1.8.2020. O verão europeu cauteriza os rombos neste coração gelado. Abraçar os dias de hoje é sentir saudade daquilo que nem vivi...

Um ano se passou desde minha chegada à Alemanha. Um ano desde minha percepção em agradecer por ter nascido pobre, poucos meses depois da história das Stolpersteine, e, hoje, este texto encerra um dos pedaços mais bonitos da minha trajetória. O último texto da coluna #DaQuebradaProMundo é sobre recomeços. É sobre wanderlust e auswandern. É também sobre os espaços que abrigam o sonhar.

Da Quebrada Pro Mundo (imagem: Thierry Lucas)

O mundo vira de ponta-cabeça enquanto nós observamos. Do meu ponto de vista, já era evidente que um moleque de favela não passaria ileso. A tragédia se vestiu com sua roupa mais psicodélica e me entregou a beldade que tanto aprecio: uma boa história para contar.

Eu desisti do meu país? Sim e não ao mesmo tempo. Mas peraí que essa história é complexa. Deixe-me explicar.

A bolsa de trabalho social voluntário que eu ganhei e me trouxe para a Alemanha foi cancelada. No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o novo coronavírus era uma pandemia, e nesse mesmo dia os 50 bolsistas do AFS (antiga organização) tiveram seus contratos interrompidos – e, teoricamente, teriam de voltar para casa. Teriam, mas eu não fui.

Voltar para o Brasil significaria estar de volta para a minha favela. À margem de tudo que é direito humano, próximo de tudo que é problema. Como meu irmão-poeta Chico diria, “é a democracia morrendo sem nem ter sido apresentada pra quebrada”. E foi pensando na minha história, no meu futuro e no futuro da minha família que eu fiz um corre para ficar aqui, nem que seja só um pouco mais.

Eu tive “sorte”. Utilizei das minhas habilidades periféricas para levantar informações e encontrei uma organização na minha cidade. Coincidentemente, essa organização concede bolsas para o trabalho social que eu já realizava, que é o trabalho com crianças com deficiência. Eu tive “sorte”. Por ter entrado em contato com eles quando ninguém estava aplicando para uma bolsa – no meio da crise do coronavírus –, eles não demoraram em me contratar. Antes mesmo de a primeira organização enviar o contrato cancelado, eu já estava com um novo contrato em mãos. Isso quer dizer que, agora, até 31 de janeiro de 2021, estarei na Alemanha. Eu tive “sorte”.

Mas por que uma sorte entre aspas? O que eu quero dizer com isso? Essa dita “sorte” de estar na Alemanha neste momento delicado me entregou o pensamento mais devastador da minha vida: eu desisti do meu país. E, para explicar esse pensamento, eu gostaria de introduzir um ditado alemão:

"Die erste Generation erntete den Tod,
die zweite die Not,
die dritte das Brot"

 

"A primeira geração colheu a morte,
a segunda colheu o sofrimento,
a terceira colheu o pão".

A cena alcançou meus olhos e o ditado se transformou em poesia. Amor preto diaspórico.
Uma criança negra de pele clara. Uma mulher negra de pele escura. Na cabeça do filho, o carinho da mãe era tudo de que ele precisava. No coração da mãe, uma resposta em português era tudo que ela padecia... Eu senti medo.

Enxerguei a morte do ditado no olhar marejado daquela mãe. Ela dizia algo em português, e o filho se recusava em responder na mesma língua. Só falava alemão. A cada frase, e a cada resposta daquela interação, eu fui sentindo mais e mais forte: migrar é desistir.

O olhar marejado daquela mãe me remeteu à desistência. A morte das raízes. A consciência de que será necessário abdicar de uma língua, de uma cultura, de um país; tudo para o bem dessa criança. Por um futuro melhor para os nossos, nós abdicamos de um presente sorridente.

Do filho, as poucas palavras em português carregadas de sotaque me lembravam o sofrimento. Não quer dizer que ele não falava a língua porque não queria. O olhar do menino transparecia amor, vontade. Mas, toda vez que ele tentava dizer uma palavra, ele mesmo sentia que a pronunciação não era a mesma que a da mãe. Ficava calado. Só falava alemão. Esse tal sofrimento viria em diversas maneiras... A realeza negra da criança ainda sofrerá ataques racistas durante uma vida toda. Sofrerá por não ter um sobrenome alemão. Sofrerá por “não ser alemão”. Sofrerá por “não ser brasileiro”.

E a geração seguinte? Misturado nesse caldeirão de emoções, tentei imaginar um futuro possível para aquela família. Sucesso e reconhecimento na sociedade alemã? Esses só virão se os laços com a cultura e a língua brasileira se desvencilharem. Um futuro brilhante no país significa: ser e estar aqui. Não cabe a sensação de estrangeirismo. E dentro dessa analogia, para que isso aconteça, é necessário que a primeira geração desista.

Desistir do país? Precisa mesmo ser tão dramático assim? Eu acredito que sim. Porém, gostaria de pensar nessa migração como uma “desistência calculada”.

A decisão de transferir suas raízes para outro país é, de certo modo, desistir de cuidar de uma horta e partir em busca de nova terra fértil.

Falando do meu ponto de vista, viver a cultura de outro país como um “convidado” é uma experiência enriquecedora para a alma. Propor-se a entender uma língua, depois propor-se a entender uma cultura, os trejeitos, os costumes. Até que isso extrapola, você não se sente mais convidado, e isso começa a fazer parte de você.

E não que o faça menos brasileiro ou mais alemão. Mas, sim, brasileiro e um pouco alemão. Com o tempo, brasileiro e meio alemão. Até chegar ao brasileiro e quase alemão. Quase.

É aí que a palavra mais sutil machuca e nos faz repensar uma vida inteira. Não existe quase quando o assunto é esse “ser do passaporte”. Você nunca será. E, mesmo se for, precisará desistir do seu país. Literalmente. Se você quiser ter uma cidadania alemã, você precisa abdicar da sua cidadania brasileira.

Migrar é abandonar a sua casa ao vê-la pegando fogo. É desistir de uma parte fundamental da sua personalidade. Ser um estrangeiro é uma das marcas que nenhum curso de idioma ajusta. Por mais que você lute 30 anos tentando entender a cultura, sempre terá algum pequeno meme do jornal nacional alemão de 1984 que você não entende. E essa sensação de não ser – de não “culturar” o país em que se vive –, para mim, é uma desistência calculada. No final das contas, para muita gente, ainda vale a pena.

E eu escrevo isso consciente das minhas desistências também. Estou buscando uma oportunidade de ficar aqui possivelmente por mais tempo. Com profundidade, me corta o coração sair mais tarde do trabalho e ver que a “tiazinha da limpeza” tem um carro que custa o valor da minha casa na favela. Enquanto minha mãe, também a “tiazinha da limpeza”, sofreu uma vida inteira para pagar o financiamento do nosso barraco na favela... A desigualdade machuca, mas a gente segue.

Infelizmente, pensar num Brasil nos dias de hoje na verdade é pensar num Brasil que queremos para o amanhã. Não existe Brasil possível no agora. O que posso fazer é lutar por futuros possíveis e imaginativos. E, para finalizar esta coluna com uma poeticidade brasileiro-alemã, eu gostaria de apresentar os dois termos citados no começo.

O primeiro termo é wanderlust (a palavra alemã mais popular entre os hipsters), um desejo irresistível ou uma grandiosa vontade de explorar o mundo; um forte anseio, ímpeto de vagar por aí. O segundo é auswandern: o ato de deixar a sua casa para sempre (e procurar uma nova casa noutro país); emigrar.

Eu desisti do meu país? Sim. Calculadamente. Assim como na língua alemã imigrar e viajar derivam do mesmo verbo: wandern (caminhar). Por agora essa será a terra das minhas oportunidades. O futuro? Assim como esta lindíssima citação, ele pertence ao caminhar.

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” (Fernando Birri)

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Na imagem, há uma placa que compõe o projeto "Stolpersteine". Nessa placa, colocada entre pedras do asfalto, existem algumas informações gravadas em alemão: a expressão "aqui viveu", além do nome da vítima e data de nascimento, por exemplo.

Stolpersteine e a memória que fica

Alexandre Ribeiro debruça-se sobre o projeto do artista alemão Gunter Demnig e reflete sobre o processo de ressignificação de narrativas