por André Felipe de Medeiros

“Um grande encontro no tempo” – é assim que Roberto Corrêa define Concerto para vaca e boi, disco que reúne suas composições interpretadas pelo encontro de seis diferentes tipos de viola brasileira com a viola da gamba, instrumento de cordas europeu cujas origens datam do século XV e que teve grande presença na música do Renascimento e do Barroco. No Brasil de 2022, sua sonoridade é combinada com as violas repentista, de buriti, caiçara, machete baiana, de cocho e caipira. “São instrumentos da música popular antiga, que foi estabelecida pela oralidade”, explica o músico e pesquisador. “Combinadas com um instrumento da corte, que é a viola da gamba, essas violam geram um encontro inusitado.”

Viabilizado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, o projeto teve suas primeiras inspirações na trilha sonora que Roberto compôs para o documentário Bravos valentes – vaqueiros do Brasil e traz 12 faixas em seu repertório, duas para cada tipo de viola brasileira, todas na companhia do gambista Gustavo Freccia. Além do álbum, que chega às plataformas digitais em 26 de agosto, o lançamento é acompanhado de um livro digital com partituras e anotações do autor, e também de um recital que estreará no canal do artista no YouTube na mesma data.

Ouça o álbum no Spotify.

Mais do que apenas composições interpretadas pelas duplas de instrumentos, Concerto para vaca e boi foi desenvolvido por meio de experimentações do compositor com esses timbres, incluindo curiosas investigações, como trocas de cordas. Ao ser perguntado se o seu processo criativo era mais similar ao de um “cientista em laboratório” ou de “criança em um playground”, Roberto, sorrindo, afirmou: “As duas coisas estão presentes o tempo inteiro, porque, de certa forma, o cientista no laboratório prepara o que a criança vai brincar. Estou fazendo música de câmara, de concerto, não música regional. Isso me permite realizar experimentações para que eu possa utilizar os instrumentos e para que eles me sirvam, sirvam à minha música. Nesse caso, o ‘cientista no laboratório’ me serviu bem”.

Ao contemplar este que é seu 20o álbum, ele comenta que nunca esteve “tão satisfeito com um lançamento quanto estou com esse”. Conheça, na entrevista a seguir, mais sobre os processos de confecção de Concerto para vaca e boi, desde suas inspirações até detalhes técnicos.

Fotografia colorida que mostra os músicaso Roberto Corrêa e Gustavo Freccia em um local aberto, amplo e vazio. O terreno é arenoso e ao fundo se vê uma montanha. Os dois músicos estão em cima de um tablado, sentados com seus instrumentos.
Roberto Corrêa e Gustavo Freccia (imagem: Dalton Camargos)

Para começar, vamos falar sobre a experiência de trazer a viola da gamba ao encontro das violas brasileiras. Como foi combinar esses timbres?

Eu gosto muito da música barroca, principalmente a viola de gamba, e já experimentei algumas vezes com o instrumento em trilhas sonoras. Desta vez, quis trazer as seis violas brasileiras mais tradicionais e tive algumas surpresas com as combinações, como a viola de buriti, que eu acho que ficou muito bem com a viola da gamba. Enfim, esta soou bem com as seis. Fiquei muito contente, porque é algo que nunca tinha acontecido, me trouxe a alegria de ter acertado. E tive a constatação de que a viola da gamba é um instrumento muito poderoso, com muitos harmônicos. Ela acolheu muito bem essas violas.

É interessante notar como essas experiências em Concerto para vaca e boi acontecem não apenas no âmbito da pesquisa, mas para servir às composições e aos arranjos.

Sim. Eu não toco a viola da gamba, mas uso violão afinado como gamba e fico imaginando como aquilo ficaria, no mesmo pizzicato, com o arco. A digitação não fica complicada para o gambista, porque eu experimentei antes. Composição é isso, é criação. Eu mergulhei nesses instrumentos. Por exemplo, é a primeira vez que eu toco a viola de buriti. É um instrumento de cinco cordas, e eles utilizavam a quinta corda com a mesma espessura e a mesma afinação que a quarta. Aí, eu experimentei: usei corda de tripa de gamba na de buriti, usei corda de raquete de badminton e de squash... Enfim, pesquisei as possibilidades de cordas para tirar o máximo daqueles instrumentos. Também com as composições, eu às vezes pensava que ficaria de um jeito e, ao tocar no instrumento, ficava outra coisa, porque cada um tem a sua linguagem própria, idiomática.

Para mim, é importante que o instrumento ensine o que ele precisa. Tenho muitas referências técnicas de muitos violeiros tocando e uma familiaridade com toques, com movimentos da mão para obter alguns efeitos. Então, fui utilizando todo o meu conhecimento nessas composições. Você inicia a criação, mas ela te domina e te leva por caminhos que você nem imagina.

Achei o título Concerto para vaca e boi curioso – ele me remete a um lugar mais lúdico, até mesmo da infância. Como esse nome dialoga com suas memórias e o conceito de toda a obra?

Ele nasceu da trilha sonora que fiz para um documentário sobre vaqueiros no Brasil, chamado Bravos valentes – vaqueiros do Brasil. Ele mostra a vida de vários boiadeiros com gado em diversas regiões do país. Daí nasceu Concerto para vaca e boi. Em muito da minha vida e da minha infância em Campina Verde (MG), meu pai era fazendeiro e sempre lidou com gado, e eu sempre estava ao lado dele conversando com peão, com vaqueiro, e me interessava pelo lúdico do boi, do gado, não pelo preço da arroba [risos]. Nunca me interessei pelo negócio em si; a minha relação era com as histórias da vida do homem com esses animais. A música daquela época, com as duplas caipiras, falava muito do passado, das saudades do interior. As modas de viola são narrativas, elas sempre contam uma história, como os trovadores medievais. E é sempre a história de um boi, de um peão. Tenho muito conhecimento de histórias de vaca e boi e lembrei delas ao assistir ao documentário.

O recital pelo YouTube vem em uma época em que, por causa da pandemia, as apresentações musicais ganharam muito o meio digital. O que podemos esperar para essa ocasião?

O recital é um vídeo que já foi gravado. Nele, apresentamos as seis violas com a viola da gamba, e posso falar sobre os instrumentos. Estaremos no chat conversando e comemorando também. O “ao vivo” traz tantas questões na internet, como a conexão cair, então decidimos fazer dessa forma e deixar [o chat] disponível para conversarmos enquanto o vídeo roda. E também na troca de instrumentos, cada um dos seis tem uma história e apresenta outro universo musical. Pensamos bastante sobre isso e decidimos que essa seria a forma ideal. Quem assistir ao recital terá uma ideia muito clara do projeto e dessa combinação.

Como foi montar o livro com as partituras e os textos que acompanham Concerto para vaca e boi?

O que eu fiz foi aproveitar a oportunidade do livro para reunir apontamentos e memórias minhas a respeito de cada instrumento, inclusive o processo da composição para viola, e acrescentei uma inovação na escrita, que foi escrever as notas oitavadas dos instrumentos. Conto também como e quando conheci cada uma dessas violas, quem eram os violeiros e artesãos que participaram dessas ocasiões. Pude contextualizar a minha vida e o meu histórico com esses seis instrumentos. Estou com 65 anos, é uma idade em que tenho que escolher bem os meus projetos, porque não sei quanto tempo de vida ainda terei, então eu procuro as coisas mais essenciais. E, quando possível, quero deixar essas referências, como se fossem um agradecimento às pessoas que encontrei ao longo da minha história.

Você afirma que sua música é de câmara, não popular, ainda que utilize essas violas que são, além de instrumentos populares, verdadeiros patrimônios brasileiros. Você pensa que, por causa disso, e por Concerto para vaca e boi ter o recital no YouTube, pode haver uma aproximação maior do público em geral, que não dialoga com o erudito, ao seu trabalho?

Vejo que esse trabalho traz várias leituras e dimensões. Uma delas é essa de que você está falando. Posso levar às pessoas que terão interesse nessa obra algumas questões relativas à identidade – não só a sua de brasileiro, de poder conhecer as diversas culturas da sua região e do seu país, como também, já que estou trazendo tantas coisas antigas, o atavismo, o poder de valorizar os antepassados.

É bem capaz que alguém da sua família no passado fosse um violeiro. E, veja bem, eu não fiz música com rapidez, com virtuosismo, e usei muito silêncio, o que é muito diferente da música que está por aí.

Acho que o compositor, o criador, traz algo que não é o cotidiano, o rotineiro, o que já está estabelecido. E acho que esse trabalho tem muito a dizer, inclusive coisas que eu não sei o que são, mas que estão no trabalho. O importante é que algo está dito.

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