A arte visual e urbana cura a cidade em meio ao caos
17/09/2020 - 15:15
por Heloísa Iaconis
Pri Barbosa estava no Chile quando percebeu que, de fato, a realidade pandêmica mostrava-se próxima. Tendo viajado em razão do Dia Internacional de Luta das Mulheres (data em que marchou ao lado de feministas chilenas e pintou uma faixa para acompanhá-las), voltou ao Brasil um tanto assustada: um trabalho remarcado ali, outro aqui, aquela tensão. Katia Suzue, por sua vez, recebeu a notícia em cascata: começou a se inteirar da situação pela TV, sentiu nascer uma angústia e logo veio uma sequência de avisos – projeto adiado, encontros suspensos nas Fábricas de Cultura, aulas do filho canceladas. Já Celso Mazu, conhecido como Prozak, parou de atender compradores e aprendizes em seu estúdio: fechou as portas e se lançou, ainda mais, na internet. Três artistas visuais que, cada um do seu jeito e, ao mesmo tempo, iguais a muitos, acabaram por se reorganizar. Com uma particularidade, porém: a rua, imprescindível para o fazer artístico deles, tornou-se, nessa fase, território do receio, do evitado. Como, então, permanecer criando na cidade no período em que esse lugar vira, simbólica ou ativamente, interdito? E no depois?
Antes de encorpar o debate, contudo, dê dois passos atrás. Ao falar sobre arte urbana, do que se fala propriamente? “Arte urbana, entendo, é toda e qualquer manifestação que pode ser vista no espaço público”, pondera Katia. Nessa definição, portanto, cabem circo, escultura, dança, teatro, grafite, muralismo – sendo este último o denominador partilhado pelo trio de entrevistados. De essência democrática, as expressões que ganham locais abertos e coletivos constroem uma possibilidade outra de fruição: longe do sistema tradicional, a arte ganha o cotidiano, mistura-se ao vaivém de pernas e carros, comunga com o ordinário da vida. Na cidade, desencasteladas, as obras vão de encontro às pessoas, suscitando, no quente dos dias, discussões político-sociais.
Esse movimento de apropriação dos ambientes comuns encanta Pri, Katia e Prozak. O trajeto dele, por exemplo, principiou com a coexistência entre a graduação de artes plásticas e a apropriação de muros. Desde adolescente, Prozak sempre gostou de desenhar, ler histórias em quadrinhos e admirar as capas de álbuns de heavy metal. “Até hoje, chama mais a minha atenção a capa do disco do que o disco em si”, brinca. Em virtude desses interesses, escolheu a faculdade, despojado de pretensões. Na turma, conheceu colegas com os quais passou a grafitar. “Achava o universo das artes plásticas elitista, restrito, não me identificava com isso. Por esse motivo, fui para o grafite e, em paralelo, dava aulas, o que me ocupava bastante”, conta. Após uns anos, avaliou: o ensino tomava grande parte dos seus horários, mas o retorno financeiro não condizia com a demanda, de modo que optou por sair das salas de aula. A partir de 2009, coloca-se como artista integralmente, de forma profissional. Focado na elaboração de pinturas, murais e gravuras, não deixa, entretanto, de promover workshops e contato com o público, algo que retomará assim que possível.
Ao contrário de Prozak, Katia Suzue permanece conciliando o percurso autoral com o papel de professora. Com licenciatura em educação artística, atua como educadora da linguagem de arte urbana no programa Fábrica de Cultura, gerido pelo Catavento Cultural. “Convivo com crianças e jovens da periferia paulistana e a eles busco levar referências e incentivo”, salienta. Há quinze anos, Katia iniciou a sua trajetória grafitando, época em que não eram várias as mulheres nesse campo. “Existe uma estrutura hierárquica nesse ramo: quem tem mais grafite por aí, tem mais respeito. Esse jogo, que se relaciona à transgressão, estimula uma postura competitiva”, explica. Mas, a seu ver, essa disputa é tratada de maneiras distintas por meninos e meninas. Para eles, essa atmosfera de concorrência os motiva a superar aqueles que são os seus ídolos. Por isso, os resultados são fruto de um olhar de fora para dentro. Elas, por seu turno, enveredam pela direção oposta: perscrutam, perscrutam inquietações, o seu interior; desta investigação, surgem os traços e uma atitude mais unida, menos desejosa da validação alheia.
Essa procura por motes em si mesma, conduziu Katia à sua ancestralidade nipônica. As suas produções dialogam com as raízes japonesas, país onde ela, aliás, deparou-se com tintas e pincéis, ainda moça, quando lá morava. Além da herança oriental, inspira-se no feminino e na natureza – influências presentes também nas criações de Pri Barbosa. No caso dela, no entanto, esses temas são expressos através da ótica do feminismo latino-americano. “Importante ressaltar que muito do que estudamos, enquanto mulheres feministas, não se aplica às nossas vivências de mulheres latino-americanas. Em função disso, faço questão de frisar o recorte com o qual lido. O que significa ser latino-americana? Discuto isso com quem acompanha o meu trabalho”, pontua Pri. Esse questionamento aparece, inclusive, em sua obra recente Granada, empena que traz uma mulher cujo corpo não é padrão ou estereotipado. “Costumo dizer que podemos ser revolucionárias sem deixarmos de ser sensíveis”, afirma a muralista.
A semente desse ideal poético já estava em Pri, de algum modo, na infância. Em pequena, decidiu: queria ser artista. “Na minha família, porém, isso é incomum. Os meus parentes não têm formação acadêmica ou uma ligação direta com arte. Apesar disso, eles sempre me apoiaram”, destaca. Todavia, a despeito do suporte familiar, a primeira ida a uma exposição não foi isenta de uma sensação de não pertencimento. Por saber o que é se sentir deslocada, a ilustradora empenha-se em fomentar um discurso e uma prática inclusivos, eixos incorporados tanto em seus desenhos como nos de Prozak e Katia.
E agora, junto com esses desafios, há a necessidade de adaptar as realizações aos impedimentos forçados pela pandemia. Katia resolveu, na segunda semana de quarentena, ir para um local afastado do burburinho de São Paulo. Nesse refúgio, aprendeu a editar vídeos (posto que precisa enviar as aulas para seus estudantes), participa de reuniões por telefone e pinta, pinta, pinta. Projetos na rua, só uns poucos, com todos os cuidados e seguindo regras novas: painéis compostos de madrugada, horário sem circulação de gente, contando com o menor número de diárias. Prozak tem tomado rumo parecido, executando trabalhos rápidos, mas nem por isso menos instigantes. Criou em quatro dias, a convite da Idea!Zarvos, um grafite horizontal de 70 metros, a sua maior obra. De grande extensão também é Granada, pintura de Pri mencionada anteriormente, produzida durante a edição de 2020 do festival NaLata. Os três encontraram jeitos e oportunidades de não pararem, embora imersos no atípico.
Continuar. Continuar é o que eles almejam. Continuar colocando perguntas nos caminhos das pessoas, sonha Pri. Continuar com força nos joelhos, sonha Katia. Continuar animado em fazer uma floresta, espera Prozak. Um perdurar que assimilaram por meio do elo com a arte urbana, conjunto de manifestações que perdura, resiste, cura a cidade – no ontem e, no hoje e amanhã, ainda mais.