por William Nunes de Santana
Se você fosse vasculhar seus antigos HDs, CDs, DVDs, disquetes ou qualquer outro dispositivo desses, o que encontraria? Certamente, entre os achados e perdidos, estariam imagens e arquivos de aniversários e de viagens passadas, lembranças de festas em família e com os amigos, rascunhos de arquivos de texto, músicas baixadas, vídeos de crianças e de animais de estimação e mais um monte de registros que fazem parte do nosso dia a dia digital contemporâneo.
Essa curiosidade e esse impulso arquivista levaram Leo Caobelli a criar o projeto colaborativo 10 desertos de erros, selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020. O resultado é uma plataforma digital desenvolvida a partir da arqueologia de mídias obsoletas, escolhidas dentro de um grupo de 200 HDs resgatados de descartes de lixo eletrônico.
Formado em jornalismo, Caobelli descobriu que poderia contar histórias por meio da fotografia e do uso de imagens. “Por ter nascido no Sul do país e crescido com minha família no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, os álbuns fotográficos eram um vínculo familiar com os parentes que víamos uma vez por ano. Ali, nas fotos analógicas em folhas autoadesivas, eles reviviam ao longo do ano. Ao entrar na pós-graduação em fotografia, percebi que esse elo com a fotografia vernacular dos álbuns de família era meu primeiro vínculo com os arquivos. Passei a estudar os álbuns e as diversas coleções de fotos e de objetos que me acompanharam ao longo de muitas mudanças de cidade”, conta.
Foi no mestrado em artes visuais que houve o salto dessas mídias físicas para as digitais, especialmente as fotografias perdidas em HDs descartados como lixo eletrônico.
“Mais do que organizar a memória, me interessa embaralhá-la. [O filósofo Jacques] Derrida chamaria esse processo de anarquivismo, assim como [o teórico Friedrich] Kittler veria no processo de escavação de HDs uma anarqueologia das mídias. Em ambos os casos, esse prefixo ‘an’ vem para tirar um tanto do rigor dos processos do arquivismo e da arqueologia, e para jogar com a ludicidade que o campo da arte propõe ao ter na criação simbólica seu centro de construção”, explica Caobelli.
A coleta dos HDs ocorreu em galpões de reciclagem de lixo eletrônico nas cidades de Porto Alegre (RS), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Lagos, na Nigéria. A busca se restringiu aos discos rígidos, adquiridos por 4 reais o quilo. Além disso, o artista também reuniu o que encontrava diretamente em caçambas de lixo, nas ruas e em feiras. “A busca é sempre uma incógnita. Seja no meu processo particular, seja na colaboração com outras pessoas, não buscamos – de início – algo fixo, abrimos as possibilidades para então ir encontrando focos de interesse.”
A catalogação dos HDs separou os arquivos por local de compra, número de saída de campo e resultado do teste de leitura. Esta última etapa era quando, finalmente, o artista tinha acesso ao seu conteúdo.
Ressignificação por meio da arte
Após a catalogação, Caobelli foi em busca da colaboração de artistas para reorganizar e ressignificar esses conteúdos. Foram convidados Joana Burd, Egle Saka, Romy Pocz, Paulo Fehlauer, Fernanda Medeiros, Diego Vidart, Thomas Kuijpers, Nicole Kouts, Gabriel Pessoto, Carine Wallauer, Valmor Pedretti Jr., Paula Rebellato e Carlos Ferreira – que abrangem diferentes expressões artísticas, como pintura, design, vídeo, música e artes performativas. “Com cada pessoa convidada, por exemplo, o processo começava com uma conversa sobre as pesquisas, os trabalhos e os interesses individuais. A partir daí, íamos intuindo um caminho a seguir”, diz.
Caobelli dá como exemplo a criação da série Flowers on the land, ao lado do artista holandês Thomas Kuijpers. Segundo ele, Kuijpers falou sobre o sentimento que o acompanhou ao longo da pandemia: “[Era] como se desde 2020 ele se sentisse sendo puxado para dentro de um buraco, e, por isso, vinha fotografando essas crateras que se abrem em cidades, campos e estradas, quando a terra cede e tudo é puxado para dentro. Ele ia me enviando algumas dessas fotos e os rascunhos que fazia do processo de formação desses buracos. Fui procurando por ‘imagens irmãs’ nos HDs. Será que haveriam crateras de HD? Encontrei algumas, especialmente fotos de portais de notícias, que ficavam nos HDs provavelmente como parte do histórico de navegação de seus antigos donos. Até que em um HD tinha uma foto de um buraco”, explica.
Outro exemplo é a série Questões de estilo, com a colaboração de Gabriel Pessoto, para a qual o artista “mergulhou em milhares de fotos vindas de diferentes HDs para encontrar padrões visuais que dessem origem a uma colagem de referências estéticas, a uma colcha de retalhos visual”. O próprio Gabriel diz: “Detive meu olhar nas muitas imagens espalhadas por diferentes HDs, observando manifestações estéticas em objetos decorativos e em roupas. O recorte temporal dessas imagens, que atravessa parte da primeira década dos anos 2000 e se estende, pelo que pude notar, até 2012, já apresenta um distanciamento que possibilita perceber de que forma um repertório estético, de tendências e de gosto moldou a visualidade desse passado recente”.
A ideia do site é ser uma plataforma para a visualização das imagens resgatadas e também para a experimentação: “Esse grande arquivo digital de imagens vindas de HDs nunca pretendeu se organizar como uma biblioteca ou um museu”, afirma Caobelli, que cita a artista e pesquisadora de cultura digital Giselle Beiguelman ao dizer que “funciona como o nó de uma rede, um conjunto de prateleiras giratórias, uma nova máquina de ler”.
O resultado do projeto pode ser acessado gratuitamente, a partir de 30 de setembro, às 19h, neste endereço: desertosdeerros.com.br/10-desertos.
“Acredito que, embora a privacidade tenha se diluído como um valor menor neste novo século, em que tudo é automaticamente compartilhado nas redes, retrabalhar e ressignificar essas imagens de arquivo, ainda garantindo a privacidade de seus criadores, é nosso exercício de ética pessoal – uma ética do sujeito e também desse grupo que cria em colaboração”, conclui o artista.