A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Foi das mãos de meu amigo professor Gessé Almeida Araújo que recebi como presente Aos meus homens, o primeiro livro de Marcelo Ricardo, publicado pela editora Malê neste difícil 2021. Livro de muitos e bons poemas que coreografam cenas do corpo e do tempo a fim de dar a ver o cultivo do afeto entre homens negros. Obra que, em correspondência com a atuação de seu autor como performer, roteirista e diretor, tem como suplemento o filme Adé, conjunto de videopoemas alinhavados à tessitura da tradição africana por meio da elaboração de uma imagem terreiro de candomblé como espaço-fundamento-sagrado que respeita, acolhe e embala as dissidências sexuais e de gênero de seus integrantes.

A “oralitura” de Marcelo Ricardo traça uma contrapedagogia das masculinidades hegemônicas, explicitando a beleza do aprender com mulheres e a partir da vivência do feminino – tão soberana nas cosmopercepções africanas. Como aprofundamento disso, sua produção descortina de modo sensível as experiências complexas de subjetivação de homens negros no contexto de um país estruturalmente racista como o Brasil. Nessa direção, o peso da heterocisnormatividade ganha forma nos questionamentos do poema “Consentimento”: “Será que todos os homens sobre as mulheres / sentem suas frustrações molhar a mucosa / e seu pulsar desesperado do passado que a toca? [...] será que todo homem consente ser a violência do que te foi primeiro violado?”; o lirismo e a potência do amor entre homens ganham textura, cheiro e cor no poema “Gosto de ti e de tuas cicatrizes”: “[...] nas emendas de sua barriga aberta, / vejo as brechas dos teus órgãos / que não souberam esconder borboletas / nas ondulações da camiseta, teu rasgo no oblíquo, / que tentou camuflar entre o cós e os pentelhos [...]”; e os desafios de fabulação do próprio desejo e, por contiguidade, do desejo pela escrita, pulsam movimentos sinuosos no poema “A terceira perna”: “[...] foi que descobri que masturbação era imaginar e escrever fluido / só então eu li que a terceira perna da etun / cavucou o mundo, e achei o mais sensível do homem / a possibilidade de fabular a criação de seu desejo / a insígnia da mutação [...]”.

A dicção baiana do autor, audível no filme, também se inscreve nas paisagens e sociabilidades soteropolitanas que dançam as palavras. A dança, aliás, na poética de Marcelo Ricardo se alça à condição de senha para acesso à escrita assentada na ancestralidade, a qual, por sua vez, encoraja o gesto transgressor – se empreendido por pessoas negras – de habitar a literatura como casa. O autor, assim, converte a publicação das narrativas de sua comunidade em ato de carinho e cuidado e, na interlocução direta com ela, faz do livro-filme um convite ao retorno (primeiro) a um lar: “nesta mesa não senta o filho pródigo / mas para me alimentar de narrativas nossas / meu pai conta que minha avó dançava um candomblé / bonito / hoje eu danço porque casa é o lugar de voltar!”.

Neste mês de novembro, em que reverenciamos com maior vigor a luta histórica dos movimentos negros no Brasil, tenhamos o vislumbre dessa casa-ilê poeticamente tecida como devir de existência possível e plena.

Retrato do homem negro sentado em um banquinho. Vemos ele dos joelhos para cima, ele tem dreads, está de óculos de grau amarelos redondos, veste camisa branca sem mangas, calça azul e um lenço azul em volta do torso. Ele olha sério para a frente
Marcelo Ricardo (imagem: divulgação/Maiara Cerqueira)

A Terceira Perna

quando a perna de meu pai sucumbiu,
caiu na curta mentira:
não havia a terceira perna!
meu irmão já estava circuncidado de saber
e meu avô morreu sentado ao lado desta convicção

do tripé, ao fundo branco,
o escuro do meu corpo
revelado ao olhar de Mapplethorpe
sorri constrangendo as marcas do meu rosto
opondo-me a todos que me desmarcaram

certa feita minha mãe até marcou uma consulta,
por desencargo da consciência falópica
(ou falocêntrica)
do meu giro descontente de enlaçar um matrimônio
[de cavalo ou bull]
correndo foi que lasquei aos fundos,

pensava:

casar como botões
que sobram na roupa de um pretinho
de casar carinho com cansaço numa cama
eternamente rosa
a rotina de fast fodas com detox de pornô chinfrim
e vitamina grossa e gostosa com bigodin de prazer

foi que descobri que masturbação era imaginar e
escrever fluido
só então eu li que a terceira perna da etun
cavucou o mundo, e achei o mais sensível do homem
a possibilidade de fabular a criação do seu desejo,
a insígnia da mutação,
do contrário, se não houvesse a terceira perna
seria nada mais que meninos mutilados

Gosto de ti e tuas cicatrizes 

gosto de ti e tuas cicatrizes, homem
dessas que os olhos não me deixam desaperceber
pois enfeitam músculos e histórias

das fendas que anelam gentilmente seus dedos
às marcas que cascateam suturando sua pisada larga
imagino que esse rosto bonito,
já se estilhaçou
quebrando o espelho
mas, espero que sorria no visor do celular quando ler
“meu lindo”, “meu preto”

certamente suas mãos estremecerão tais quais as estrias
que alargam as suas axilas em abraços
ou que se esticam atrás do joelhos na ambição de ter
nas mãos um fruto

sei que em certo ponto do teu ori existem falhas do
ímpeto moleque que resguarda
nos arranhões de cerol porquê valeu ter vales na
superfície do próprio corpo

nas emendas de sua barriga aberta,
vejo as brechas dos teus órgãos

que não souberam esconder borboletas
nas ondulações da camiseta, teu rasgo no oblíquo,
que tentou camuflar entre o cós e os pentelhos

a fissura de teus lábios contam segredos de fechadura
na minha língua de palavras-chaves
é a senha esse risco na piscada do seu olhar
são pedaços que se reencontram no adeus que as
dores deixam ao passar

reparo nos deslocamentos dos teus ossos,
as reinvenções de tua pele
essa tua queloide que aquilomba em sua defesa
as curas em que te escreve o sagrado
brinco de procurar as protuberâncias de tua cabeça
acho as manchas brancas que despigmentam teu
permanente negro

gosto de tuas cicatrizes, homem,
pois são firmes molduras
por onde prima a obra de uma preta

Sankofilia 

eu voltei
para casa de meu pai
como ele fez ao meu avó
como meu avô queria, voltei

para entender de movimentos migratórios
para dizer de pousos distantes
voltei porque retorno é dança de quem vai
no tempo de quem fica

voltei e voltarei outras vezes,
dizendo como quem acabou de chegar
volto porque minha mãe mandou dizer
que é felicidade
ainda que rosto não diga contente
voltei pra não pagar para ver

e vi, que sankofa não é um coração enferrujado
mas o olhar do artesão que faz olhando para trás
da mãe que estende os lençóis no cercado e sabe porque
chegou amuado
sendo abraço para um coração maltratado da estrada

cabeça de mãe que me abençoe
pois eu voltarei, ainda que felicidade não estique os
músculos e a pele do meu rosto

em seu movimento de enrugar
como quando sorri meu pai
pai vive por ver a volta do filho
sabem que muitos não sobrevivem ao voltar

nesta mesa não senta o filho pródigo
mas para me alimentar de narrativas nossas
meu pai conta que minha avó dançava um candomblé
bonito
hoje eu danço porque casa é o lugar de voltar!

Adé

Graduando em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia, Marcelo Ricardo é bacharel em humanidades pelo Instituto de Humanidades, Artes, Ciências e suas Tecnologias - Milton Santos (IHAC), atua no segmento literário e na realização em audiovisual. Poeta e contista, venceu o concurso nacional da Juventude Literária da Editora Malê (RJ), sendo um dos finalistas baianos do prêmio. Já participou de diversas antologias poéticas da cidade, como o Projeto Enegrescência (2016), Sarau da Onça (2017) e da Editora Organismos (2017 e 2018), e lançou Aos meus homens (2021), seu livro de estreia em poesia, que faz parte do projeto "Adé" multimídia, que busca através das referências de comunidades-Terreiro falar sobre as relações entre homens.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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