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Além da direção: outras mulheres que fazem cinema
29/06/2022 - 08:00
por Luísa Pécora
De que mulheres falamos quando falamos sobre as mulheres do cinema? Essa pergunta se torna cada vez mais relevante conforme o debate sobre igualdade de gênero ganha espaço no mercado, nas instituições, na imprensa, nas universidades e até nas redes sociais. Em primeiro lugar, tal questionamento busca garantir que o recorte de gênero venha acompanhado do recorte de raça – ou seja, que a pretendida inclusão englobe todas as mulheres que trabalham no audiovisual (e não apenas as mulheres brancas). Mas outros desdobramentos partem dessa mesma pergunta: mulheres de quais regiões do país? De que classes sociais? E de quais áreas do cinema?
É comum focarmos nossa atenção em dois grupos de profissionais: as atrizes, que são mais reconhecidas pelo público e cujas personagens convidam à reflexão sobre a representação da mulher na tela, e as diretoras, que ocupam a função tida como a mais importante dentro do set. Quando o foco se expande, geralmente é para abrigar as posições de roteirista e de diretora de fotografia, esta última ganhando destaque também por ser uma das áreas com os piores índices de participação feminina.
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A realização de um filme, é evidente, envolve muitas outras profissionais além da atriz, da diretora, da roteirista e da fotógrafa. Essas “outras" profissionais são tema do livro Trabalhadoras do cinema brasileiro: mulheres muito além da direção (2022), organizado pela professora e pesquisadora Marina Cavalcanti Tedesco e recém-lançado pela Nau Editora. Os 11 artigos que formam a obra analisam a presença feminina do roteiro até a exibição – incluindo também o trabalho das mulheres no ensino de audiovisual, nos festivais e no setor de preservação.
Capítulos dedicados a áreas técnicas (a exemplo da direção de arte, do som e da trilha sonora) mostram profissionais pioneiras e nomes de destaque – fora, em alguns casos, revelarem raros e necessários dados sobre a participação feminina no audiovisual. Os levantamentos anuais da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que começaram em 2014 e já foram descontinuados, englobam só cinco funções: direção, roteiro, direção de fotografia, produção-executiva e direção de arte. A pesquisa mais recente aponta que, considerando todos os longas-metragens que receberam o Certificado de Produto Brasileiro (CPB) em 2018, mulheres representam 26% dos diretores, 24% dos roteiristas, 14% dos diretores de fotografia, 40% dos produtores-executivos e 55% dos diretores de arte (em todos os casos, tais percentuais desconsideram equipes mistas).
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Coisa de mulher
Pelos dados da Ancine, percebe-se que a direção de arte é uma função exercida por muitas mulheres. Aliás, é o único dos índices pesquisados que ultrapassa 50%. Pode-se especular que essa forte presença esteja ligada à percepção de que a direção de arte, assim como os setores de figurino e de cabelo e maquiagem, seja uma função cinematográfica mais alinhada ao que se considera “feminino”. Muitas estudantes relatam, por exemplo, que durante o curso de cinema são incentivadas a seguir carreira nessas áreas, mas não nas consideradas de liderança criativa (como roteiro e direção) ou nas que envolvem tecnologia e equipamentos (como som e direção de fotografia).
Calcada em estereótipos, a associação da direção de arte à “natureza feminina” acaba, às vezes, por diminuir o talento e o esforço das profissionais da área, como aponta o artigo de India Mara Martins e Tainá Xavier publicado em Trabalhadoras do cinema brasileiro. “Se a natureza da esfera envolvida na representação de mundos dotados de espaços cênicos exteriores e interiores [...] é relegada culturalmente ao feminino, assim como a natureza da caracterização de personagens e portanto da aparência [...], é preciso lembrar que a direção de arte opera também mediante códigos próprios às estruturas dramáticas, narrativas e estéticas”, escrevem as autoras. “Os e as profissionais envolvidas nas diferentes tarefas do departamento são técnicos e técnicas especializadas, cuja qualificação não deve ser desvalorizada ou tida como natural da condição feminina”, frisam.
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“Mas você que vai gravar?”
Na outra ponta do espectro está a área de som, tida como profundamente técnica e, portanto, própria do talento masculino. Embora não ofereça dados sobre a participação das mulheres no setor, o artigo de Tide Borges e Marina Mapurunga, ambas técnicas de som, reproduz interessantes depoimentos de 28 profissionais com idade entre 23 e 67 anos. A maioria relata ter passado por episódios de assédio e/ou ouvido comentários machistas no set, mostrando que essas mulheres, além de pouco incentivadas a entrar na área, são constantemente desencorajadas a continuar.
“[Os homens] não acreditavam que [eu] pudesse ser microfonista, insistiam para eu mudar de área, [diziam] que aquilo não era coisa de mulher”, conta uma técnica de som. “Tive inúmeros assistentes homens que tinham muita dificuldade em atender o que eu pedia, que discutiam ou argumentavam ou que simplesmente ignoravam totalmente”, afirma outra profissional.
As entrevistadas também apontaram a frequente necessidade de provarem seu conhecimento e sua capacidade aos outros membros da equipe. “Os homens no set estão acostumados a lidar com mulheres na arte, na direção, na produção, mas quando é na técnica, principalmente microfonista, assistente de câmera, de maquinaria/elétrica, eles vão te testar mais”, diz uma microfonista ouvida pelas pesquisadoras. “Já senti falta de confiança de diretores e atores quando percebiam que uma mulher ia fazer a gravação”, relata uma editora de som. “Aquele tipo de pergunta: ‘Mas é você que vai gravar?’.”
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Na trilha das mulheres
A música é outra área desafiadora para as mulheres em todo o mundo: apenas quatro compositoras venceram o Oscar de trilha sonora original e só 7% dos 250 filmes de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2021 tiveram trilhas assinadas por mulheres, de acordo com estudo da Universidade Estadual de San Diego.
O cenário brasileiro é delineado no artigo de Suzana Reck Miranda e Debora Regina Taño, que analisam 1.245 longas-metragens brasileiros de ficção e documentário lançados nos cinemas de 1969 a 2018. Segundo o levantamento, entre todas as 829 pessoas que de algum modo assinam a autoria das músicas utilizadas nesses filmes, apenas 38 são mulheres.
Além disso, dos 42 longas que creditam mulheres compositoras, só 28 creditam apenas mulheres (ou seja, não envolvem a colaboração com homens), e só 4 compositoras (Maria Inês da Silva, Flávia Ventura, Sílvia Beraldo e Vivian Aguiar-Buff) assinam mais de uma trilha em todo o período estudado. Os nomes masculinos, por sua vez, se repetem com frequência, sugerindo que as mulheres têm maior dificuldade em consolidar suas carreiras no setor.
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Um retrato mais completo só poderá ser obtido com estudos regulares, outras pesquisas e bibliografia crescente, e quase todas as colaboradoras de Trabalhadoras do cinema brasileiro apontam, em seus artigos, a escassez de informações e a necessidade de aprofundar a análise dos pontos levantados. De fato, livros inteiros poderiam ser escritos sobre a participação das mulheres em cada uma dessas funções, ou sobre profissionais pioneiras como a diretora de arte Yurika Yamasaki e a montadora Carla Civelli (1921-1977), para citar apenas duas. Um lembrete de que o debate de gênero no audiovisual se fortaleceu, mas está ainda no começo.