por Daniel Galera
Em 2019, sem muito alarde, a desenvolvedora independente de Los Angeles Mobius Digital lançou um dos mais extraordinários jogos de todos os tempos, Outer wilds. Não é que o jogo tenha passado batido: ele ganhou muitos prêmios importantes de design, angariou admiradores de sobra e está disponível para PC e a maioria dos consoles. Mas suas qualidades únicas foram um pouco ofuscadas por títulos mais comerciais e estridentes, incluindo outro excelente jogo de nome parecido e temática espacial, Outer worlds, lançado no mesmo ano. Agora, a chegada de conteúdo adicional em Outer wilds (o DLC* Echoes of the eye) é um incentivo para falar um pouco sobre o que o torna tão especial.
Em Outer wilds, assumimos o controle (com ponto de vista em primeira pessoa) de um alienígena que sonha em explorar o universo, a exemplo de outros cosmonautas lendários do seu pequeno planeta, Timber Earth. Depois de cumprir algumas etapas iniciais da narrativa, que envolvem conhecer a história do programa espacial e obter códigos de lançamento de uma pequena aeronave, o jogador consegue decolar e iniciar a exploração do sistema solar fictício do jogo – apenas para descobrir que, cerca de 22 minutos depois da decolagem, o sol no centro do sistema explode numa supernova e pulveriza tudo que há em volta.
No entanto, o astronauta acorda de novo na fogueira do acampamento ao lado da aeronave. Aprendemos que estamos presos em um loop temporal, como o do filme Feitiço do tempo, e que teremos de morrer dezenas ou centenas de vezes no esforço de aprender sobre o mistério da extinção daquele sistema solar. A mecânica do loop de tempo se tornou moda tanto nos videogames (em jogos recentes, como Returnal e 12 minutes, e de certa maneira em todo jogo do gênero rogue-like, no qual o avanço narrativo consiste justamente em morrer seguidas vezes e reter alguma experiência ou novas capacidades a cada novo ciclo) quanto no cinema (No limite do amanhã, Contra o tempo, etc.), mas Outer wilds traz características que o tornam muito especial nesse segmento.
O jogo não apresenta recursos de progressão comuns, tais como acúmulo de habilidades e desenvolvimento de personagens em estilo role-play*; na verdade, ele tampouco possui combate de qualquer tipo, embora seja possível morrer de muitas maneiras (sem oxigênio, saindo da nave sem traje espacial, caindo dentro de um buraco negro, sendo engolido por peixes abissais do tamanho de baleias ou acabando soterrado dentro de uma caverna que se enche aos poucos de areia… Enfim, não faltam hostilidades espetaculares e realmente perturbadoras em alguns casos.). A cada reinício, não somente o mundo do jogo permanece rigorosamente o mesmo, como também o personagem controlado pelo jogador. Suas capacidades consistem em pilotar a nave, locomover-se com as pernas e um jato propulsor, acionar painéis contendo mensagens e dispositivos que integram quebra-cabeças, escanear frequências em busca de sons e mensagens e, por fim, disparar uma sonda que é capaz de fotografar e enviar imagens enquanto viaja longe do jogador.
A única ferramenta de progressão cumulativa disponível é um painel no interior da nave, que vai acumulando as pistas e as informações obtidas numa espécie de diagrama detetivesco que ajuda o jogador a montar as peças do mistério. (Este envolve uma antiga raça alienígena que deixou para trás ruínas arqueológicas, mensagens e tecnologias avançadas, e que buscava acessar um certo “Olho do Universo”, que seria nada menos que o berço do cosmo.) Em outras palavras, a única coisa que o jogador pode acumular sobre esse mundo à medida que joga é o conhecimento.
Vale a pena pensar um pouco sobre como isso impacta a experiência de se entregar a Outer wilds. Há uma epistemologia peculiar servindo de coração e pulmão para o ato de jogar. Por um lado, sabemos que outros antes de nós já obtiveram conhecimento suficiente para decifrar os enigmas do universo, e basta que aproveitemos o loop temporal para reunir as peças ainda soltas e incompletas. Fazemos isso encontrando as mensagens deixadas pela raça extinta em sua linguagem não linear e espiralada, investigando artefatos antigos e fenômenos quânticos que afetam objetos de grande escala (há até uma lua quântica desempenhando importante papel no quebra-cabeças) e conversando com outros exploradores perdidos nos confins do sistema (eles podem ser detectados pelo som de seus instrumentos musicais, em melodias “perdidas no espaço” que instalam um forte senso de melancolia).
Por outro lado, esse sistema solar feito de astros miniaturizados, mas repleto de mistérios e catástrofes naturais de escala verdadeiramente astrofísica, é uma espécie de modelo consistente da cosmologia real do mundo aqui fora do jogo. O resultado de todos esses elementos reunidos é uma sensação de que aquilo que está em jogo é um conhecimento profundo sobre a nossa própria condição no universo. Se soubéssemos de antemão toda a informação sobre o sistema solar de Outer wilds e seus exploradores anteriores, seríamos capazes de alcançar a conclusão do jogo logo na primeira tentativa, em menos de meia hora. Psicologicamente, somos tragados por um senso de deslumbramento e mistério que costumamos associar a povos antigos investigando os céus antes dos tempos modernos. Esse sentimento é amplificado pela arte a um só tempo singela e sublime do jogo: os personagens poderiam figurar numa animação infantojuvenil, mas a imensidão escura do espaço e os inquietantes fenômenos físicos que transformam e destroem os corpos celestes evocam, com grande eficácia, o abismo da nossa insignificância.
Às vezes, uma revelação técnica posterior à fruição de uma obra nos fornece uma chave de compreensão poderosa para os efeitos que ela causa. Isso aconteceu comigo no caso de Outer wilds quando li uma entrevista com os desenvolvedores do jogo. Alex Beachum, o diretor criativo, contou à Games radar que “um dos pilares centrais do jogo era ter um mundo que transmitisse a sensação de que coisas estão acontecendo quando você não está lá”. Por isso, eles decidiram que o programa rodaria a simulação do sistema solar inteiro mesmo que o jogador estivesse vendo e interagindo apenas com um pedacinho de cada vez.
Trata-se de um imenso desafio técnico, e algo que impacta a experiência do jogador ainda que ele não saiba de nada disso. De repente eu entendi como Outer wilds me dava a sensação de estar habitando um gigantesco e complexo relógio cujo funcionamento escapava ao meu alcance, mas somente por enquanto. Às vezes os fenômenos são avistados ao longe, nos confins do espaço, e tenho a sensação de que “eu poderia estar lá agora vendo o que aconteceu de perto” porque, em certo sentido, aquilo de fato ocorreu. O funcionamento da sonda fotográfica, por exemplo, só é possível porque a simulação opera dessa maneira. Podemos enviar a sonda em alta velocidade aos confins do sistema solar e produzir fotografias em qualquer direção, e o que elas mostram não são quadros previamente renderizados, e sim instantâneos produzidos naquele mesmo instante, revelando um mundo que está funcionando fora do nosso alcance.
Por meio de decisões de design e narrativa como essas, Outer wilds consegue induzir no jogador o mesmo espanto um pouco sinistro de olhar fotografias de sondas recentemente enviadas a Marte. Aquela sensação de que estamos aqui, e nosso tempo é finito, mas estamos interconectados com o que está lá longe, em toda parte, em escalas de tempo que nos ultrapassam em muitos graus de magnitude e, mesmo assim, sabemos, se repetem em fascinantes ciclos e estruturas fractais.
Viajar no espaço é um projeto humano que envolve supremacia geopolítica, curiosidade científica e anseios filosóficos, mas neste novo milênio o projeto vem sendo capturado pelos interesses privados de bilionários como Jeff Bezos e Elon Musk, que podem até compartilhar do deslumbramento que temos pelo universo desconhecido, mas também impõem ao imaginário da “corrida espacial” os seus projetos de acúmulo de capital, delírio pós-humanista, colonialismo e extrativismo siderais, bem como uma vaidade fálica que ganhou contornos tragicômicos no formato do foguete de Bezos. Há ainda uma pulsão mal direcionada de reação ao autoextermínio no atual imaginário da exploração espacial. Os patrocinadores privados super-ricos das iniciativas aeroespaciais não escondem sua intenção de poder escapar sozinhos de um planeta que começa a se dobrar à convulsão do progresso industrial e extrativista.
Nesse contexto, são ainda mais tocantes os contornos do mundo imaginado pelos autores de Outer wilds: o planeta-casa da raça protagonista, Timber Earth, é um microcosmo pouco habitado, repleto de florestas; as tecnologias são representadas como bricolagens criativas e recicladas, nas quais se identificam pedaços de outras máquinas e peças de madeira. A exploração espacial não é uma questão de geopolítica ou extrativismo, e sim de genuíno deslumbramento pelos mistérios, encantos e horrores do universo. Há, sim, um impulso de sobrevivência por trás da busca dos personagens. Mas não se trata de escapar de um planeta ferido, deixando para trás uma terra arrasada e a maior parte de seus viventes, e sim de contornar – ou ao menos compreender melhor – a explosão inevitável de uma estrela, um evento prodigioso e destruidor, sim, mas que é explicado pelas mesmas leis que nos puxam de volta ao solo após cada salto, as mesmas leis que fazem dois planetinhas orbitar em torno um do outro enquanto a areia escorre entre eles como numa ampulheta, as mesmas leis que nos permitem criar registros de nossos pensamentos e descobertas, para que talvez nossos sucessores consigam também aprender e ir além do que pudemos.
Pensei sobre tudo isso enquanto jogava Outer wilds – um jogo que, apesar da sua singeleza em alguns aspectos, nos propõe desafios complicados, que exigem paciência e dedicação. Tanto que eu nunca cheguei ao final. Fui longe, creio. Enchi o painel da minha nave de pistas e descobertas e me meti em dúzias de situações que nunca esquecerei. No entanto, ainda não sei como chegar ao Olho do Universo nem como escapar do loop de tempo e da explosão do meu sol. Para dizer a verdade, na época em que o joguei, Outer wilds exigiu de mim mais do que eu tinha condições de dar: dedicação continuada de algumas horas por dia. Comentários na internet me garantem que o final do mistério é recompensador, e de apertar o coração. Mas não deixa de haver certo conforto mimético em não conseguir chegar lá. Estou em paz com isso. Eis um joguinho grandioso, no qual até a desistência fornece como recompensa uma espécie de completude poética.
* Notas da edição:
– DLC é uma sigla para downloadable content (conteúdo baixável) e se refere a materiais (novas atividades, personagens etc.) acrescentados a um jogo previamente lançado.
– Role-playing game (jogo de interpretação de papéis) é um gênero tanto analógico (RPGs “de mesa”) quanto eletrônico. Nos videogames, caracteriza-se pelo foco na narrativa e na exploração e por um desenvolvimento contínuo do personagem. Essas mecânicas hoje se espalharam por vários outros gêneros do mundo dos videogames.