo, qualidade do que está ou existe em todos ou em praticamente todos os lugares”. Para Freitas, além dele e de todos os seres, o rio também assume essa condição: “Como se todos os rios estivessem em todos os lugares em que há um rio”, explica.

Fotografia mostra detalhes da máquina fílmica utilizada no projeto O grito surdo das vozes silenciadas, de Roberto Freitas.
Instalação audiovisual de Roberto Freitas retrata seu mergulho em dois rios e um amor para falar de meio ambiente e ubiquidade (imagem: divulgação)

Nesse “concerto audiovisual”, as narrativas sonoras são reproduzidas ao vivo por instrumentos automáticos feitos de elementos como cordas de cielo, guitarra e viola, e molas de reverb, que variam seus modos de execução em três rotores que os mantêm em movimento. A música é sincronizada mantendo uma aleatoriedade, o que faz dela orgânica, dentro de uma métrica de composição em sincronia com os acontecimentos do filme.

Olhos d’água

Nascido em Buenos Aires e criado em Florianópolis, Freitas cresceu em costões rochosos, subindo leitos de rio em busca das nascentes. “Acho que foi aí que me conectei com os rios. Lembro da tristeza que senti quando canalizaram o que passava na frente de minha escola da adolescência e me perguntava: por que não despoluir o rio em vez de transformá-lo definitivamente num esgoto?”, lembra.

Fotografia colorida de Roberto Freitas. Ele é um homem branco, com a barba grande. Está em um lugar ao ar livre, rodeado de árvores. Usa óculos escuros e uma blusa de manga longa.
Roberto Freitas (imagem: divulgação)

Anos mais tarde, em 2016 e já adulto, uma fatalidade o ligou novamente ao tema. “Mudei para Belo Horizonte e, em três meses na cidade, tornei-me pai de Marta e perdi minha companheira, Raquel, em um parto complicado. Naquele momento, meu chão ruiu metaforicamente, comecei a olhar para baixo e lá encontrei águas ‘sujas’. Marta teve uma série de comprometimentos no nascimento, é neurodivergente e um verdadeiro divisor de águas na minha vida: estar com ela mudou meu olhar para com o mundo e me fez muito mais sensível e responsável do que antes. Entendo as urgências das causas humanitárias – como a da inclusão – como áreas de gravitação em torno da questão mais importante de todas, que é a ambiental. Sem um meio ambiente saudável, teremos extinção, e com ela não há por que lutar por causas sociais. São lutas que têm que vir juntas, estão atreladas; não haverá justiça social sem a ambiental e vice-versa”, afirma. 

Um banho de rio na Serra do Cipó lhe trouxe a confirmação: “Senti uma conexão muito espiritual e lá cerramos um acordo de amor e cumplicidade. As águas me trouxeram paz e pude conversar com elas. Se eu falar muito sobre a experiência que tive, vou parecer um místico animista, talvez seja de fato o que sou”, confessa.

Fotografia mostra um detalhe da máquina fílmica construída para o projeto O grito surdo das vozes silenciadas.
Máquina fílmica (imagem: divulgação)

A imersão se aprofundou depois de uma residência artística no Espai, ateliê de experimentação, elaboração e desenvolvimento de projetos em artes visuais criado em 2014 pelos artistas Nydia Negromonte e Marcelo Drummond em Belo Horizonte: “Estava procurando um tema de pesquisa para trabalhar, e o Córrego do Cardoso indicou que eu estava procurando por ele. Escutei a mesma voz que tinha ouvido na Serra do Cipó, mas vinha de baixo do asfalto e eu nem sabia que havia um rio ali, foi algo místico mesmo. Bem estranho falar disso, faz parecer que sou meio louco, mas foi o que aconteceu. O córrego tem três nascentes urbanas e atualmente está sob a Avenida Mem de Sá, com um fluxo de milhares de carros por dia. Ele é um ser vivo, capaz de se comunicar. Tanto o Córrego do Cardoso como o Rio Cipó pertencem à mesma bacia hidrográfica, eles são o mesmo rio, o mesmo ser vivo que anda bem doente como um todo. Mesmo que no Rio Cipó as águas sejam mais puras, ele sofre com a interferência humana porque sabe o que o espera. Mas também sabe que nossa espécie vai se extinguir e ele vai se recuperar”, acredita.

Adepto de uma visão filosófica em que toda percepção e pensamento tem lugar a partir de uma perspectiva alterável, Freitas também pode ver na água uma nova fonte de vida, como no trecho da música “Eu e água”, de Caetano Veloso, que diz: “A água me contou muitos segredos / Guardou os meus segredos / Refez os meus desenhos”.

Imagem mostra três fotografias com objetos utilizados para a instalação audiovisual do projeto O grito surdo das vozes silenciadas.
Objetos utilizados para a instalação audiovisual (imagem: divulgação)
Veja também