por Daniel Galera

 

Fecho os olhos e começo a acelerar o meu carro e a girar as rodas para a esquerda e a direita, após memorizar vagamente as curvas da estrada em frente e o cenário que as emoldura: colinas semidesérticas cobertas de arbustos e cactos, coradas pelo crepúsculo contra o qual se avoluma a corcova de um vulcão distante. É ao vulcão, com suas encostas íngremes, que pretendo chegar de olhos fechados. Desliguei o rádio do carro, no qual em geral deixo tocando música clássica ou tecno hipnótico, para poder ouvir melhor o ronco do motor, os ruídos dos pneus contra o asfalto, o cascalho e a areia, as colisões do para-choque contra cercas, muros de pedras, placas de trânsito, plantas e outros veículos, e também as orientações de voz do GPS que anunciam as conversões do itinerário.

Por alguns segundos, o som dos pneus na superfície informa que consigo me manter na pista de asfalto. Arrisco aumentar a velocidade. Logo os pneus mastigam o cascalho, perdem-se no terreno acidentado, e não consigo retornar à via pavimentada. Se é para ser assim, decido aumentar a emoção e entregar o destino ao acaso. Acelero fundo, faço curvas e ajustes de direção sem me preocupar para onde vou. Um estrondo indica que colidi contra uma rocha ou uma casa. Ainda sem abrir os olhos, dou marcha a ré, giro bem o volante, acelero à frente outra vez.

Minutos depois, abro os olhos: estou saltando sobre as dunas da praia com meu Jeep Trailcat 2006 de cor verde-limão, vendo o mar escuro e as luzes de um povoado a distância. O vulcão parece estar às minhas costas, mais distante agora do que no início da jornada. Na tela da TV, meu carro está inteiro. Estou ileso no sofá da sala, levemente bêbado de cerveja. Uma mensagem informa que estou acumulando pontos de experiência por saltar sobre as dunas e derrapar aleatoriamente nas curvas, e pelo visto acumulei experiência suficiente nesse passeio às cegas para subir de level, de 45 para 46, o que me dá um forte sentimento de satisfação, mesmo que a esta altura, depois de dezenas de horas gastas no jogo, eu ainda não entenda bem o que ganho com essas promoções de nível. Mas a mensagem basta, é como um elogio gratuito de um estranho, um cupom de descontos, um quadradinho de chocolate.

Imagem do jogo Forza Horizon 5, na qual mostra alguns carros em uma montanha de areia. O dia está claro e ensolarado e ao fundo se vê uma grande montanha.
(imagem: divulgação)

Aperto o pause e olho o mapa: à minha volta, dezenas de ícones coloridos me convidam a participar de corridas nas estradas de chão, a passar por radares na maior velocidade possível, a derrapar meu carro da maneira mais absurda dentro de um limite de tempo, a realizar acrobacias automobilísticas para as gravações de um longa-metragem, a bater corrida com um trem por estradas que percorrem o fundo de um cânion. Essas tarefas e desafios me dão pontos, dinheiro, experiência, a chance de ganhar novos carros e ainda mais dinheiro em roletas premiadas. Mas dirigir a esmo, quase sem prestar atenção, fruindo as lindas paisagens hiper-realistas de um México fictício feito de vários ecossistemas comprimidos em cerca de 100 quilômetros quadrados, observando com curiosidade plácida o efeito dos meus comandos no joystick sobre as leis físicas e os sistemas de progressão do jogo, tudo isso também gera recompensas constantes.

O jogo se chama Forza horizon 5, e nele, em gritante contraste com a vida e com a imensa maioria dos jogos eletrônicos, não há forma errada de proceder, não há punição nem frustração, não há ação que não seja em alguma medida frutífera.

Todo corpo está sujeito às forças exercidas por outros corpos; o mundo é uma guerra total de entrechoques entre as coisas, duelos travados com as armas da extensão e do movimento. É a mesma coisa no mundo mental: afetos e ideias chacoalham, repetem-se e atraem-se na arena violenta da experiência consciente. Até o silêncio pode ser hostil e brutal, e a imobilidade e o torpor costumam ocultar processos de imensa ferocidade: no subconsciente, nos bastidores, nas escalas pequenas demais.

É notável, portanto, quando nos deparamos com alguma experiência sem atrito. Forza horizon 5 é um jogo sem atrito. Sua viscosidade é total. É a mais completa lubrificação de que tenho notícia da lógica básica por trás dos jogos (eletrônicos ou não): um conjunto limitado de regras que oferece caminhos a determinados resultados, em alguma medida sempre competitivos, com punições e recompensas no percurso.

Nele, as regras e os objetivos são soltos, quase sem consequências: o que estamos buscando ao jogá-lo? O que está nos impedindo de atingir as dezenas ou mesmo centenas de objetivos possíveis? A resposta às duas perguntas é: quase nada. Contemplo as implicações metafísicas disso enquanto dirijo entre templos astecas encravados na selva e por cima de plantações de agave (pontos de bônus por “arar a terra”), passando por vielas íngremes em coloridos vilarejos históricos e autoestradas à beira-mar.

Absolutamente todos os meus comportamentos são recompensados. Passo por cima de uma placa de trânsito e ganho pontos por “destruição”. Freio bruscamente e perco o controle do carro, mas ganho pontos por “queimar pneu”. Atinjo altas velocidades em carros esportivos em pistas largas e retas, sem o menor esforço, e sou premiado por ser veloz. Atropelo sem querer uma lata de lixo. Há uma recompensa para isso também.

Essas recompensas são infinitamente cumulativas: você pode continuar fazendo as mesmas coisas e continuará sendo recompensando, sem limites aparentes. Pode bater o carro em qualquer coisa, capotar, andar só na marcha a ré. Pode se dedicar propositalmente a avacalhar e subverter o gameplay proposto. Não tem problema. Você segue sendo recompensado. Não há pessoas para atropelar, os animais sempre escapam a tempo do seu para-choque, você ganha pontos por terminar corridas em último lugar e pode repetir qualquer coisa quantas vezes quiser caso deseje obter as recompensas maiores e preencher as tabelas de conquistas, expandindo o leque de prêmios, de carros na garagem, de roupas para seu personagem usar. Forza horizon 5 é o plástico-bolha dos videogames.

Há progressão e desafio, é claro. São incontáveis circuitos, festivais, histórias, testes de habilidade e acrobacias. As corridas de rua envolvendo carros mais velozes são dificílimas. A sensação de velocidade é alucinante, e controlar superesportivos requer técnica e conhecimento. Sou péssimo em jogos de corrida em geral, mas tudo bem. Escolho carros off-road potentes e pesados para fazer as corridas em estradas de chão e normalmente chego na frente na primeira ou na segunda tentativa, com câmbio automático e dificuldade média.

O jogo tem uma função replay. Não é só para ver de novo, é para voltar no tempo mesmo. A qualquer momento, basta apertar um botão para retroceder a ação o quanto quiser e tentar de novo. Não passo todo o meu tempo vagando a esmo ou brincando de dirigir de olhos fechados, imponho-me certos objetivos: chegar em primeiro em todas as corridas cross-country, encontrar todos os celeiros contendo carcaças de carros especiais que podem ser restauradas, fazer as atividades vagamente narrativas que nos levam a enfrentar tempestades de areia ou encontrar artefatos arqueológicos no meio da selva. Mesmo nessas, porém, cumpro a missão e alcanço o destino com um envolvimento apenas parcial, sabendo que quase nada poderá me impedir por muito tempo.

Deixo o som da televisão baixinho, alto o suficiente para escutar o motor, os pneus e a música, mas não os diálogos entre os personagens, que são banais e empolgados como um encontro de “startupeiros” no festival Burning man. Ao longo de dúzias de missões e “histórias”, nunca soube o que ninguém está dizendo. Não importa. Quero aquela doce viscosidade, a sensação de levar um pudim de leite à boca, de ser quantitativa e esteticamente recompensado por meus impulsos exploratórios semiconscientes e em grande medida improvisados.

Um carro está na cor prata atravessando no meio de um rio. Ao fundo, mais embaçado, é possível ver outro carro na cor azul. Ao redor do rio se vê a margem, árvores e o céu azul.
(imagem: divulgação)

Forza horizon 5 me propiciou momentos preciosos nesses últimos meses de tantas tensões, medos e raivas. Houve dias em que ligar o Xbox e apertar o botão do acelerador era uma forma de obter o anestésico ideal para o cansaço e a ansiedade. Um jogo supostamente feito para oferecer emoções velozes e mananciais de atividades cumulativas e viciantes terminava por ser o refúgio do ruído e do caos do mundo real.

O game não se importa com o que você faz com ele. Algumas coisas não têm consequência alguma, outras têm consequências boas que também não importam tanto assim. É um mundo fictício, totalmente irreal, é claro, ainda que certos tipos de realismo sirvam de ingredientes para a sua concepção. Sua fluidez meticulosamente construída – um prodígio também técnico, uma maravilha audiovisual sem soluços e quase sem pausas de carregamento – tem, mesmo assim, algo de sublime que não sei definir bem, mas que aprendi a admirar. O lugar em que ele nos coloca diz pouco sobre o mundo em si, mas é um lugar generoso, que oferece pouco mas pede ainda menos, que se presta com alegria a fazer contraponto às arestas e aos atritos da experiência vivida. Um narcótico procedimental barato e sem receita, um anti-souls-like, um pop it automobilístico, um simulador de expectativas cumpridas. Suspeito haver uma radicalidade não intencional nisso. Mas enfim. Ploc, ploc, ploc.

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Modelados em 3D, vemos uma cena de entardecer. O horizonte está laranja, com algumas nuvens. À esquerda, vemos um carro branco com detalhes em laranja. À esquerda, um cervo.

Precipício do tempo

“Far from noise” é um dos mais interessantes jogos contemplativos. Ele me convidou a não fazer quase nada e me levou a alguma ponderação, uma transformação qualquer