por André Felipe de Medeiros

A jovem Flor estava emocionada ao final de “I say a little prayer”, do norte-americano Burt Bacharach, que ela cantou sozinha diante de um mar de gente em frente ao palco do festival MITA, em São Paulo. Seu avô Gilberto Gil explicou ao público que se tratava da primeira vez da cantora de 13 anos em um grande festival e, em um misto de afeto, orgulho e toda sua experiência, pediu aplausos para a garota. Seu filho Bem Gil estava ali no palco também, como parte da banda, e Bela, mãe de Flor, integrou o coro nas músicas “Madalena” e “Andar com fé”.

A apresentação em 14 de maio aconteceu cerca de 40 dias antes que Gilberto Gil completasse seu 80º aniversário (neste domingo, 26 de junho), e carregou em si um pouco do legado do artista em mais de 60 anos de carreira. Fundador do Tropicalismo, ex-ministro da Cultura e membro da Academia Brasileira de Letras, o baiano parece carregar em si um bom tanto do que é o Brasil: Gil é do Carnaval e do São João, do “Sítio do pica-pau amarelo” e também do “Rio de Janeiro, fevereiro e março”, e nele cabe todo um universo que ele compartilha com a família – seja ela de sangue e sobrenome ou não.

“Existe um lugar que é nosso, que é familiar e íntimo, e existe esse outro que é do Brasil inteiro – e a gente se inclui nesse lugar”, contou seu neto Fran Gil ao Itaú Cultural (IC), às vésperas dos 80 anos do avô. Membro da banda Gilsons (que ele compartilha com o tio José Gil e o primo João Gil), o músico comenta: “Todo mundo se sente um pouco ‘filho de Gil’ também, e acho isso maravilhoso”, e afirma que o mesmo valor que as pessoas enxergam em seu avô é compartilhado pelos integrantes da família. Criado nos bastidores de shows, convivendo com gente do naipe de Caetano Veloso e Milton Nascimento, Fran explica que precisou assimilar aos poucos não só a influência que essa vivência de cunho familiar tem na sua música, mas a própria relevância do nome Gil em um contexto maior: “Até hoje, às vezes, essa ficha cai”, brinca ele, “é meu avô, né? Isso é muito louco”.

Fotografia de Gilberto Gil durante show no Auditório Ibirapuera. Ele está sentado em uma cadeira no centro do palco, com um violão e com os braços abertos e sorrindo. Atrás dele, é possível ver algumas músicos de orquestra.
Gilberto Gil em show no Auditório Ibirapuera (imagem: Rogério Vieira)

Em Pra gente acordar (2022), Gilsons trabalha canções que dialogam com o pop contemporâneo feito ao redor do mundo, mas com uma musicalidade muito bem enraizada na tradição popular brasileira cunhada e desenvolvida pelo patriarca da família. “É raro fazer uma entrevista sem falar dele”, comenta Fran, “acho esse lugar muito sagrado. Tudo parte do que veio com ele, que levava a gente para Salvador para passar todos os verões lá e ter contato com os blocos afros, desfilar no Filhos de Gandhi, ver o Ilê sair, estar no meio do cortejo afro, ir aos ensaios da Timbalada e do Olodum, respirando ali aquela Bahia, o violão de náilon… O violão é muito característico, era o instrumento que a gente tinha ali perto sempre. Você acordava com ele já tocando e ficava lá o dia inteiro. Minha raiz musical é Gilberto Gil.”

Essa última frase é repetida por todo o país, inclusive por esta nova geração, da qual Gilsons faz parte, que não só tem contato com a obra viva de Gil, como também já foi influenciada por uma leva anterior de artistas que tinham o músico como referência. É dessa linhagem que surge Bala Desejo, banda formada por quatro músicos da nova cena autoral do Rio de Janeiro: Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Zé Ibarra e Lucas Nunes. Ao estrear sua discografia em janeiro deste ano, a música escolhida foi “Baile de máscaras (Recarnaval)”, que ecoa Gil já a partir do título, que remete aos clássicos Refazenda (1975) e Refavela (1977).

“Gil é uma de nossas maiores referências musicais, inicialmente para as composições e seus caminhos harmônicos, melódicos e rítmicos, e também na sua poesia e compreensão do todo”, explica Dora, “o álbum Refavela foi um dos mais importantes para o pensamento dos arranjos e também da produção e do som. Pensamos muito sobre as subdivisões rítmicas fracionadas entre os instrumentos e espalhadas pelo espaço, como é no Refavela”. A cantora e compositora, que cita “Se eu quiser falar com Deus” e “Preciso aprender a ser só” entre suas favoritas do cancioneiro de Gil, define o artista como “um dos maiores tradutores do Brasil como ideia”.

Segundo ela explica, todo o processo do álbum SIM SIM SIM (2022) teve em si “a reciclagem de elementos que já conhecíamos e absorvíamos”, como o repertório e o legado do músico: “Temos Gil como intermediário e tradutor de coisas que não conhecemos, mas também das que conhecemos, através da dança, do corpo, da música, da poesia e da ideia. É claro que a ideia de ‘Recarnaval’ veio em paralelo a esse entendimento do Gil como postura”.

“Gil tem disponibilidade para o erro. Ele exagerou, esticou a corda e se jogou de qualquer altura várias vezes, e isso me deixa muito admirado”, conta o músico Luiz Gabriel Lopes. Seja em sua carreira solo, seja no que construiu no passado ao lado das bandas Graveola e Rosa Neon (banda que revelou Marina Sena ao país), a referência de Gil é evidente tanto nos arranjos, quanto na poesia. “Em meus trabalhos mais recentes, busco simplificar o papo e conseguir trazer a imagem poética para uma dimensão de coloquialidade, de simplicidade”, explica ele, “essa capacidade de dizer muita coisa com pouquíssimos recursos. Tem muito dessa inteligência popular na canção brasileira, principalmente em Gil”.

Luiz conta ter aprendido com o mestre baiano uma abertura “para o fluxo espiritual que é a arte dele, para o entendimento do corpo e da linguagem como veículos de expressão do invisível, da espiritualidade. Eu me identifico muito com essa disponibilidade para o mistério da vida”. Ele se inspira em Gil também ao trabalhar sua elasticidade estética, dos shows em voz e violão ao pop de cunho eletrônico que fez com Rosa Neon. “O Gil do Louvação (1967) é um personagem totalmente diferente do Gil Luminoso (2006), por exemplo”, conta o músico, “ele é um cara que se transformou ao longo do tempo e reconhece o centro dele como algo puro, brilhante e vibrante. Portanto, vale a pena ir a todos os lugares”. “Quando se fala em Gilberto Gil, são muitos”, conclui.

“Há um comprometimento com a obra e com a curiosidade, com a necessidade e a vontade de expandir os limites que ele mesmo criou”, comenta Luiz, “é um compromisso com a própria arte, baseada em uma ética que se constrói a partir da consciência mística, espiritual. Foi essa disponibilidade que o levou a correr atrás das próprias raízes, de sua relação com a africanidade, a negritude e as matrizes religiosas afro-brasileiras”.

Fran Gil diz que enxerga essa herança do avô em “todo artista preto brasileiro que carrega essa força da música afro-baiana, da música nordestina, ou até mesmo do reggae – que ele potencializou muito aqui no Brasil –, assim como [em quem dialoga com] a forma como ele transmutou João Gilberto, Luiz Gonzaga, Jimi Hendrix e Bob Marley”. “Quando vou ao show do Natiruts, do BaianaSystem, da Luedji Luna, do Mestrinho… Enfim, tanta gente, vejo essa referência”, explica o músico, “a continuidade disso se tornou quase um legado”.

Talvez quem melhor possa comentar esse patrimônio seja mesmo um membro do clã que reconhece a influência do músico em sua arte – como Fran Gil já deixou claro. “Existe um lugar familiar e existe um lugar comum que eu habito em relação a Gilberto Gil”, resume e repete ele, “esse lugar está aí para todo mundo. Se você é um artista preto e brasileiro e não tem essa referência, é porque você está imerso em outro universo. É uma figura de representação gigantesca para a nossa cultura, é natural que isso se reflita assim no Brasil e no mundo”.

A redação do IC escolhe suas músicas favoritas do cantor e compositor

Gil no IC

Gilberto Gil foi homenageado no IC há dez anos, em 2012, com a exposição GIL70, uma celebração dos seus 70 anos de vida e 50 anos de carreira. A mostra reuniu trabalhos em diferentes linguagens e suportes (pintura, vídeo, fotografia, escultura, instalação), todos inspirados na obra do músico. Veja entrevistas feitas com artistas que participaram da mostra.

Na ocasião, o designer Renan Magalhães (Estúdio Lumine) criou ilustrações com trechos de letras de músicas do compositor baiano.

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Em 2013, Gil também se apresentou no Auditório Ibirapuera – quando este era gerido pelo IC. Confira um trecho abaixo:

Ancestralidades: Gilberto Gil, 80 anos: trajetória e obra de um ancestral vivo

Saiba mais sobre o artista na Enciclopédia Itaú Cultural

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