por Luísa Pécora

 

Listas com dicas de filmes são tão populares quanto controversas: enquanto alguns valorizam esta espécie de curadoria promovida pelas publicações sobre cinema, outros se incomodam com as omissões, limitações e repetições que sempre acompanham este tipo de conteúdo.

O mesmo vale para o caso específico dos rankings dedicados a filmes dirigidos por mulheres. Embora possam ajudar a mapear cineastas e obras que durante tempo demais estiveram ausentes dos guias, livros, sites e revistas, as listas centradas em mulheres tendem a repetir o padrão das listas gerais ao frequentemente elevar as mesmas realizadoras e títulos.

A coluna deste mês, no qual se comemora o Dia Internacional da Mulher, busca um possível meio termo inspirando-se em uma lista da Sight and Sound, revista de cinema britânica que é uma das mais importantes do mundo. Em 2015, a publicação convidou artistas, pesquisadores, programadores e críticos a escrever sobre 100 filmes dirigidos por mulheres que receberam menos atenção do que deveriam. Para a versão da Grande angular, convidei realizadoras brasileiras a responder à seguinte pergunta: na sua opinião, qual filme dirigido por mulher merece ser mais visto e reconhecido do que é?

A pergunta pressupunha uma resposta subjetiva - afinal, o que uma pessoa considera reconhecido talvez seja desconhecido para outra, e um mesmo filme pode parecer injustamente ignorado ou devidamente valorizado, dependendo de quem opina. A ideia, portanto, era que cada realizadora fizesse uma recomendação totalmente pessoal, indicando um filme que ela gostaria de compartilhar com mais espectadores.

Como algumas convidadas optaram por citar mais de um título, o resultado é uma lista com 21 produções brasileiras diferentes, lançadas entre 1973 e 2020. Confira as escolhas e os depoimentos de cada cineasta:

Beatriz Seigner, diretora de Los silencios (2018)

"Gostaria de indicar Um dia com Jerusa (2020), da Viviane Ferreira. Além da ternura com a qual trata suas personagens e de certa originalidade na trama do filme, vejo uma ousadia em termos de linguagem cinematográfica que me fez ficar com muita vontade de ver mais filmes desta realizadora. E ela faz tudo isso sem deixar de se comunicar com um grande público, o que me faz gostar ainda mais de seu filme ousado e comunicativo, cujos personagens continuam a nos habitar e conversar conosco, mesmo meses depois."

Mulher negra com cabelo curto trançado aparece séria, olhando para o lado.
Um dia com Jerusa (2020), da Viviane Ferreira (imagem: divulgação)

Camila Kater, diretora de Carne (2019)

"Recomendo o curta metragem O projeto do meu pai (2016), dirigido por Rosária Moreira. Neste documentário animado, carregado de experiências pessoais de uma artista em desenvolvimento e reflexões cândidas da infância, Rosária toca na ferida do abandono paterno que aflige mais de 11 milhões de famílias no Brasil, segundo levantamento feito pelo IBGE em 2015. Através de metáforas visuais que expressam a relação pai e filha, Rosária reproduz com maestria o velado mundo dos adultos, onde as meias explicações são apresentadas para as crianças. Primeiro, vem a partida do cachorro, que vai morar numa casa grande de outra família. Depois, é a vez de seu pai partir, sob o pretexto de morar com uma 'tia', que mais tarde Rosária compreende ser sua nova companheira. Sua partida misteriosa é marcada pelo seu afastamento da família e abandono de suas responsabilidades paternas, o que a diretora reflete na representação do pai, que vai se desbotando, com o tempo, de sua memória, de seus papéis e de sua vida.'"

Desenho infantil colorido mostra duas figuras humanas e um cachorro.
O projeto do meu pai (2016), dirigido por Rosária Moreira (imagem: divulgação)

Cristiane Oliveira, diretora de Mulher do pai (2016)

"Como encontrar apoio emocional no confinamento? Como enfrentar o mal-estar da posterior liberdade? Questões de todos nós em tempos de pandemia que me fizeram lembrar muito do longa O cárcere e a rua (2004), de Liliana Sulzbach, um filme sobre nossa capacidade de adaptação. Desenvolvido com o apoio do Sundance Institute, o documentário acompanha três anos da vida de três mulheres com passagem pelo presídio: uma recém-liberta, outra recém-presa e uma presa há muito tempo e que reluta em sair. Uma aula de subtexto em rostos impregnados de história, cujos discursos se confirmam ou não na realidade à medida que o filme avança. Foi o primeiro longa que pude acompanhar nos bastidores sua trajetória, desde a realização até a exibição – momento mágico em que vi anos de intenso trabalho condensados na tela, comovendo pessoas numa sala escura. Com seis prêmios de melhor filme nos mais de 20 festivais internacionais por onde passou, O cárcere e a rua foi distribuído à época com apenas quatro cópias 35mm pelos cinemas do Brasil. É um filme que merece ser mais visto."

Edileuza Penha de Souza, diretora de Filhas de lavadeiras (2019)

"Pensar em realizadoras negras brasileiras requer sempre lembrar de Adelia Sampaio, a primeira, aquela que antecedeu o Cinema Negro no Feminino. Seu primeiro longa-metragem, Amor maldito (1984), é atualíssimo, principalmente num país como o nosso, no qual a LGBTfobia mata as pessoas com variantes ostensivas e sutis, todas cruéis. Vamos fazer um brinde (2010), de Sabrina Rosa, é protagonizado por pessoas negras e destaca-se por ter rompido o hiato de 27 anos de longas-metragens realizados por uma roteirista e diretora negra. Café com canela (2017), de Glenda Nicácio e Ary Rosa, é puro afeto e encabeça minha lista de favoritos. É um filme que retrata amores, cuidados, amizades, que representa o feminino negro. Família Alcântara (2004), de Lilian e Daniel Solá Santiago, inaugura outra forma de documentar o cotidiano e a arte do povo negro. Também documentários, O caso do homem errado (2019), de Camila de Moraes, e Sementes - Mulheres pretas no poder (2020), de Éthel Oliveira e Júia Mariano, denunciam a violência a que pessoas negras estão expostas e apontam a urgência de rompermos essa rota de extermínio, enquanto exibem os vazios, as dores e compromissos de quem fica. Minha lista vai além desses longas, para indicar estes curtas-metragens dirigidos por mulheres negras: Aquém das nuvens (2014) de Renata Martins; Um dia de Jerusa (2014), de Viviane Ferreira; Mulheres de barro (2014), meu primeiro trabalho com projeção; Casca de Baobá (2017), de Mariana Luiza; e Écharpe noir (2018), de Barbara Fuentes, por retratarem algumas possibilidades de amor e afetos do protagonismo de mulheres negras. A lista não termina aqui, mas esses filmes cumprem o propósito de demarcar o cinema negro no feminino."

Duas mulheres estão encostadas em uma sacada, a céu aberto. Uma tem os cabelos ruivos e crespos. A outra é loira, com os cabelos lisos.
Amor maldito (1984), primeiro longa-metragem de Adelia Sampaio (imagem: divulgação)

Flora Egécia, diretora de Da raiz às pontas (2015)

“Quando assisti a Ilha (2018), longa-metragem dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa, me lembrei do que me motiva a insistir em fazer cinema no Brasil. A obra narra um reencontro forçado entre dois homens negros com uma paixão em comum - um deles quer fazer um filme sobre a ilha em que nasceu e permaneceu até ali. Com esses dois personagens e o que os rodeia, a obra consegue imprimir de forma muito diversa o que é existir no Brasil e como as limitações estão impostas antes mesmo do nosso nascimento. Tive o prazer de vê-lo pela primeira vez no Festival de Brasília e me lembro de como o tempo ficou suspenso na sala de exibição enquanto as imagens passavam. A trilha é um mergulho em um espaço de pertencimento e acolhimento. Não me recordo de muitos filmes que me acolheram nesse lugar. A velocidade do filme oscila e o final coloca o espectador dentro de um ninho, um ninho cheio de pensamentos que podem ser processados por dias, meses, anos. É um filme que gostaria que todos vissem e pudessem acessar esse olhar que humaniza corpos tão estigmatizados."

Dois homens negros estão sentados em uma pedra, em frente ao mar. Eles estão de costas um para o outro. Um usa camisa azul e bermuda bege. O outro usa roupa toda em tons bege, camisa e bermuda, está descalço e de braços cruzados.
Ilha (2018), longa-metragem dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa (imagem: divulgação)

Jorane Castro, diretora de Para ter onde ir (2016)

“Gostaria de recomendar três produções, começando por Qual queijo você quer? (2011), com roteiro e direção de Cíntia Domit Bittar. É um filme delicado e humano, no qual a relação de um casal toca profundamente pelo seu realismo repleto de poesia. A hora da estrela (1985), escrito e dirigido por Suzana Amaral, é uma obra essencial do cinema brasileiro. Foi o primeiro filme que vi de uma realizadora brasileira, que inspirou e continua inspirando toda uma geração de cineastas. Também gosto muito de Sequestro relâmpago (2018), de Tata Amaral, que faz um thriller na noite paulistana, mostrando a realidade da grande metrópole, com desigualdade social, conflitos raciais e violência. Um retrato do Brasil contemporâneo em uma linguagem de cinema para todos."

Um idoso e uma idosa estão sentados em um sofá, olhando para o lado esquerdo. Na mesa no canto direito, há livros e um ventilador.
Qual queijo você quer? (2011), com roteiro e direção de Cíntia Domit Bittar (imagem: divulgação)

Julia Katharine, diretora de Tea for two (2018)

"Minha recomendação é Das tripas coração (1982), da Ana Carolina. Assisti pela primeira vez na extinta TV Manchete, e fiquei maravilhada pela poética transgressora do filme. Revi recentemente e penso que ele segue atual e transgressor, o que me faz pensar no pouco que evoluímos e no retrocesso que estamos vivendo."

Um homem e duas mulheres estão sentados em um banco de igreja. O homem é barbudo e tem cabelos pretos. A mulher do canto está lendo a Bíblia.
Das tripas coração (1982), da Ana Carolina (imagem: divulgação)

Tata Amaral, diretora de Sequestro relâmpago (2018)

"Os homens que eu tive, de Teresa Trautman, estreou em 1973 com enorme sucesso de público. Pity, a protagonista, é uma mulher libertária, de vida afetiva autônoma e além do casamento. O filme narra seu cotidiano e suas aventuras, invertendo a lógica das personagens femininas da época, que eram objetificadas e apresentadas como um apêndice das personagens masculinas. Era o auge da ditadura civil militar! Se por um lado o pensamento moralista e machista era hegemônico, as obras de arte e a imprensa expunham como nunca o corpo das mulheres. O filme de Teresa vai na contramão dessa tendência. A narrativa fluente e delicada não traz nenhuma cena fortemente sexualizada. Mesmo assim, por tratar da vida afetiva de uma mulher, o filme foi censurado e retirado de cartaz, interrompendo sua carreira de sucesso. A ditadura também puniu Teresa por ousar entrar em cartaz com um filme sobre afetividade feminina e a impediu de trabalhar até o final do regime. Os homens que eu tive é um filme que precisa ser visto e revisto. É até hoje contemporâneo e inscreveu Teresa entre os grandes nomes do cinema brasileiro."

Viviane Ferreira, diretora de Um dia com Jerusa (2020)

"Roteirizado e dirigido por Larissa Fulana de Tal, Cinzas (2015) é, na minha concepção, um filme muito importante para o audiovisual brasileiro. A realizadora demonstra uma sensibilidade narrativa apaixonante ao demonstrar a potência das mulheres negras a partir do suporte que elas garantem no cotidiano do companheiro, nos fazendo refletir sobre reciprocidade nas relações, e sobre responsabilidade afetiva nas relações entre homens e mulheres negras. A fotografia, montagem e trilha sonora propostas no filme intencionam dialogar com uma audiência jovem. Assim, a obra chama para si a responsabilidade de contribuir com o ideal de que homens e mulheres negras mais jovens escolham se relacionar entre si com base na reciprocidade cotidiana. É um filme de muitas camadas, e pelo qual sigo nutrindo muita paixão e encantamento. Por isso indico para todas as pessoas."

Homem negro está olhando para a frente, sério. Ele usa os cabelos bem curtos, quase raspados.
Cinzas (2015), roteirizado e dirigido por Larissa Fulana de Tal (imagem: divulgação)
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