Márcio Vasconcelos

Fotografia em preto e branco de barco em rio
(imagem: Márcio Vasconcelos)

A maré vai...
A maré vem...

A maré some
O Itapui Tapera deita na croa de areia

O vento já não sopra nas velas
O mestre estica o corpo na rede úmida
Liga o radinho, aperta um,
ouve um reggae

Pra que pressa?
Dizem que a maré só volta após seis horas

No fogareiro o carvão já está em brasa
Sente-se o cheiro de peixe frito
a ser comido com farinha d’água

Uma cachacinha com limão amacia a garganta
É bom pra proteger das espinhas

De um lado o Sol se esconde
Do outro a Lua mostra a cara

Já tarde da noite a maré vem
O barco flutua, balança, quer voar

O vento volta a soprar as velas
Alcântara está lá na frente

O barco vai..

Tereza Maciel

Fotografia colorida em tom azulado de mão dentro de água
(imagem: Tereza Maciel)

carta pra vovó eudoxia

tô aqui na casa onde a senhora viveu uma parte da vida, na ilha de curuçambaba, em cametá. tem cheiro de erva, cheiro de grama cortada, cheiro de farinha, cheiro da senhora. dá uma alegria, mas também aperta o peito.

o caminho pro poço, a farinheira ainda tá ali, ganhando vida por cima, limo, insetos, rãs habitam, co-habitam-se, vivem.

de tarde, a gente toma mingau de açaí branco com arroz e come beiju. e é como ouvir tua voz contando algum causo ou reclamando de alguma notícia que saiu no rádio. aí passava alguém pelo caminho do lado da casa e gritava: “nhô eudócia, uuuuuu!”, e a senhora respondia: “uuuuuuu”. era bonito assistir à vida sendo vivida no tempo compassado, longe de telas, aplicativos, mensagens apressadas.

outro dia fui até a praia lá da frente, vi a noite chegando, azulando o horizonte, a senhora já ia gritar: “menina, volta pra casa, que é noite de lua, olha a matinta...”. fiz alguns autorretratos de que a senhora iria gostar.

passei dias entre histórias, lembranças dos seus cheiros, dos seus olhos e dos seus ensinamentos de ervas. arruda, alecrim da ângola, artemísia, jucá, copaíba são cura; quem tem fé tem tudo.

entre todas as possibilidades, essa. essa de volta pra casa, né, vó? de passar pela cortina cinza e encontrar as praias brancas.

autoficções, carta 1

 

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