A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Quais etnias indígenas localizadas no Sul do Brasil você conhece? Em que lugar do seu sistema-mundo estão as histórias, as lutas, os saberes e as produções artísticas desses povos? A sociedade Kaingáng é constituída pelo dualismo entre os clãs Kairu e Kamé. É a essa última linhagem, de guerreiros impetuosos e valentes, cuja força vem do Sol, que pertence a escritora, arte-educadora e artista plástica Vãngri Kaingáng, nascida na aldeia de Ligeiro, no município de Tapejara (RS). Em sua retomada do território da literatura brasileira, Vãngri grafa uma poética que coloca em suspensão os sentidos com que a colonialidade preenche o signo mundo, sublinhando as dimensões múltiplas e complexas que constituem, milenarmente, o mundo que lhe é próprio e que existe para além dos limites da categoria de ficção.

Enraizado em seu pertencimento étnico, bem como no combate pelo reconhecimento da dignidade do povo Kaingáng, o trabalho de Vãngri como escritora aciona recursos estratégicos de quem guerreia assentada nos saberes ancestrais da oralidade. Nessa direção, em seus livros Jóty, o tamanduá (Global, 2010) e Estrela kaingáng: a lenda do primeiro pajé (Biruta, 2014), reconta histórias que compõem a cosmologia de seu povo, dando a ver um entrelace de relações, por meio das quais os espíritos antigos que habitam os seres e elementos da natureza se expressam e orientam os caminhos kaingáng.

Aqui, compartilhamos três poemas inéditos de Vãngri Kaingáng, a saber, “Uma lembrança valiosa”, “Guerreiro da aldeia do frio” e “Cachoeira branca”. Temos, por meio deles, a oportunidade de ouvir a dicção subjetiva da autora delicadamente tecida com imagens que evocam a memória-guiança de seus mais velhos, o amor como alimento do corpo-espírito cansado da batalha e as transmutações do sujeito lírico que se funde em cachoeira. Os arranjos das palavras produzem beleza e, certamente, suscitam outras muitas palavras, reflexões e afetos; contudo, os versos de Vãngri também parecem fazer ecoar um lugar de silêncio interior. É esse um lugar, conforme afirma o filósofo Ailton Krenak, preservado pelos povos que resistiram, com muita força e coragem, à captura branca de fazer utilitário o sentido da vida. 

A escritora sorri para a foto. Ela está com uma blusinha e uma bermuda pretos e enfeites feitos com penas estão nos seus cabelos e caídos ao lado do corpo. O rosto tem uma linha vermelha como decoração.
A escritora Vãngri Kaingáng (imagem: acervo da autora)

Uma lembrança valiosa

Caro mestre Velho Dore.
Lembrei de ti, num momento difícil…
Desses momentos, em que não vemos saída.
E que a vida
Nos faz uma surpresa, nas curvas do caminho.

Pensei como seriam tuas palavras de encorajamento
E da força que tua voz carrega…
Pareceu-me te enxergar                  

Sentado à sombra do mato
Gaita amiga velha no peito
Escorada no coração

O que me dirias?
E pareceu-me então te escutar
Dirias       

Coragem guria!
Não te entrega pra guerra.
Teu sangue e mais forte, é sangue do povo Kaingáng.
Não perde a pelêia.
Não baixe a cabeça agora no fim.
E grita bem alto, que somos valentes!

Se somos bugres?
Não
Mas sim
Kaingáng e Guaranis …
Que montamos cavalos.
E que comemos carne na brasa do fogo de chão

Escuta esse teu parente de querência de solo e de chão.
Tu é a Kaingáng mais linda que vi, mais brava e chucra.
Mais sempre quero te ver vencendo!                                                                                                                  

Perder é pra fracos!                                                                               

E somos Kaingáng
Gaúchos
Peões e prendas, índios e brancos.
Valentes como eu e você guria.

Levante a cabeça
Agora findou
Porque nosso povo
nunca terminou!!

O desenho mostra a face de um indígena, com o cabelo preto em formato de cuia e a pele parda-avermelhada. Atrás dele, há um pôr-do-sol e um lago. Em perspectiva, podemos ver outro indígena.
Ilustração da escritora e artista visual Vãngri Kaingáng

Cachoeira branca

Quando eu chego em tua Aldeia
Meus pés descalçam no teu chão
Caminham certo em tua direção

E chego a teus pés cachoeira branca
Me atirando em teus braços frios
em teu meio acalmar meus temores.

Mergulho em teu mundo
Tão fundo...
Até que finalmente
Sou parte de ti
Tu és parte minha
E juntas nós somos parte de tudo

Ouvir, ver e sentir tua força
Batendo nas pedras
Batendo nas águas
Batendo no chão
Batendo em meu corpo

Quanta força descomunal
E também quanta beleza

Teu frio me conquistou
Em todos os dias em que estive a teus pés
Cachoeira branca

Me banhei em tuas águas,
Tão claras e cristalinas

Em cada pedra que pisei
Em cada poço onde nadei
Todas as quedas, tanta beleza
Toda a natureza ao teu redor
E tudo isso te digo sorrindo

Porque hoje eu sei
E tu também sabes

Que sou parte tua
E tu és parte minha
E juntas nós somos parte de tudo.

Guerreiro da aldeia do frio

Guerreiro da Aldeia do frio
Senti teu inverno chegar

Teu frio fez meu fogo abrasar
Tua Calma, em mim,
Acalmou meu pensar

Tua lua me fez amansar devagar
Nas frias noites, teu frio meu calor encontrar

Guerreiro da Aldeia do frio
Senti teu inverno chegar

Guerreiro do vento do gelo das águas
Porque veio, aqui me encontrar!

Foi logo chegando
Sem nem pedir licença
Em minha frente se postou
Olhar manso gestos calmos

Eu fogo e terra,
Brabeza em beleza
Sentidos voltados pra guerra,
Clans de gerações
Que nunca perdem
Nunca falham                                                            
Nunca dormem

Guerreiro da Aldeia do frio
senti teu inverno chegar

Senti meus sentidos falharem
Ao olhar do guerreiro da noite do frio
Para mim
Sério desafio

Mas seu olhar
Calmo e sereno

Descobriu minha alma                                                                                           
mirou
Atirou
Me ganhou.

Chega de guerra, chega de luta, chega de frio.

Vãngri Kaingáng é escritora e artista visual. Em literatura, escreveu Estrela Kaingáng – a lenda do primeiro pajé e Jóty, o tamanduá, e participou da Antologia Indígena, junto a outros autores do Núcleo de Escritores Indígenas (NEArIn), do Instituto Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi). É também educadora bilíngue no Instituto Kaingáng, no Rio Grande do Sul, tendo atuado com arte-educação (produção de material didático) na Escola Estadual Fág Kawá, em conjunto com o Ponto de Cultura Indígena Kanhgág Jãre. Cursa a graduação em medicina na Universidade Federal de Pelotas (RS).

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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