"Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea": Calila das Mercês
10/02/2022 - 15:06
A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.
“O distante pode sempre estar perto”. Esse enunciado configura um dos saberes que DonOlívia herdou de sua avó Amara e conosco compartilha, por meio da dicção de sua neta, a narradora do conto “Mangalô (3x)”. O feijão, semente que dá vida ao prato que ocupa o coração do conto, bem como seu cultivo, são reminiscências do além-mar, uma África que se atualiza na performance da vó, a qual cozinha enquanto a menina-neta tenta apreender o profundo significado do que se vê, do que se planta e se enraíza, do que se alça como palavra-alada na cela-montaria da literatura.
Foi também em território além-mar que conheci Calila das Mercês, autora do referido conto e do livro Notas de um interior circundante e outros afetos (Padê Editorial, 2019)*. Nós duas, pesquisadoras brasileiras, enredadas em esforços de diálogo com uma audiência portuguesa. Confrontando fantasmas históricos e nos esquivando de armadilhas contemporâneas. Desde então, é bonita a companhia que nos fazemos, a distância, como andarilhas que tecem redes de conexão entre o Recôncavo Baiano, Salvador, São Paulo, Brasília e João Pessoa. Sim, “o distante pode sempre estar perto”. E para perto de vocês, leitoras e leitores, trazemos nesta edição de nossa série a produção literária de Calila das Mercês. Mulher negra em movimento, migrâncias internas, que refabula o seu lugar de origem, a Bahia do sertão, com cores, texturas e cheiros e sabores singulares, conferindo densidade à investigação sobre pertencimento e diáspora no Brasil.
*No prelo encontra-se a nova obra de Calila, livro de contos que será publicado pela Nós Editora.
Número 18
engatinhei em
chão de cimento
vi uma casa de uma única janela ser
ninho de passarinho
quando aprendi a andar, voei
quando aprendi a falar, chorei
vou ali e volto, mainha
voo ali e volto
um dia voo para casa.
Mangalô (3x)
Uma vez ele nos pegou no flagra, respirou e contou para todo mundo. E era um sonho.
Outra vez ele chegou montado. Tinha tomado umas duas pingas na venda de Jotinha de Armando. Desceu, amarrou o animal debaixo da amendoeira. Caminhou de lá reduzindo a poeira das suas botas até o primeiro degrau da varanda, na dúvida se tirava ou não o inseparável chapéu de vaqueiro. Optou por deixar o parceiro do seu lado. Caso precisasse, a qualquer momento o amigo estaria ao seu alcance. E, de frente pra égua que saboreava a sombra, ele descansava com as costas empurrando a parede de barro batido, sentado no chão da frente da casa centenária de sua mãe, minha avó, DonOlívia, e do Velho-Pereira, seu pai, meu avô. Amarrou a égua e ficou lá dando um tempo, curtindo a lombra daquele calor retado. Fazia isso quase todo sempre, depois de um dia inteiro na lida com a terra, tardezinha de uma das duas vendas da vila onde se distraía da seca.
Acima dele, da janela cor-de-quando-chove, estava eu, de férias. No lugar onde tomava nota da poeira e dos pintos pingados que passavam pela frente da nossa cancela de tempo em nunca. Jamais tinha me ocorrido, mas voou da minha boca se eu poderia montar naquele animal. A pulso mastigou demoradamente as letras e disse, encarando o telhado e alguma amêndoa invisível na árvore que parecia desanimada com o outono: Pode, minha fi...
E, antes que terminasse a frase, saí rapidamente da janela, desci os degraus, e em cinco passos já estava desamarrando a égua da amendoeira. Coloquei um pé num dos estribos muito gasto, porém firme, igual às panelas velhas de vovó, e, nos segundos enquanto me equilibrava para montar, cogitei se causaria alguma dor no animal com o meu peso menor que um saco de cimento. Segurei no cabresto, um pouco na sela, e, finalmente, subi no bicho sem pensar meia vez que não fui ensinada a montar, e estava lá pomposa com minhas botas duras e marrons dando meus primeiros galopes na vista de tio, que seguia mirando o topo da amendoeira, a cerca e suas plantações, parecendo ignorar a minha presença na sua frase inconclusa.
A égua de primeira já me deu indicativos de que estar com o cabresto nas mãos não queria dizer que eu estivesse, de fato, com o cabresto nas mãos. Mais dois pinotes e eu sentia que nada sabia sobre dançar na poeira de um chão que era encruzilhada-garimpo, chão-pai de suor seco fincado ali abaixo da raiz da amendoeira e das terras todas que o Velho-Pereira regou. E como poderia saber, se somente pisava lá em recessos e feriados?
Quando eu e a égua dobramos a casa de vô, e saímos da vista de tio João, ela descarreirou comigo, me deu uma peia, me arranhou em todos os arames farpados daquela fazenda, uma surra nas pernas dos meus sonhos, me presenteou com calos e bolhas nos pés antes de arrancar minhas botas marrons, sacudiu minha verdade, me fez perder os óculos de grau que não me deixavam ver o capim seco e muito vivo que resistia naquela terra, me fez perguntar onde estava a minha coragem de não ter medo, e também me fez segurar firme naquela rédea para não ser pisoteada pelo desconhecido, acordar para o que não poderia controlar, sorvete que derrete em dia quente e que suja as mãos e a roupa sem que dê tempo de dar uma lambida.
Eu voava na égua, enquanto DonOlívia cozinhava mangalô. E toda vez que ela preparava essa comida, contava a história dessa semente que sua avó Amara dizia ter chegado de muito longe, do outro lado de um rio que era maior do que o rio que tinha perto da nossa fazenda. E que só depois de grande compreendi que era o mar. A sua avó Amara disse para ela, ainda menina, que não deveria esquecer que o distante pode sempre estar perto. Primeiro plantava as sementes escuras bem maduras num pedacinho de terra que não precisava de muita garantia, a não ser de água e de umas gotas de prosa. Ela gostava de fazer as covinhas perto das cercas e ensinava a gente a jogar o feijão e pedir a Deus um punhado de chuva. Só um pé de feijão que brotava era árvore-comida para um monte de gente, tantas florzinhas, vagens, folhas, que viravam adubo, que vovó dizia ensinar a gente a não ser soberbo com a vida. Olha aí, minha filha, um grão deu isso tudo pra nós. As vagens cresciam sem vergonha, verdinhas pelas cercas e podiam também ser cozinhadas no vapor, mas lá, vovó gostava mesmo era delas mais vividas para debulhar. Depois de arrancar das galhas que cresciam trepadeiras, da panela goela baixo era sempre aquele gosto de quintal cheio de ervas e hortelãs graúdos e miúdos, que sempre socorria a vizinhança que volta e meia pedia um mói para fazer um molho ou tempero de sonhos. Almoço e jantar eram sempre um sonhar, vovó dizia.
Aí era um tal de zéfiní que ela falava quando terminava de cozinhar. E sempre vinha alguma tia: Mamãe, o certo é c’est fini, na escola ensinou assim. Vovó perguntava com o seu jargão: Você entendeu o que eu disse? Se entendeu, está certo o jeito que eu falei.
Apesar dos solavancos, o cheiro daquele grão era inconfundível, e encarnou nas minhas narinas uma mistura de mato, de água trazida no jerico que se empenhava para segurar aqueles galões cor-de-galão. Não tinha azul parecido com aqueles galões, então nossa referência era sempre pensar no azul do céu mais vibrante, e o do galão, mais sertão.
Noutra vez, era vovó perto do galão de água dizendo desconjuro repetidas vezes quando eu sonhava que estava doente da cabeça e ela me protegia. Acordei com o travesseiro no chão encharcado, tudo umedecido em volta. Não, não fiz xixi na cama. Nenhum cano estourou, nem infiltrou nada. A água transbordou abaixo da minha cama para avisar que eu não ando só.
Depois de anos vividos em meia hora, transitando cheia de arranhões, marcas, cheiro de óleo de coco e mangalô, brotoejas, salivas, fraturas internas e expostas, fui convencida pela égua de seguir para dentro da casa de tia Zezé em vez de seguir na estrada que daria para outro desconhecido. Ela me encaminhou para dentro do interior circundante que estava ali mesmo como forma de realizar o que eu tanto queria. Cometer um pleonasmo, ao pensar que já estava dentro, e era preciso fundar para dentro do dentro. E me aproximar da fundura.
Estava cheia de marcas. Como foi possível que urtigas e cansanções me alcançassem mesmo eu estando no alto? Meu primo Tom correu para me ajudar. Primeiro ele foi chegando bem perto da égua com um silêncio na mão esquerda, sinalizando para mim que era preciso naquele momento deixar que ele descalço, do baixo, conduzisse a égua para que eu pudesse descer. Ele assim fez, olhou no fundo de seus olhos, ela mirou como numa afirmação de acordo feito, ergueu e relaxou as orelhas. Eu desci. E ele foi comigo em silêncio, andando, ao lado da égua, uma serena dançante com ar de dever cumprido, tranquila como se nada tivesse ocorrido, caminhando em direção ao seu público fiel, o meu tio.
Depois de chegar perto de tio, e Tom retornar para a casa dele, eu demonstrei o meu corpo lapeado. Tio, com quietação de quem se ajoelha venerando o suor-adubo fincado abaixo da raiz da amendoeira antes de dançar ao vento, mirou com seus olhos cor de galão: Minha filha, eu disse que podia, só não disse quando.
Numa outra vez, que eu já era mulher feita, meses depois que vovó Olívia tinha partido feito um passarinho, tio João estava montado na égua cujo nome ele me disse, com sua precisão de imprimir com afeto o nomeio dos seres. Acenei na tentativa de tirar uma foto deles, na fase que a parceira que eu acionava a qualquer momento era uma Nikon D50 que arrancava comigo pedaços de ruas e de gente para eu guardar para sempre, como uma metodologia de plantar o mangalô na cerca de arames sem esquecer de que cada pessoa desdobrava em flores, folhas-adubos, coragem e gente que pluriversa. Tio então fez os rodopios brincantes e sérios até encontrar a melhor posição para Arlinda. Arrumou seu parceiro do alto de sua cabeça. Respirou, afirmando permissão para os cliques. Tirei algumas fotos. Sem ver fotografia alguma, disse-me que tinha certeza que tinham ficado boas, porque Arlinda estava com as orelhas arribadas sem nenhuma tensão, que ela tinha confiança em mim e que naquele momento Arlinda estava pronta para passear comigo.
Tio João, num inverno desses em que estava tudo cor-de-quando-chove no sertão, que já tinham comido muito mangalô, e agora colhiam milho, mandioca e amendoim, sentiu o seu coração dizer. Dizer em silêncio tão rápido que não deu tempo dele se despedir de todo mundo que gostava. E encantou-se no solar da chuva da tarde. Uma semana depois, Arlinda soltou-se, foi perto da amendoeira, foliou pela chuva-garoa e não voltou mais depois do arco-íris.
Talvez fosse ele amarrando Arlinda na amendoeira, e indo direto encontrar vovó Olívia perto das covinhas ao lado da cerca de arame. Eles plantavam e diziam, nunca esqueça desse feijão e também das amendoeiras. Plante, plante, plante, plante, plante, minha filha. Pareciam cantar. Plante, plante, plante, plante, plante, falavam apontando, um grão, muitos grãos, folhas, florzinhas, folhas-adubos, águas. Não esqueça de respirar, de prosear com a terra. Comida é para dentro e para fora ao mesmo tempo, minha filha. Plante, plante, plante, plante, plante, minha filha. Estaremos sempre perto. Plante raízes, plantas que viram sonhos. Eu tentava responder, mas não conseguia. Eles batucavam com as mãos na terra. Plante, plante, plante. Acorde, plante, plante. Na distância tem sim pertencimento. Acenei, tentei chamar a atenção, abrir os dentes. Não tenho certeza se viram. Partiram nuvens que desmancham água em terra regada a suor de gente.
(a) gente chove
aqui
caminhos
cercas, casinha de portas e muitas janelas
arame farpado, terra
aqui
mandacaru, britas
pedaços sem sonhar asfalto
chão batido com alguns buracos
poeira, mato seco, cansaço
duas amendoeiras que morreram
cancelas, lenha queimando, tramelas,
pés de seriguelas, de gente, umbuzeiro
tanque é de terra e tem peixe,
cabaça vira pote,
lata de óleo vira litro,
derradeiro é palavra mais bonita que primeiro
ela viu no almanaque o nome dos filhos.
aqui
dezenas
de quilômetros de idas da BR ao ariri
de verões a verões no candeeiro
de adobo, telhado baixo, que dinheiro?
sem cisterna, água de beber só no barro,
na moringa, TV pequena sem cores,
bota a pilha, liga o rádio
AM sintonizado na
hora da ave-maria
ave-maria cheia de graça,
por que é tão difícil ter graça aqui?
por que meu povo não sorri?
por que eles têm que destocar
pastos alheios?
por que barriga cheia rima com enxada,
mão calejada,
infância roubada
vida limitada
silenciada
não ser nada?
ave-maria cheia de graça,
desculpa, essa filha arrinada,
descobri que mesmo com
mão calejada,
infância roubada,
vida limitada,
silenciada,
aqui tem uma sabedoria
aqui tem uma graça
de gente que num sabe “de nada”
e sabe de tudo, tudo do mundo
gente que tem a verdade,
a boa vontade,
tem cour-age,
ardente como o sol que queima
forte como o som dos pássaros
latente como o silêncio-segredo
escondido no coração de vovó.
mainha conta que
aos 7 anos foi em Bom Jesus da Lapa
seu único passeio de infância
com vovô e vovó num pau de arara
tinha fogos de artifício
na saída, na chegada!
e teve foto naqueles monóculos
que quase não se vê nada!
e teve frango assado gostoso
em uma das paradas,
sempre penso no cheiro
de muitos dias de
viagem na estrada.
aqui
caminhos
de tanta gente que esperou todos estes anos
a graça de
ser tão chuva.
e em meio ao deserto,
mesmo na seca,
a gente chove.
Calila das Mercês é escritora, comunicóloga e jornalista. Doutora em literatura pela Universidade de Brasília (UnB) com a tese Movimentos e (re)mapeamentos de mulheres negras na literatura brasileira contemporânea, mantém o mapeamento Escritoras negras da Bahia. Em literatura, além dos livros citados, publicou no jornal Rascunho, na revista Granta de Portugal e em antologias.
Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).