A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Toda vez que (re)leio o texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, percorre o meu corpo uma vibração intensa que me chega à garganta como pulsão de uma vida por ser narrada, como se eu pudesse ouvir o coro de vozes que Gloria Anzaldúa convoca com suas palavras e nele me fundisse. As leituras realizadas em sala de aula, nos cursos que ministro, me mobilizam ainda mais por possibilitarem reviver em/com minhas alunas o impacto primeiro que esse texto provoca. Algo desse poder encantatório de (auto)rreflexão e enraizamento que emana da carta de Anzaldúa também figura na literatura de Marina Farias. Os textos a seguir apresentados, quase todos inéditos, foram produzidos no abissal contexto da pandemia de covid-19 e tornam concreta uma senda por onde foi/é possível sentir a existência de uma mulher preta em movimento. Como resposta à pergunta contestadora “Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever”, feita por Anzaldúa, podemos ler os contos de Marina Farias e vislumbrar algo do processo de escrita atravessado pelas demandas de maternar dois – lindos – meninos, desenvolver uma pesquisa e vida acadêmica, gerir o funcionamento de um lar, de uma família, manter-se sã no adoecedor cenário de um Brasil em que se atualizam e refinam seculares políticas de morte. Como traço que percorre os textos “o futuro é preta”, “muito prazer, o meu nome é branquitude” e “o segundo nome de nenê”, constatamos a escolha pela fabulação como estratégia de fala que insinua o exercício de construção de projetos de liberdade integrante ontem e hoje das experiências do povo negro em diáspora. A representação de maternidades circunscritas a uma força maior da linhagem feminina das personagens se destaca a meu ver como ponto que ancora a necessária imaginação de um futuro caracterizado pela “ética coletiva” e pela assunção da “humanidade inegociável” das pessoas negras. Convido vocês ao encontro com essa literatura que se arrisca a semear uma utopia de mundo por vir, realizável apenas como ressonância do ancestral.  

Imagem em preto e branco do rosto da autora. Seus cabelos encaracolados cobrem o lado esquerdo de cima a baixo. Ela tem uma expressão séria.
A escritora Marina Farias (imagem: Acervo pessoal)

 

o futuro é preta

as luzes dos fogos de artifício, refletidas nas pupilas de pilar e transformadas por sua retina em estímulos nervosos chegaram ao resto do corpo e a fizeram sentir um leve arrepio nos cabelos macios da nuca naquela noite que marcava o início de uma nova década. a virada do ano era sempre um momento estranho, misturava a sensação de alegria com uma enorme saudade de algo que ela jamais havia vivido. contava só treze anos, mas carregava no corpo a sabedoria e as memórias de uma anciã. filha do cerrado, nascida entre as bordas da capital planejada que num passado não muito distante repelia pessoas como ela, entendeu desde muito cedo que a vida de agora era um oásis comparada ao que as suas mais velhas haviam passado naquela terra seca. sua mãe, avó e bisavó contavam histórias de outros tempos quando o centro de tudo ali era outro. bem pouca gente desfrutava, enquanto outras faziam a cidade acontecer. pra piorar, existia um verniz de merecimento e uma ideia de liberdade que não deixava ninguém sair muito do lugar. as histórias que ela ouvia falavam de um mundo real e por mais que pilar tivesse dificuldade em imaginar, sabia que era assim que tinha sido: uma pequena ilha, rodeada de terra vermelha por todos os lados, arquitetada em poucas linhas e muitos vazios. havia sim uma beleza nesse desenho, mas muitas vezes a frieza de tanto espaço desabitado dava um frio que chegava lá nos ossos e não tinha sol quente que esquentasse por dentro. ela achava difícil demais aceitar que a vida tinha sido assim por tanto tempo, mais de 60 anos desde que essa invisibilidade recaíra sobre a vida que existia para além das largas avenidas da área central. a miragem de um plano piloto.

foi ainda nos primeiros anos da década de 2020 que as coisas começaram a se movimentar e os eixos aparentemente fixos da cidade se deslocaram. depois daquele período, descrito por tantas vozes como apocalíptico, algo aconteceu na estrutura tombada da capital do país. em meio à maior crise sanitária, política, econômica e social do século 21, um grupo de mulheres ousou se insurgir. exaustas da dinâmica colonial que se repetia há séculos, decidiram não mais oferecer seus corpos e suas vidas para manter a hierarquia cruel que as lançava à morte. resolveram, então, parar. não seriam mais os braços, as pernas, os olhos, os músculos de outras pessoas que não viam nelas a dignidade de uma existência. não mais. se o mundo estava confrontado com a sua a vulnerabilidade e as dinâmicas, reproduzidas há séculos, estavam em esgotamento, elas reivindicariam os seus corpos. vestiriam as roupas de seus devires sem medo. aquele seria, enfim, um exercício profundo de liberdade. na manhã do dia dezoito de novembro de 2021, o vento deixou de soprar e a cidade-piloto parou.

as mais antigas dessas mulheres costumavam chamar de greve geral a revolta ocorrida há quarenta anos. pilar não contava a ninguém, mas achava graça das palavras greve geral. sentia que elas não davam conta de nomear a real beleza do que havia acontecido. tinha muito respeito por cada uma das mulheres, apesar de às vezes perceber os ruídos que ressoavam pelo intervalo de tempo de vidas tão diferentes e ainda tão iguais. o que importava, ela pensava desviando do pensamento as discordâncias, era a certeza de estar sendo, ela própria, a continuidade daquela revolução dançada – como gostava de chamar o fim de mundo de outrora. uma espécie de baile sobres os escombros que permitiu à vida não ser ceifada pela morte e nem pelo desencanto.

tudo aconteceu mais ou menos na velocidade do tempo da coragem. a cidade que funcionava à base da escassez de muitos para o bem-estar de poucos se deparou com o imenso vazio de si mesma. não havia viço entre as superquadras. a vida cartesiana creditada aos eixos alfanuméricos não era vida apartada dos corpos que possibilitavam tudo girar. se a gira era o movimento pulsante daquele enredo, não haveria movimento sem o corpo-motor dessa giragem.  senhoras da arribação, maria, sara, inês, ana, dalva e eva deslizaram pelas brechas da impossibilidade.

depois que a cidade-plano estancou, as comunidades de mulheres criadas a partir da gira-fundamento se espalharam pelo espaço urbano antes desigual. naqueles novos ajuntamentos, os arranjos eram múltiplos, mas a ética coletiva tinha suas vigas bastante firmes sobre a ideia radical de uma humanidade inegociável. uma rasura no passado, uma presença no presente e um umbral aberto para o futuro. pilar tinha em si um pouco de cada uma dessas mulheres girantes e era por elas, mas também pelas que ainda entrariam na roda, que precisava seguir fazendo o que melhor sabia: estar viva.

naquele primeiro amanhecer de 2063, muita coisa ainda estava a ser feita. mas pilar sabia, não fosse a bravura de mulheres de sua linhagem, o arranjo concretado da cidade-modelo jamais teria se movimentado. diante do novo ano e de mais uma oportunidade de refazimento do mundo, ela sorriu. os dentes muito brancos, em contraste com o escuro dourado de sua pele reluzida pelos clarões de luz da festa davam a ela uma aura sobrenatural, etérea. parecia mesmo que pilar vinha de outro tempo, uma enviada do amanhã. a sua existência era a alegoria de um porvir que já se anunciava. um tempo-presente em que a margem havia implodido as fronteiras e se apropriado do que sempre fora: o seu próprio centro. ela sorria porque tinha a mais nítida certeza de que era parte de um futuro. um futuro que não mais poderia ser adiado porque era – e agora tudo fazia sentido na sua cabeça – um futuro ancestral.

o segundo nome de nenê

as mãos trêmulas de elza seguraram o bebê que acabara de nascer. antes que o corpinho lambuzado de sangue e vérnix encostasse o chão de terra batida, ela aparou a criança e a encaixou no meio dos seios. o choro silencioso da mãe, entrecortado pelo choro recém-nascido da filha, ambos abafados pelos trovões que anunciavam a chuva depois de cinco anos de estiagem, não acordaram ninguém e as duas permaneceram a sós, como haveria de ser durante o tempo de uma vida. dos mamilos escuros de elza brotava o líquido translúcido que alimentaria a vida insistente que teimava em chegar. elza estava assustada e o susto vinha desde aproximadamente 10 luas cheias. o nascimento da menina, em casa, no meio de uma madrugada de fevereiro do ano de 1990, tinha sido um desfecho ainda mais inesperado para essa espera que não fora planejada. cerca de oito meses antes, adelmo havia prometido voltar rápido de são paulo, tão logo conseguisse juntar algum dinheiro para que começassem a construir a casinha de cimento no pedaço de terra que elza herdara de sua mãe. ainda em vida, dona maria decidiu dividir seu sítio com as três filhas: rosa, elza e domingas. ela sabia que aquela terra sempre fora dela, ali nasceu, trabalhou, teve suas meninas, envelheceu. mas precisou esperar quase a vida toda para ter em mãos um documento que dizia que ela era assentada da reforma agrária do estado da paraíba. que aquele pedaço de chão era dela mesmo, fato agora confirmado pelo estado, esse com ‘e’ maiúsculo nos papéis oficiais e presença quase inexistente na vida daquelas mulheres.

adelmo não voltou, nem dava notícias há muitos dias, semanas, meses inteiros de sumiço. e a barriga de elza cresceu junto com a preocupação sobre como iria criar aquela criança ali, sozinha, tendo de trabalhar na roça, cuidar dos bichos, sobreviver à seca que não se apaziguava com as chuvas cada vez menos frequentes. não tardou para que decidisse ir atrás do pai da menina, que já contava quase cinco meses e ainda não tinha nome. era chamada apenas de nenê pela mãe e sempre sorria banguela ao ouvir a pronúncia carinhosa das duas sílabas que a identificavam como gente. nenê havia se tornado um xodó para elza, um respiro de vida, um encantamento. tanto que a mulher não conseguia escolher um nome para a menina porque achava que nenhum chegava perto da boniteza de sua cria, nenhum dava conta de dizer em palavras o transbordamento que acontecia no peito de elza depois que nenê chegou.

cansada da espera pelas promessas que não vingaram, elza encheu a mala antiga com suas poucas mudas roupas e todas as de nenê, retirou da caixa de sapato guardada em cima do armário de ferro as economias dos últimos anos, comprou uma passagem de ônibus para a noite seguinte, pediu a benção à mãe e partiu. três dias depois desceu na rodoviária do tietê, obstinada a encontrar um rumo na cidade que parecia engolir quem nela chegava. era tanta novidade naquele mar de prédios e corpos que elza rapidamente se esqueceu que tinha ido parar ali à procura de adelmo, e a lembrança daquele homem que havia lhe prometido o mundo se esvaiu feito a garoa que gelava seu corpo acostumado à quentura do cariri. sem muita demora, a vida deu seu jeito de achar outro rumo para a existência de elza e nenê, e as duas se aprumaram como conseguiram. primeiro, morando de favor na casa de uma conhecida da tia de dona maria no bairro de perus. dias difíceis elza precisou enfrentar, até que, depois de muito caminhar com nenê escanchada em seus quadris, as duas acharam pouso no bairro do pari, às margens do rio tietê. ali, elza conseguiu emprego numa fábrica de roupas íntimas, aprendeu a costurar, descobriu que tinha jeito pro ofício e os anos se passaram, atravessados por muito trabalho, pouco dinheiro, mas uma modesta felicidade que fazia contrastar o sorriso branco, agora cheio de dentes, com a pele escura de nenê.

 

no universo que criou para sobreviver junto com a filha, elza abdicou de alguns dos contratos sociais vigentes e simplesmente decidiu que não registraria a menina em cartório. conseguiu manter esse acordo consigo mesma até o momento em que, questionada pela própria nenê, se deu conta de que era hora de a menina começar a frequentar a escola. com oito anos, nenê já havia aprendido a ler e escrever sozinha, graças à enorme curiosidade que tinha com cada gibi, livro, revista, jornal ou qualquer papel escrito que lhe chegasse às vistas. cada toco de lápis ou caneta bic estourada viravam verdadeiros tesouros nas mãos da menina que, torcendo a língua no canto da boca, começara a desenhar os primeiros rascunhos de vogais, consoantes, frases, versos. um amontoado de palavras que lhe vinham à mente e não cabiam dentro de si. nenê tinha lido num papel velho, pregado num poste da rua perto de casa a seguinte frase ‘tem coisa que só sai da gente por escrito’. e, de alguma maneira, a menina levou aquilo como um lema a ser perseguido incansavelmente. essa autonomia era apenas um primeiro sinal da sagacidade de quem nasce já sabendo o caminho a ser trilhado, respeitando as encruzilhadas e demonstrando a força torrencial do trovão que anunciara a sua chegada. numa conversa com a filha, elza explicou, não sem um pingo de tristeza, que para ir à escola a criança precisaria escolher um outro nome para si. com uma desenvoltura que surpreendeu a mãe, nenê disse que já pensava sobre isso há algum tempo e, inclusive, já sabia o nome pelo qual gostaria de ser chamada dali em diante. contou então a história de como escolheu o seu nome. ou de como havia sido escolhida por ele.

– sabe, mainha, desde que conheci josué, aquele menino magrinho filho de dona judite sapateira que mora ali na rua santa rita, eu mais ele estamos caminhando pelas ruas aqui das redondezas para descobrir porque esse lugar tem tanta fábrica de roupa. e aí que a gente conversou com seu gaspar, o português da padaria, e descobrimos que muitos anos antes as redondezas daqui de onde a gente vive foram uma favela. a senhora sabe o que é favela, minha mãe?

– nenê , tu tá cheia de história, menina... favela é lugar onde os pobres ficam abandonados, vivendo num miserê danado, jogados à própria sorte. – respondeu elza sem muita paciência pras invenciones da menina que sempre ia longe demais, tanto nas caminhadas com josué quanto nas perguntas de sua cabeça inquieta. nenê era esse furacão de questionamento que estava sempre além do que a mãe conhecia e sabia responder.

– pois é, mainha, parece que favela era lugar de gente pobre viver, às vezes sem água, muitas vezes sem comida, mas quase sempre com muitos sonhos. essa favela que seu gaspar contou pra gente foi uma das primeiras favelas daqui de são paulo, foi bem grandona, durou foi muitos anos, mas destruíram pra construir o estádio e esse tanto de fábrica de tecido e loja de roupa, inclusive a que a senhora trabalha, viu? a senhora trabalha em cima da casa de um monte de gente pobre que saiu daqui sem saber pra onde ir.  – e riu da cara de brava da mãe com a sua provocação.

– menina, não me aperreie com suas lorotas. quando cheguei aqui não tinha favela nenhuma, eu não vivo em cima da cabeça de seu ninguém. deixe de história e venha jantar.

– mas, minha mãe, espere eu terminar minha história? é que nessa favela, hoje soterrada por aquele estádio de futebol grandão, sabe? nessa favela, de nome canindé, viveu uma mulher que do mesmo jeitinho que eu, gostava de livro. e que nem eu, ela também usava cotoco de lápis e papel velho pra escrever um pouco disso que as pessoas dizem que é a vida. segundo dona paloma, da fábrica de roupa lá do fim da rua cachoeira, essa mulher era preta da cor do carvão, tinha porte e elegância de rainha. ela escreveu foi muitos livros, viajou o mundo, ficou famosa com as letras que desenhou nos pedaços de papel que encontrava no lixão. ela escreveu foi livro, minha mãe. livro! depois que eu fiquei sabendo que essa mulher catava lixo e escrevia poesia, veja a senhora como pode alguém achar beleza no resto dos outros? como pode alguém fazer dessa vida de abandono um treco bonito que emociona quem lê? depois que eu soube disso, decidi que meu nome tava escolhido. eu quero ter o mesmo nome dessa mulher, mainha, que essa mulher era escura que nem a gente, ela era parecida demais com nós, mainha. e aí quem sabe não posso ser que nem ela quando for crescida e escrever um livro bonito contando da nossa vida, um livro que chegue lá na paraíba, no sítio, e encha minha vó e minhas tias de orgulho? um livro que faça o nosso caminho de volta. só penso no tamanho do sonho que seria ter minhas palavras desenhadas num papel que viaje o mundo, mainha.

elza nunca se acostumara a lidar com a sensibilidade que nenê derramava sobre ela em muitos momentos desde que aprendera a falar e se comunicar de maneira tão afetuosa. árida como a terra de onde tinha vindo, sentiu os olhos arderem com as lágrimas escondidas na represa que havia dentro de si há tantos anos. precisara endurecer o coração como barro seco para sobreviver. incapaz de aceitar a emoção que embargaria a sua voz nos próximos segundos daquela conversa, perguntou ligeiro, enquanto virava o rosto com a desculpa de mexer a panela de sopa da janta.

–  e que nome essa mulher tinha, nenê? que nome era esse?

nenê, sem demorar mais do que um segundo, respondeu com um sorriso na voz, marca inconfundível de sua satisfação. sorriso que transbordava na boca inteira e subia até os olhos impregnados de futuro:

– eu quero me chamar carolina, mainha. – e repetiu pausadamente as quatros sílabas, que agora substituiríam o seu nome-afeto, escolhido pela mãe, pelo nome-coragem escolhido por si mesma: ca-ro-li-na.

meu nome é branquitude

muito desprazer, meu nome é branquitude.

nasci aqui nessa terra há aproximadamente 520 anos, muito embora já existisse lá no meu norte, lugar que sempre julguei ser o centro do mundo. quando desembarquei nessas paragens, submeti com violência os que aqui estavam, os que aqui sempre estiveram. acreditei que não tinham alma, acreditei que poderiam ser dizimados, duvidei de sua capacidade de ser, ao mesmo tempo, humano e natureza, gente e divindade. pensei que estaria ilesa à dor que infligi.

certa de minha imunidade, sequestrei povos que habitavam o outro lado do mar. violei seus corpos, mentes, casas, crenças. estuprei suas mulheres, matei os seus homens, desesperancei as suas crianças.

enquanto me julgava humana, enquanto perpetuava a minha norma, destituí de humanidade

tudo o que não fui capaz de compreender. a minha incompreensão me fazia crer que as sevícias causadas por mim jamais rasgariam a minha pele. durante mais de cinco séculos fingi não ver a dimensão da ferida que criei.  até que o menino miguel, sozinho, se desequilibrou e caiu do nono andar do prédio sem que mirtes tivesse a chance de ampará-lo em seus braços.

e então descobri na madame um espelho. mirei, estranhando a imagem que vi com as vistas ainda embaçadas pela miopia de meus tão sólidos privilégios. atrasada, anacrônica, mirei aquele reflexo e me vi. percebi que sou branca. e que isso não diz respeito apenas à minha cor, mas ao lugar que ocupo no mundo. ao modo como enxergo a mim e aos outros, à maneira como existo, como me projeto, me protejo e protejo aqueles que são iguais a mim. um corpo escuro que tomba, seja do prédio, seja pelo tiro, seja sem ar, salva o meu corpo claro de tombar.

urge
reeducar o olhar.
desobstruir os ouvidos.
saber calar.
saber falar.
movimentar a estrutura rígida, sem heroísmos.
suportar o ínfimo desconforto.
renegar a culpa.
abraçar a responsabilidade.
demolir o mundo.
retirar o mofo.
experimentar novas existências.
afetar-se.

 

Marina Farias é mulher preta, mãe e escritora. Graduada, mestra e doutoranda em literatura brasileira pela Universidade de Brasília, pesquisa literaturas de autoria feminina negra como tecnologias para o refazimento de mundos. Atua como revisora, preparadora e cuidadora de textos. Publicou na coletânea Carolinas: A nova geração de escritoras negras brasileiras, organizada pela Festa Literária das Periferias (Flup), em 2021.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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