A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Em alguma medida – e nisso há ressonâncias das proposições do teórico Giorgio Agamben –, ser contemporâneo implica a instauração da descontinuidade no próprio tempo, a coragem de fixar o olhar na sombra do presente e nele entrever outras temporalidades. Na fresta, que institui uma distância do contemporâneo e no mesmo gesto se perfaz contemporânea, parece estar a poesia da artista paulistana Daisy Serena. Partilhamos aqui poemas que reinventam imagens condizentes com o contemporâneo, sobretudo no que nele há de opressão, violência e genocídio de corpos subalternizados. Em diálogo implícito com algumas proposições teórico-críticas de autoras da diáspora negra (entre as possíveis, ouço ecos de Saidiya Hartman, em sua preocupação aporética de atribuir dignidade aos “sujeitos sem nome próprio” vítimas da colonialidade, ou, para ficar em dois exemplos, índices da discussão sobre o sadismo da branquitude tal como posta por tatiana nascimento), os poemas de Serena estabelecem instigantes articulações imagéticas, causais, sensoriais num procedimento que – assim como seu maravilhoso trabalho visual de colagens digitais – subverte a gramática da violência patriarcal e racista que fundamenta nossas relações. 

Contra um fundo cinzento, a autora, uma mulher negra de batom vermelho, é visualizada até pouco abaixo dos ombros. Ela olha para o lado e tem os cabelos pretos presos no alto da cabeça.
A escritora Daisy Serena (imagem: Acervo da autora)

Tensionando os limites do fazer literário, ao desvelar a (im)potência da poesia em face desses desmantelos do real, paradoxalmente, afirma-se o fazer poético como recurso para a sobrevivência, tal como podemos ver na reflexão sobre o amor desenhada no primeiro poema aqui publicado. Certo jogo de luz e sombra, de enunciação e silêncio, caracteriza a dicção do eu poético dos textos, sobretudo quando nos acercamos da figura da mãe, que tem o âmbito da intimidade e solitude do maternar como um espaço de resguardo e proteção (para o fabular, inclusive), o qual, visto em sua outra faceta, não deixa de ser lugar de vulnerabilidade e exposição às agressões (im)postas às mulheres negras. Nessa esteira e para além disso, o escrever como mãe, dicção proeminente aqui neste conjunto de poemas, adquire o status de estratégia de guerra, de revide que se conecta com as ações de resiliência ancestralmente empreendidas por outras iyás, mães pretas que desafiaram a lógica de interdição de suas existências e de aprisionamento de suas imagens.  Essa literatura enuncia as contradições sublimes do tornar-se mãe e o pesar dos corações que insistem em pulsar sonhos, memórias, projetos. De seu presente poético verte a força lírica que animou a quem nos antecedeu e que (pode) anima(r), enquanto legado, esses rebentos que nos sucederão – contando com a boa Sorte confiada à proteção de Orixá. 

Por tudo isso, a riqueza da poesia de Daisy Serena me habitou nas últimas semanas. Conferiu novos sentidos às madrugadas em que me desperto do já quase inexistente sono para amamentar a recém-nascida Yeté. Insuflou cores de sublevação aos cuidados tantos com esse ser que gerei e pari. Emprestou-me vocabulário para nomear o choro contínuo, instintivo e espiritual de quem afirma o voto pela vida, choro que é de Yeté, que é meu e que desde a penumbra do contemporâneo podemos ouvir na poesia aqui em questão.    

A colagem mostra uma mulher com um bebê no colo. Eles estão no centro da imagem, atrás se vê um céu azul com uma grande lua. À frente, vegetações e flores.
Uma colagem da artista visual e escritora Daisy Serena (imagem: Daisy Serena)

poemas selecionados

 

escolher falar do amor não cessará nenhuma bomba

não reconstituirá os corpos, as irreparáveis faltas,
não dará conta de todos os superlativos para nomear
a dor, não fará os números irem em sentido contrário

não arrancará no paradoxo de um véu
o olhar traumatizado das crianças

não devolverá a mãe e o pai
não trará para o colo nenhum dos quatro
filhos

falar de amor não gerará mais amor
onde toda meia noite explode um
sistema solar

não acalmará a mão fascista,
não chegará nem perto de tocar seus corações,

falar de amor nunca resolveu nenhuma guerra,
nunca assinou qualquer tratado

foram os levantes, as revoltas nascidas nos mocambos,
cada greve dos trabalhadores, as resistências dos mais diversos povos,
as desobediências, aquilo que atiça o fogo em tudo e um pouco mais,

foram os movimentos de resposta dos que passam fome,
dos que têm a dignidade lançada na vala,
dos que não tem perdão por terem nascido pretos,
por terem nascido pobres,
por terem nascido do lado oprimido da faixa

foi trazer na companhia do olhar trêmulo da raiva,
também a lança, a pedra e o pau nas mãos

foi dessa fúria que sempre se deslocou alguma possível decisão

quando escolho falar de amor não espero promover nenhuma mudança.
apenas sobreviver.

 

 

um rastro de leite na blusa
sempre um resto de mel
entre os dentes

a síntese de
setecentos e doze dias
é mais simples do que
manejar a poesia nos
dedos

alguém disse
eu me lembro

tudo muda quando você
vê em alguém um filho
teu

filho meu
filho meu

um rastro de mel na boca
sempre um resto de
puerpério nos dentes

se é verdade e tudo muta

quem você terá visto
quando entendeu 
uma mãe neste rosto 

meu

 

 

manhãs de sol 

meu bem,
não me peça cantar a esperança do sol

se o trabalhador sob a mesma chama
distribui de pino a pino 
muito mais do que a sopa em sua testa

não me peça hoje lamber as cores
da pérgola 
não me narre o farfalhar das 
aroeiras

só por essas horas da manhã
deixe

caber no silêncio
lagrimar o terror
sem disfarce do
placebo 

enquanto o filho assiste
o desenho
enquanto o café esfria
na língua 
enquanto empilham 
displicentes 

ossos, 
memórias, 
enervaduras

o peso da alma
acompanhará a taxa
inflacionária?

quem poderá

ler nas entrelinhas 
dos códigos funerários

quais daqueles corpos 
foram bem-amados
antes dos containers

meu bem, 
meu benzinho

quem é que pode escutar passarinho
se a vibração no estribo é artifício da bomba?

 

O coração pesa uma tonelada

o coração pesa uma tonelada

e eu sou semilla ya vieja
emaranhada ao mover
crescente d'um novo grão

quero por um instante
apenas flutuar sobre a
água, quieta y serena

mas

o coração pesa uma tonelada

e eu afundo um bocadinho
lutando para volver

siempre volver

porque no epicentro
do meu peito bombeia

sangre
mas não só

fragmentos de
territórios
longínquos

(atravessados por mi
viejo oluayê)

condensados
em mil nomes

que me antecedem

e fazem meu coração
pulsar enquanto pesa

pesa
pesa

uma tonelada
de rostos cotidianos

esparramados
por todo meu corpo

grafados nos cantos
mais inomináveis
da minha pele

que é pra não
esquecer

que memória
se faz aos lavrar

com mãos firmes
sulcos nas terras

e o coração
precisa pesar
no mundo

para suceder.

  Gênesis

I

toco seu coração 
com a ponta do sol em meus dedos 
um movimento tão simples 
ninguém diria que dele se fundou 
toda escuridão 

II

depois, foi assim

no começo do princípio 
a noite escura reuniu 
o calor àqueles corpos 
espraiados sobre o dorso
de trezentos sussurros 

III

sem quaisquer escrituras 
atravessamos florestas e dunas
dançando nossa cosmologia
feito comida de comer com 
as unhas

(cada movimento um punhado de
histórias nas bocas quentes de
fogueira)

IV

nunca se soube de palavra pecado
pois nada se criou do escuro para ser
condenado

(black is a bless
bençãos e axé)

V

tateio sua língua estrelar
e o futuro é nosso passado 
todo transcrito nesse sabor

VI

carregar os tons das noites é nossa maior origem.

VII

passeio meu rosto em sua pele
decorando seus olhos fechados 
assim, fez-se a manhã.

no puerpério da alvorada a
escuridão descansou 

(era o sétimo dia.)

 

Daisy Serena é artista visual e escritora com estudos em sociologia e política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Autora de Tautologias ( 2016), tem poemas publicados em revistas digitais como Escamandro e Chão da feira. Como artista visual teve sua estreia solo com a exposição: Tecituras de tempo & identidade (Mostra de criadoras em moda: mulheres afro-latinas, no Sesc Interlagos, 2016) . Também participou das exposições coletivas FotoPreta (2018 e 2020) com curadoria do coletivo Afrotometria. Tem obras de diferentes linguagens visuais publicadas em revistas digitais como Menelick 2º ato, Garupa e Doek!, da Namíbia.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani e Yeté, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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