A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Enquanto escrevo esta ligeira apresentação da literatura encantatória de Thiago Costa, cai uma chuva vibrante em João Pessoa. A água em seu ciclo de perfeição busca caminhos e penetra no pedaço de terra que tenho em meu quintal, fazendo subir o cheiro bom de mato molhado. Verdeja por aqui. Trago Obé em minhas mãos, o primeiro livro de Thiago, publicado em 2021 pelo selo da Festa do livro internacional da Paraíba (Flit Edições). Tal qual o seu título indica – o nome significa “faca” na liturgia do candomblé –, o livro reúne uma série de poemas e orikis que, assim como a chuva que se faz paisagem sonora deste texto, provocam cesuras em nosso tempo-ordem-linear das coisas. O filho de Odé, já atuante no campo das artes visuais, lança sua flecha e estreia como escritor num gesto que credita potência à linguagem verbal, se, contudo, alicerçada nos volteios, nas elipses e magias da oralidade afro-brasileira. Desse modo, ainda que possamos constatar no conjunto de poemas que configuram o livro experimentações que derivam de um diálogo com certos recursos estéticos da tradição literária canônica brasileira, o que se destaca são os textos que reivindicam o estatuto de orikis e, nessa direção, se colocam para além da literatura em seu sentido ocidental.

Contra um fundo escuro, vemos a imagem do escritor recortada um pouco abaixo dos ombros. Thiago é um homem negro, com cabelo bem curto, barba e bigode.
O escritor Thiago Costa (imagem: Acervo pessoal)

Os orikis orixás que aqui compartilhamos devem ser lidos, portanto, como manifestações poéticas que têm o saber de encantar, que nos convocam a (re)conhecer a beleza e o poder das forças da natureza na orquestração de nossas existências, no direcionamento de nossos destinos. Como suplemento dos poemas de Thiago que dão a ver a dureza e a solitude do trajeto de artistas negres no Brasil, seus orikis, em consonância com a origem africana desse gênero, elaboram imagens que apresentam e reverenciam o universo cosmológico do candomblé e dão corpo à certeza de companhia que a fé em Orixá traz. Os textos são cortantes, mas não ferem – ainda mais – esse nosso corpo combalido pelas guerras cotidianas. Ao contrário disso, eles cortam e remodelam a linguagem para que nos alimentemos do vigor criativo que generosamente esse nosso irmão nos oferenda, assim como a água da chuva que, ao sulcar o pequeno intervalo de terra do meu quintal, rega e cria passagem para vida nova brotar. 

poemas de Obé

Em linhas pretas no fundo branco, um círculo está centralizado. Uma seta está abaixo dele e outra seta está acima.
Poema visual do livro Obé, de Thiago Costa

 

pediu vela preta
ficou na retaguarda
abriu a porta

nas encruzilhadas
do meu corpo
por sete vezes
repeti seu nome

menino travesso
boca de tudo
mensageiro do atlântico
falange oceânica
linha dos sete mares
pai da calunga maior

traçando correntezas
chove no teu chão
ao redor do sal
a onda mora

dono dos naufrágios
ouves o silêncio do mar
na escuridão da clareza
continentes deslocados
catimbos cruzados
ronda marítima
nós desfeitos

o mar aponta

para as âncoras
do agora

 

 

 

segredo me contou
com seu ofá atirou

traduziu as folhas
constelações desenhou
nosso destino encontrou

olho
preto-boi
penacho
vermelho-arara

dançou aguerê
forjou a lança
mostrou como se dança

ode a odé
odé arolê
curumim do ayê
caçador de mim

alfazema no olho
guiné no adoxo

oxóssi
sou teu cavalo
tua ave de aço
teus olhos na cidade

 

 

 

a cura é um lugar de passagem

 

Diagramado na vertical, lemos em letras grandes e pretas: KDAÉUMODÚ.
Poema visual do livro Obé, Thiago Costa

 

igbin
igbin
igbin

toca me toca
é sexta em mim

e
pa
babá
epa ba
epa
e

xirê final
lanterna final
afinal
por que te procuro
no final?

igbin
igbin
igbin

bastão
caramujo sabre
estrela de oito pontas

ajagunã
obocum
olocum
dacum
jobocum

 

 

 

trovejou na noite vermelha
teu machado aquecido de certeza
cruzou ori
mudou odú

te vejo pela sombra
na réstea da porta

quanto tu chegas
sinto tua quentura
de olho aberto

no clarão
teu sino soa

xangô pilão
quiabo solidão

aganjú kabiesilé
tuas quartas me acendem
mesmo quando digo não

no avesso de ifá
do ventre de iê
filho do fogo do mar
tuas pedras me olham
guardam todos os segredos

kaô kaô kaô
senhor nagô
ilá de vulcão

 

 

 

primeiras primaveras
presságios agalopados

 

florescem os ibejis
cosme e damião
adoçam com mel
o nosso não

banho de folha
cocada pronta

nem o bicho pega
nem a yá segura
pega um erê
pra tu vê

 

Thiago Costa é artista transdisciplinar. Utiliza a poesia, o cinema e as artes visuais em seu trabalho. Entre seus interesses estão a insuficiência da linguagem, o desencanto, a memória, a invenção. Em literatura, lançou Obé; em cinema, roteirizou e dirigiu os curtas Santos imigrantes (2018), Axó (2019), Visitas (2020), Calunga maior (2021) e Axé meu amor (2022); nas artes visuais, é artista residente da associação cultural Pivô – Arte e Pesquisa e foi exibido em exposições individuais e coletivas. Também atua como curador – por exemplo, da mostra Moã de cinemas negros e indígenas, da qual é idealizador. No ciclo 2019-2010 do programa Rumos Itaú Cultural, foi selecionado com o projeto Igbákì.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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