por Luísa Pécora

 

Era noite de 16 de outubro de 2022 quando a cineasta paulista Juliana Vicente subiu ao palco do Cine Odeon durante a cerimônia de encerramento do Festival do Rio. Carregando a filha, Amora, no colo, ela agradeceu o prêmio de Melhor Direção de Documentário que conquistou por Diálogos com Ruth de Souza, resultado de dez anos de filmagens e conversas com uma das mais importantes atrizes brasileiras.

Mulher negra aparece em foto preto e branca, do dorso pra cima. Ela está usando roupa preta e argolas prateadas. Seus cabelos são pretos e cacheados, e estão penteados para cima.
Juliana Vicente dirigiu os documentários “Diálogos com Ruth de Souza” e “Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo” (imagem: Raquel Espírito Santo/Netflix)

Exatamente um mês depois, em 16 de novembro, Juliana chegou com outro filme a um palco diferente: o catálogo mundial da Netflix. Após sete anos trabalhando no documentário Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo, ela agora vai apresentar a trajetória do grupo mais influente do rap nacional a espectadores de mais de 190 países.

É, portanto, um momento e tanto na carreira da cineasta de 38 anos – que, em 2009, fundou a produtora Preta Portê Filmes e, no ano seguinte, lançou seu primeiro curta, Cores e botas. O filme é ambientado na década de 1980, mas se mostrou tão atual que é, até hoje, um dos mais conhecidos e requisitados de Juliana. Ao contar a história de uma menina negra que sonhava em ser paquita, a diretora revelou não apenas seu talento para o cinema, como também a vontade de se dedicar a produções de relevância social.

De lá para cá, Juliana abordou o acesso à educação no documentário Escola das águas: o desafio pantaneiro (2014), a luta das mulheres do hip-hop no curta As minas do rap (2015) e a potência da juventude negra brasileira na série Afronta! (2017). Também dirigiu videoclipes como o de “Marighella” (2012), dos próprios Racionais, e coproduziu filmes como A terra e a sombra (2015), de César Augusto Acevedo, premiado no Festival de Cannes.

Homem negro, careca e com vitiligo, está sentado em um poltrona caramelo. Ele gesticula com as duas mãos. Ele está com uma camiseta preta, usa corrente comprida prateada e também um relógio.
KL Jay em cena do documentário "Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo" (imagem: divulgação/Netflix)

Muitos desses trabalhos foram realizados enquanto Juliana desenvolvia os dois documentários que estão sendo lançados agora. “Estou concluindo processos longos e profundos junto com esses filmes”, definiu a diretora em entrevista por e-mail a esta coluna. “O mundo mudou um tanto no período em que estive executando esses projetos. Cruzei com muita gente especial que me iluminou muito e, sem dúvidas, esses personagens me alimentaram e me provocaram como pessoa e como artista.”

A coluna aproveitou para conversar com Juliana sobre os novos filmes, seu processo criativo e o impacto de histórias como as de Ruth de Souza estarem sendo contadas nas telas: “Se, na adolescência, tivesse conhecido tudo que conheço hoje da nossa história preta, acho que teria aprendido a voar”. Leia a entrevista a seguir.

Você está lançando Diálogos com Ruth de Souza nos festivais e Racionais: das ruas de São Paulo pro mundo no catálogo mundial da Netflix. Parece ser um momento muito especial da sua carreira. Como está sendo passar por ele?

Estou concluindo processos longos e profundos junto com esses filmes. Foi um intenso processo de aprendizado, de mudança. Tantas coisas aconteceram. Amadureci com os filmes, e o mundo mudou um tanto exatamente nesse período, além de outros projetos que foram fundamentais para que Racionais e Ruth fossem o que são. Cruzei com gente especial que me iluminou e, sem dúvidas, esses personagens me alimentaram e me provocaram como pessoa e como artista. Também me tornei mãe no último ano e me sinto feliz [com o fato de] que foi possível, ainda que não tenha sido fácil, ser mãe e cineasta. Então, estou muito feliz com este momento.

Mulher negra idosa está sentada em um sofá marrom, ao lado de uma mesa com um abajur. Ela está sorrindo, tem cabelos pretos penteados em um coque no alto da cabeça e está de calça marrom e camisa em tons de rosa escuro. Ela usa colar com bolas peroladas. Uma de suas mãos está sobre uma das coxas e na outra mão ela segura um lenço branco.
A atriz Ruth de Souza, que morreu em 2019, foi tema de documentário de Juliana Vicente (imagem: divulgação)

Qual foi a origem do filme sobre a Ruth? Obviamente, ela merece um documentário, mas o que a levou a querer contar a história dela?

Conheci Ruth de Souza através de Dani Ornellas. Ela atuou no meu primeiro curta e falava muito sobre Ruth, de quem era amiga (e, na época, uma das poucas pessoas que a visitavam com frequência). Foi ela quem me apresentou a Ruth e, a partir desse encontro, o projeto começou a ser desenhado por mim e pela minha equipe na Preta Portê Filmes. Ele teve mil versões. Na primeira, queria levar Ruth até São Paulo para encontrar com Vilma, sua melhor amiga ainda do tempo da Vera Cruz. Quando, finalmente, conseguimos algum financiamento, Ruth já não estava andando mais. Então, tive que ir adaptando a ideia às possibilidades que foram se desenhando. E os ancestrais [foram] soprando algumas coisas para mim.

Gostaria de saber um pouco mais sobre a logística das filmagens. Com que frequência vocês se encontravam? Eram só vocês duas ou havia uma equipe?

Filmei Ruth em muitos formatos: sozinha, com mais uma pessoa, com a presença de pessoas brancas, só com pessoas pretas, só com mulheres, só com mulheres negras. Experimentei formas buscando o que funcionasse melhor, porque era difícil tirá-la de um discurso cristalizado sobre a própria história dela. Mas fui insistente e, quando eu ficava um tempo sem aparecer (em vários casos, por estar pensando e pesquisando sobre como tentar acessar outras coisas que não as de sempre), a própria Ruth me ligava para saber quando eu iria lá, como seguiríamos com o filme. Foram anos. Nos primeiros, filmava sem nenhum dinheiro e, logo, sem nenhuma equipe. Também tinha alguma dificuldade de escutar o que ela dizia, porque, às vezes, a voz estava mais fraca. Então, sempre conversava com ela colocando [microfone de] lapela e acabava gravando. Tivemos uma última etapa mais contínua, de uma semana de gravação, depois de eu já ter esgotado todos os dispositivos que achava que podia testar. E acho que funcionou. Foi bem próximo ao Carnaval, com uma equipe um pouco maior (mas, ainda assim, pequena), indo todos os dias na casa dela até concluir essa etapa.

Você se dedicou, por muitos anos, ao filme de Ruth e ao dos Racionais não sei se por questão de financiamento ou se foi o tempo natural de maturação dos projetos. Independentemente das razões, como você faz para se manter motivada e focada em projetos longos assim? Trabalhar em vários filmes ao mesmo tempo é algo tranquilo para você?

Trabalho bem com mais de um projeto por vez por causa do tempo de maturação. Eles ficam todos vivos dentro de mim ao mesmo tempo. Há horas e momentos de total dedicação a um ou outro e, às vezes, também um alimenta o outro. No meio desse caminho, fiz outras coisas, como a série Afronta!, que me alimentou para ambos os projetos [mais demorados]. A ideia é de um tempo espiral mesmo. Vem um mergulho, assenta; vem outro, assenta. Tempo é orixá, tem que respeitar.

Cartaz do filme "Diálogos com Ruth de Souza" (imagem: divulgação)

Pelo tempo de trabalho e a natureza dos dois filmes, imagino que você deve ter chegado ao momento da edição com bastante material. Como é seu processo de montagem? Você se envolve ou prefere deixar os montadores mais livres? Já sai das filmagens com uma boa ideia do que quer ou vai descobrindo na ilha de edição?

Acompanho totalmente a montagem, [sou] meio obsessiva, dou trabalho. Se você olhar o número de montadores adicionais que passaram pelos projetos, além dos anjos Yuri [Amaral] e Wash [Washington Deoli], que me acompanharam ao longo deles inteiramente, vai perceber que a montagem é um momento fundamental para mim. Tenho uma memória boa: mesmo que tenha muito material, normalmente lembro do que filmei. Nesses dois filmes, estive presente na montagem quase integralmente, testando muita coisa. Em alguns breves momentos, preciso me afastar e voltar, esperando assentar, vendo novamente, recomeçando às vezes. A interlocução com a montagem é fundamental. 

O filme dos Racionais é definido como uma produção da Preta Portê Filmes para a Netflix. Em que momento a Netflix entrou no projeto e como tem sido a experiência de lançar esse trabalho na principal plataforma de streaming do mundo?

A Netflix entrou quando já tínhamos um corte. Depois disso, a gente ainda filmou bastante, e o filme ganhou muito com a entrada da plataforma. Além de estrutura, a gente ganhou mais um interlocutor respeitoso e parceiro para fazer com que o filme acontecesse na maior potência possível e da maneira que eu acreditava. É um impacto enorme imaginar que vamos lançar o filme diretamente em 190 países: essa historia, esse grupo, essas músicas e essas questões. Acredito que seja muito importante.

Imagem mostra três frames de filme fotográfico. As duas imagens dos cantos aparecem cortadas. Na do meio aparecem doze homens negros, na fachada de uma igreja. Todos usam roupas pretas e estão sérios. Um deles, na frente, segura uma Bíblia.
Juliana Vicente trabalhou no documentário sobre os Racionais e agora vai apresentar a trajetória do grupo mais influente do rap nacional a espectadores de mais de 190 países (imagem: divulgação/Netflix)

Alguns anos atrás, em uma entrevista para o Itaú Cultural, você disse a seguinte frase: Eu tenho um compromisso muito sério em fazer coisas que são úteis”. Para você, em que sentido a arte (e a sua arte) pode ser útil?

Ainda penso exatamente assim. Se for possível levantar um debate, fazer chegar uma ideia a alguém, transformar alguma forma de pensar, agregar informações ou construir novos imaginários, já estou conseguindo manter o meu objetivo.

No filme sobre Ruth, há um momento em que você diz que qualquer ator branco com a carreira dela teria sido aclamado e isso se traduziria em dinheiro. Essa questão financeira, que me parece chave, está sendo contemplada nas discussões sobre raça no cinema brasileiro? Conforme crescem os debates sobre igualdade e ocupação de espaço, fala-se também sobre dinheiro?

Não, mas os Racionais já vêm falando disso desde 2002. No [álbum] Nada como um dia após o outro dia, eles já levantam essa questão, mas a gente está atrasado. Quando se fala de dinheiro, ainda parece arrogante ou fora de contexto, mas é uma discussão urgente também. Não é por acaso que a gente tem feito mais documentários do que ficção: é também uma questão de orçamentos maiores que tardam mais para chegar às nossas mãos. Muitas vezes, as pessoas amam a nossa ideia, mas não necessariamente vão querer colocar esse dinheiro na nossa mão. A razão, eu não sei, porque nossa entrega está aí. Mas isso vai ter de mudar de um jeito ou de outro. Afinal, existe muita diferença quando podemos construir um filme feito “nós por nós”. Além da Preta Portê, os outros produtores do documentário [sobre os Racionais] são BoogieNaipe e Cosa Nostra, ou seja, Eliane Dias e os próprios Racionais. Eles me deixaram totalmente livre para fazer o que acreditava, coisa que não sei se haveria se o filme não fosse feito nesse formato “nós por nós”. Para além de ocuparmos espaços, queremos ser remunerados adequadamente pelo nosso trabalho.

Também é muito bonito quando você diz, no filme sobre Ruth, que, nesse contexto de maior debate sobre raça no Brasil, nós mesmos começamos a procurar os nossos mais velhos. Gostaria que você falasse um pouco mais sobre isso. De que maneira essa recuperação de trajetórias impactou a própria comunidade negra?

Se, na adolescência, tivesse conhecido tudo que conheço hoje da nossa história preta, acho que teria aprendido a voar. Esse movimento dos últimos anos foi tão fundamental para nós que eu não saberia colocar em dimensão. Valorizar os nossos mais velhos é cuidar da nossa autoestima também. É maravilhoso entender que somos parte de um movimento maior e potente. Sinto-me mais forte à medida que vejo os meus mais velhos e meus contemporâneos sendo enormes como estão sendo. São tantos os movimentos, e tenho tido a sorte de acompanhar esse processo de resgate de perto, com profundidade. Fico muito feliz por mim, pela minha filha, pela humanidade toda.

Fotografia preto e branco da atriz Ruth de Souza. Ela é uma mulher negra, de aparência jovem, está com um vestido branco e a mão direita apoiada atrás da cabeça. Seu cabelo está preso. Ela olha para frente, com a cabeça levemente inclinada para cima.
Ruth de Souza é considerada a dama negra do teatro, do cinema e da televisão no Brasil (imagem: Correio da Manhã/Acervo Arquivo Nacional)

Tirando Cores e botas e os documentários sobre a Ruth e os Racionais, a qual dos seus trabalhos como diretora ou produtora você gostaria que mais gente assistisse?

Acho que vale assistir a Afronta!, que está na Netflix e tem 26 episódios de 15 minutos. O canal do YouTube da Preta Portê Filmes traz quase todos os nossos filmes. Realmente, acho que a gente tem produzido um trabalho muito relevante de outras diretoras e outros diretores. Vale conferir.

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