É tempo de celebrar Tônia Carrero (1922-2018), a icônica atriz carioca que completaria 100 anos em 2022. Sua longa carreira nas telas e nos palcos é tema da 56ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural, em cartaz em São Paulo (SP), e de uma mostra de filmes na Itaú Cultural Play, composta de três emblemáticas produções brasileiras dos anos 1950.

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É compreensível que o trabalho de Tônia no cinema seja menos lembrado do que o na televisão, um meio de maior alcance, e no teatro, onde ela se consagrou não apenas como atriz, mas também como dona de sua própria companhia. No entanto, foi na telona que a artista conheceu o estrelato. Nos anos 1940 e 1950, seu nome aparecia nas páginas de revistas especializadas acompanhado por termos como “maior atriz do cinema brasileiro”, “figura de maior relevo” e “estrela de primeira grandeza”.

Tônia estreou no cinema com um pequeno papel em Querida Susana (1947), de Alberto Pieralisi, e poucos anos depois já era uma das principais apostas do extinto estúdio paulistano Vera Cruz. Ela atuou em três importantes filmes da empresa, que integram a mostra da Itaú Cultural Play: Tico-tico no fubá (1952), de Adolfo Celi; Apassionata (1952), de Fernando Barros; e É proibido beijar (1954), de Ugo Lombardi. Naquele momento, companhias como a Vera Cruz buscavam reproduzir o modelo norte-americano de cinema, inspirando-se não apenas na estética e nas fórmulas narrativas de Hollywood, mas também na criação de grandes estrelas como forma de atrair o público. Na lógica do chamado star system, os estúdios atribuíam uma “persona” ao artista, que deveria interpretar papéis dentro de um mesmo tipo de representação.

A "boa garota má"

 Na imagem, uma mulher loira posa na cama, usando uma roupa escura e atendendo o telefone.
Tônia Carrero (imagem: Divulgação)

Tônia enquadrou-se no arquétipo da good-bad girl, ou “boa garota má”, bastante popular no período. “É um momento em que não temos mais a polarização entre a vamp devoradora de homens e a mocinha ingênua virginal, e sim um modelo de mulher que apresenta imagem ousada e sensual, mas esconde personalidade boa”, afirmou a pesquisadora Gabriela Soares Cabral em entrevista à coluna. Em sua dissertação de mestrado, Gabriela analisou os filmes de Tônia na Vera Cruz e a presença da atriz nas revistas O Cruzeiro e Scena Muda entre 1947 e 1955. Uma de suas observações foi a de que, tanto na tela quanto na imprensa, a artista esteve frequentemente associada a códigos de glamour e sedução – joias, maquiagem, penteados, roupas que deixavam o colo à mostra, casacos de pele etc.

Essa caracterização glamourosa e sedutora é especialmente notável em Tico-Tico no fubá, cinebiografia romanceada do compositor Zequinha de Abreu (1880-1935). Tônia interpreta Branca, uma artista de circo que se apaixona pelo protagonista e tenta convencê-lo a partir com ela, deixando para trás a pequena cidade onde mora e também a noiva, Durvalina (Marisa Prado). O contraste entre as duas personagens é gritante: enquanto Branca usa grandes chapéus, joias brilhantes e roupas que mostram seus ombros e pernas, Durvalina é vista em vestidos comportados, quase infantis, e prende o cabelo em tranças e fitas.

Há ocasiões em que as personagens de Tônia lutam para controlar seu destino e fogem à conduta que se considerava própria de uma mulher. Em Apassionata, ela interpreta a pianista Sílvia Nogalis, que se torna suspeita na investigação da morte do marido, um famoso maestro. Ao longo do filme, diversos personagens sugerem – ou mesmo afirmam – que a carreira de Sílvia só avançou por causa do casamento, o que lhe causa revolta: “Estou farta de ser eternamente o satélite de alguém”, proclama. Quando o investigador pergunta se o casal estava separado e quem tinha provocado o rompimento, Sílvia faz questão de dizer que fora ela: “Fui eu que me separei dele”. “Ele me dominava, torturava, escravizava”, afirma a pianista.

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Na comédia romântica É proibido beijar, Tônia interpreta June, jovem de espírito aventureiro que engana um jornalista ao se passar por uma estrela de cinema internacional. O roteiro se desenvolve a partir das mentiras e dos artifícios de June e, por vezes, tira humor do fato de ela não ter interesses e talentos tidos como tipicamente femininos. Em uma cena, ela diz não suportar crianças; em outras, mostra pouca desenvoltura para cozinhar e costurar, levando seu par romântico a declarar: “Nunca vi tamanha incapacidade para dona de casa”.

De acordo com Gabriela, a fuga de um papel idealizado de feminilidade voltado para a domesticidade também é traço marcante das good-bad girls. “Podemos, inclusive, perceber como as personagens de Tônia na Vera Cruz carregam traços das personagens de Marilyn Monroe, que é o nome utilizado para sintetizar a good-bad girl”, disse a pesquisadora. “Se considerarmos que a tipificação interpretada nos filmes muitas vezes era estendida para fora das telas, vemos como Tônia não é representada na imprensa como uma mulher totalmente dedicada ao marido e aos filhos. Até vemos menções a sua família, mas o que predomina é uma mulher que está presente em eventos.”

Ao mesmo tempo, não há dúvida de que os três filmes da Vera Cruz também reforçam estereótipos, principalmente É proibido beijar. Sem dar spoilers sobre a trama, pode-se dizer que June serve de peça em um jogo comandado por homens, no qual sua função é usar a beleza e o sex appeal. “Podemos ver uma ousadia nas personagens de Tônia, mas também não podemos descartar o papel da objetificação”, opina Gabriela. “São filmes muitas vezes pensados e criados por homens, e isso se reflete na representação. Teremos papéis femininos que buscam encantar os espectadores, tanto homens quanto mulheres, não só através da fetichização da figura feminina a ser contemplada ou consumida, mas também por meio de roupas, comportamentos e gestos.”

Curiosamente, o último papel de Tônia Carrero no cinema foi em um filme dirigido por uma mulher: Chega de saudade (2007), de Laís Bodanzky. A Ocupação Tônia Carrero fica em cartaz no Itaú Cultural até 6 de novembro, e os filmes podem ser vistos na Itaú Cultural Play até fevereiro de 2023.

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